Aos críticos de Nietzsche, uma reflexão. Artigo de Alexandre Francisco

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10 Dezembro 2024

Discutir o fla-flu em um bar boêmio parece muito mais interessante para aqueles que querem se divertir com a retórica, sem compromissos acadêmicos.

O artigo é de Alexandre da Silva Francisco, advogado, mestrando em filosofia pela Unisinos, membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos — IHU.

Eis o artigo.

Ao adentrar nos estudos filosóficos com mais afinco, percebo como é complicada a filosofia "fla-flu" que muitos fazem a respeito do estudo de seus autores. Às vezes, discussões acerca de uma ideia podem gerar conflitos intermináveis, sem que dali surja qualquer coisa boa; pelo contrário, apenas discórdia e mágoa.

Nesse sentido, creio que o filósofo mais sagaz é aquele que, sem preconceitos prévios, se dispõe a "fingir" como um ator: a trocar de lugar com seu filósofo, entrar em sua pele, vestir sua máscara e ruminar suas ideias com o maior deleite possível. É quase uma antropofagia filosófica: devorando o texto e tornando-se parte dele.

No entanto, é preciso tomar cuidado, como diria Nietzsche, pois, ao olhar muito tempo para o abismo, ele olha de volta para você. Assim, de modo fugaz, o filósofo deve sair do ente em que entrou; do contrário, haverá a cristalização, e o corpo do hóspede se fechará, aprisionando o pobre hospedeiro para sempre. A partir daí, a pessoa vira o papagaio de pirata, repetindo e interpretando tudo o que o seu amo fala, sem juízo crítico. Está aí a morte da filosofia.

A filosofia deve ser utilizada como uma caixa de ferramentas diante de um problema mecânico. Para cada problema, existe uma chave "ideal" a ser utilizada; alguns problemas possuem até mais de uma chave.

Somos absolutamente sedentos por verdades universais, e, quando achamos que as encontramos, nos tornamos dogmáticos. Determinadas ideias seduzem como um feitiço: o enfeitiçado não sabe como sair dele e não percebe a névoa do pó de pirlimpimpim revoando sobre sua cabeça.

Perceba: Nietzsche não crê em verdades universais, pois, a partir do momento em que um filósofo decreta que determinada ideia é uma verdade universal, ele deixa de questionar a própria ideia. Assim, a sistematização de ideias universais sobre juízos é impossível de ser concebida. Nietzsche diz que não é possível conhecer a verdade, e quem elabora um megaplano racional para fazê-lo está equivocado, pois ignora sua humilde delimitação à vida sensível. Aqui vale a velha máxima: "só sabemos que nada sabemos".

Não se engane, porém, quem acha que, então, não devemos buscar a "verdade" [1]. Aqui está o principal problema dos críticos de Nietzsche, que tentam invalidar e simplificar sistematicamente seus entendimentos. Como não se dão ao trabalho de entender a crítica, formam uma caricatura do filósofo e batem no espantalho de bigode.

A frase "não há fatos, somente interpretações"[2], de Nietzsche, arrepia até os últimos cabelos dos intérpretes mais ignorantes do alemão. Esses sujeitos, presos a seus dogmatismos, não ousam enfrentar o caos da vida, seja por medo, seja por comodismo.

Para Nietzsche, o que chamamos de "fatos" não existe de forma neutra ou objetiva; eles são sempre mediados por um ponto de vista, uma perspectiva. Isso não significa que a realidade não exista, mas sim que nossa compreensão dela é inevitavelmente moldada por interpretações baseadas em contextos culturais, históricos, biológicos e individuais, podendo ser inclusive atravessada por valores tendenciosos.

A substituição de "fatos" por "argumentos" aponta para o caráter discursivo e disputável de todas as "verdades". Afirmar algo como um "fato" é, na visão de Nietzsche, impor uma interpretação específica como sendo a única válida. Esse processo está frequentemente vinculado a relações de poder: quem tem a autoridade de definir o que é fato exerce poder sobre a narrativa.

Nietzsche jamais foi anticientífico, mas sempre foi antidogmático. Rejeitava sobremaneira qualquer tentativa de transformar a ciência em um sistema fechado e absoluto, semelhante à religião ou à metafísica tradicional. Em vez disso, ele defendia uma ciência consciente de suas limitações e disposta a abraçar a incerteza e a pluralidade de perspectivas.

Falando na língua dos críticos para ganhar sua simpatia: ora, se a ciência e a filosofia são campos de investigação, não é essa a maior verdade de todas? Seu caráter errático e refutável — não de forma irresponsável, mas embasada — possibilita que esses campos continuem a se atualizar e a se aprimorar. Agora, quem acha que a filosofia e a ciência são tão universais e sistemáticas, puras e livres de qualquer disputa política de valor, esquece-se da filosofia nazista de Heidegger e da eficiência científica das câmaras de gás em Auschwitz. Visão mais ingênua não há.

Talvez o questionamento crítico dos valores dessas ditas verdades universais nos permitam questionar por quê seguimos em frente com a ideia de progresso científico devorando toda a natureza ao nosso redor, como se fôssemos senhor dela, em uma relação de cima para baixo, em última análise promovendo nossa própria extinção como espécie. Ou mesmo por quê questionar valores morais desse "bem" da família tradicional que faz cara de nojo ao passar ao lado de uma pessoa transexual (isso quando não matam) e promove discurso de ódio homicida nas redes sociais. Me incomoda em demasiado qualquer ideia higienista de pureza, e julgamento das atitudes do outro, com referência em algum parâmetro moral de superioridade. Isso no fim das contas não passa de nazismo.  

Me interesso muito mais pela autenticidade da vida humana, com todas as suas controvérsias, erros, limitações, defeitos, loucuras, sombras, desejos, sexualidades, escuridão, lama, sujeira e podridão, do que uma vida mercadológica. Ou seja, artificial, plastificada, asseada e objetificada daqueles que fingem ser aquilo que não são, e escondem seus preconceitos e desejos mais obscuros por meio de máscaras sociais e da bondade fajuta. Mas podemos discutir todas essas questões mais a fundo em outro momento oportuno. 

Nietzsche, assim como todos os filósofos, deve ser lido, estudado, discutido e criticado, sem dogmas, sem apegos. Para que se construa uma crítica qualificada e séria, que postule alguma relevância acadêmica acerca de algum filósofo, o crítico deve ter conhecimento absolutamente profundo e rigoroso de seu pensamento; caso contrário, tornar-se-á mera retórica vazia ou mal-intencionada.

Discutir o fla-flu em um bar boêmio parece muito mais interessante para aqueles que querem se divertir com a retórica, sem compromissos acadêmicos.

Notas

[1] Para Nietzsche, buscar a verdade não significa encontrar algo absoluto ou definitivo, mas sim questionar, interpretar e criar. Ele propõe um caminho que se desvia das abordagens tradicionais da filosofia, que tentam fundamentar a verdade em princípios universais. A busca pela verdade, segundo Nietzsche, deve ser uma busca crítica, criativa e afirmativa da vida.

[2] MARTON, S. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: UFMG, 2000.

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