13 Fevereiro 2023
Já são quase trinta anos desde que na Universidade de Ghent, na Bélgica, o grupo de geógrafos liderado pelo professor Jan Nyssen estuda o norte da Etiópia. Entre suas principais obras está um livro que conta os roteiros mais pitorescos, entre geologia e antropologia, na zona montanhosa do Tigré, habitada pela orgulhosa minoria dos Tigrínios, que apesar de representar apenas 6 por cento da população do país, liderou a guerra civil contra o regime comunista e depois, por décadas, esteve à frente do governo.
A reportagem é de Davide Maria De Luca, publicada por Domani, 10-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Hoje, Nyssen está aposentado e junto com um grupo de pesquisadores e estudantes voluntários, tornou-se o maior especialista mundial em massacres e violências cometidos sobretudo pelo exército etíope na guerra civil que por dois anos inflamou a região. Um conflito brutal, mas quase desconhecido, em que estupros em massa e a sistemática privação de alimento foram usados pelo governo etíope como arma de guerra contra os rebeldes Tigrínios.
Segundo as principais estimativas de organismos internacionais e diplomatas, até 600 mil pessoas teriam morridos em confrontos, massacres étnicos e na carestia causada pelo governo. Um número que faz do conflito no Tigré a mais sangrenta guerra do século 21, perdendo apenas para a guerra civil do Congo e diante de conflitos muito mais longos, como Síria e Afeganistão, ou muito mais seguido pela comunidade internacional, Ucrânia.
“A estratégia do governo etíope de bloquear todas as informações do Tigré funcionou, – conta hoje o Professor Nyssen – pouco se falou sobre o conflito e quando se falou geralmente foi usada uma fórmula de equidistância: ambas as facções, o governo e os Trigrínios, cometeram crimes de guerra. É verdade, mas existe também uma ordem de grandeza diferente entre o que cometeram os etíopes e seus adversários".
O conflito eclodiu a 3 de novembro de 2020 na sequência daquilo que Nyssen define como uma “fracassada transição de poderes”. Desde o fim da anterior guerra civil em 1991, o país era controlado pela EPRDF (sigla em inglês para Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope), a organização de base étnica que havia liderado a revolução contra o regime anterior. Até alguns anos atrás, a EPRDF era dominada pelos Tigrínios, reunidos na Frente Popular de Libertação do Tigré (conhecida como TPLF).
Em 2018, a EPRDF escolheu como novo líder Abiy Ahmed, do partido Oromo, que junto com os Ahmara são um dos dois principais grupos étnicos do país. Entre os primeiros atos de Ahmed esteve a assinatura de um acordo de paz com a Eritreia, com a qual o país estava formalmente em guerra desde 1998. O gesto lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz, mas também a desconfiança dos Tigrínios, excluídos da decisão e desde sempre os mais hostis em relação aos eritreus.
As tensões começaram a aumentar até que, após uma crise constitucional em 2020, os Tigrínios lançaram uma ofensiva surpresa contra os quartéis do exército etíope na região. Em resposta Ahmed ordenou que as forças armadas interviessem e a Eritreia ficou ao seu lado.
Mapa da África destacando a Etiópia (Foto: Wikimedia Commons)
Nyssen e seus colegas alertaram para os riscos do que estava para acontecer na Etiópia desde 2020. O conflito que estava se preparando, eles escreveram, seria violento e brutal. Mas o que aconteceu superou todas as expectativas. Os Tigrínios têm sido há tempo uma minoria discriminada na Etiópia e muitos se ressentiram das longas décadas em que o TPFL foi a força política dominante no país.
“O discurso dos etíopes muitas vezes teve conotações genocidas – explica Nyssen. Os Tigrínios eram definidos como câncer, baratas ou babuínos”. O próprio Ahmed usou em algumas ocasiões uma linguagem que justificava os estupros em massa cometidos por seus soldados.
Reconstruir o que esse contexto e essa linguagem geraram no terreno foi um árduo trabalho de reconstrução. Nyssen e sua equipe de voluntários reuniram informações vindas de dezenas de fontes diferentes: testemunhos da diáspora tigrínia, fotos de satélite, informantes locais, vídeos dos massacres feitos pelos assassinos. Ao todo, o grupo conseguiu identificar 12.011 civis vítimas de massacres, a "ponta do iceberg" em relação ao número real de vítimas dessas mortes intencionais, que provavelmente estão entre 36 e 60 mil.
Por sua vez, as pessoas mortas nos massacres perpetrados principalmente pelo exército etíope e pelo eritreu, às vezes auxiliados pelas milícias da etnia Ahmara, são apenas uma parte das mortes causadas pelo conflito. Milhares de pessoas foram mortas por bombardeios e pelo fogo cruzado; centenas de milhares perderam a vida devido à fome ou à falta de cuidados médicos.
A Etiópia, diz Nyssen, "usou a fome como uma arma". As ajudas internacionais foram sistematicamente bloqueadas, os campos foram incendiados, enquanto moinhos e fazendas foram destruídos. Enquanto isso, os agricultores não podiam arar a terra por causa dos combates, por ter perdido seus animais ou porque eram ativamente impedidos de fazê-lo pelas tropas etíopes.
Em 3 de novembro de 2022, exatamente três anos após o início do conflito, o governo do Tigré e da Etiópia chegaram a um instável acordo de paz. Hoje, a carestia na região continua, parte do território ainda está ocupada pelas tropas eritreias, enquanto massacres e saques continuam ocorrendo. Mas o conflito aberto, pelo menos, acabou.
No silêncio geral em que essa guerra se consumiu e chegou a uma precária solução, o trabalho de Nyssen lançou luz sobre o que acontecia no país. "Dar voz aos que não têm voz sempre foi nosso objetivo", diz Nyssen. Há algumas semanas, os governos da França e da Alemanha pediram ao governo de Ahmed que prestasse contas dos massacres ocorridos na guerra como preço pela normalização das relações com a União Europeia.
A Europa está numa posição difícil em relação à Etiópia, responsável por violências e massacres, mas também um país estratégico, prestes a alinhar-se cada vez mais com a Rússia e a China. É cedo para dizer se a postura franco-alemã é apenas algo momentâneo ou se esconde a real intenção de pedir esclarecimentos. Seja como for, porém, é difícil imaginar que teria acontecido da mesma forma sem o trabalho de um pequeno grupo de geógrafos belgas.
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Etiópia-Eritreia. O conflito mais sangrento de que vocês nunca ouviram falar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU