26 Março 2024
Miguel Urbán é membro do Parlamento Europeu e líder da organização Anticapitalistas. Foi um dos fundadores do partido Podemos na Espanha, do qual saiu em 2020. Urbán acaba de publicar Trumpismos: neoliberales y autoritarios (Trumpismos: neoliberais e autoritários), uma radiografia da extrema-direita. Em conversa com Página/12, Urbán alerta para o perigo que governos como o de Javier Milei representam para a democracia e reconhece: “A extrema-direita pegou o elemento da rebeldia da esquerda”.
Nascido em Madri em 1980, Urbán tem uma forte ligação com a luta pela memória, verdade e justiça. É filho de Luis Miguel Urbán, membro da Liga Comunista Revolucionária e vítima de tortura durante a ditadura franquista. O líder esquerdista chegou a Buenos Aires para se reunir com os demandantes no caso de crimes contra a humanidade contra o regime de Franco, que está sendo julgado pela juíza María Servini. Estará presente na marcha de 24 de março e explica que “acompanhar esta luta, quando pela primeira vez um presidente ousa questionar o movimento das Mães e Avós da Praça de Maio, é um motivo de orgulho”.
A entrevista é de Guido Vassallo, publicada por Página/12, 24-03-2024. A tradução é do Cepat.
Por que líderes como Javier Milei, Donald Trump ou Jair Bolsonaro triunfam?
Não foi algo que aconteceu por acaso, mas estamos enfrentando o que chamo de uma autêntica crise do regime capitalista. A utopia de que o futuro é progresso está acabada. Pela primeira vez somos uma geração que sabe que nós, e inclusive os nossos filhos, viveremos pior do que os nossos pais. Essa consciência gera uma série de desconfortos, inseguranças e medos profundos na sociedade como um todo. E diante destes receios, a extrema-direita propõe alternativas e seguranças.
Se nós somos incapazes de imaginar o futuro, a proposta da extrema-direita é voltar ao passado do capitalismo desenfreado. Por exemplo, Milei nos fala de Menem, de uma certa lógica anterior à crise de 2001. Qual é o lema de Trump na campanha presidencial? "MAGA", tornar a América grande novamente. Não se trata de razão, mas de paixão. Fornecer garantias apaixonadas a uma maioria social e eleitoral. É nisso que a extrema-direita se baseia. A reação também pode ser revolucionária.
Você fala de um capitalismo em crise. A democracia como a conhecemos está em risco?
Totalmente. E não só por causa destes personagens, mas por causa do próprio neoliberalismo. A democracia liberal é uma ficção dentro do capitalismo que só é permitida em tempos de bonança. Em tempos de escassez, a democracia é restringida pelo mercado. Se observamos fenômenos como o russo, o turco, o húngaro, ou o que Bolsonaro tentou fazer no Brasil e Trump nos Estados Unidos com menos tempo e sucesso, vemos que há uma tentativa de quebrar um pilar básico da democracia liberal, que é a separação de poderes.
Em segundo lugar está a questão da liberdade de informação e da perseguição de jornalistas. O terceiro elemento é a perseguição sistemática ao direito de protestar e o quarto é a perseguição às minorias. Alguns autores falam de um Frankenstein, onde acrescentam certos elementos da democracia liberal mas sem substância, e a única coisa que resta é votar de quatro em quatro anos. E não se sabe se mesmo essa votação tem garantias suficientes.
Os líderes da extrema-direita usam muito as redes e nelas parecem sentir uma espécie de gozo com a crueldade.
“Free speech” (liberdade de expressão), certo? É curioso. O objetivo da liberdade é oprimir o outro. E é também uma liberdade da lógica dos privilegiados. Mexem com quem perde o emprego, com o aposentado, com o migrante... Nunca mexem com o empresário. Eles constroem uma comunidade, uma espécie de “fascisfera” onde produzem determinadas identidades. A extrema-direita pegou o elemento contracultural, de ruptura, rebelde da esquerda. Mudou tudo. A esquerda é a moderada, a politicamente correta. O que é mais politicamente incorreto do que insultar, como vimos, Trump, ou brandir motosserras na campanha eleitoral como Milei fez? Todas estas lógicas nunca são antielite. O humor é libertador quando é para cima. Quando é para baixo é opressão. Nosso inimigo não é mais o empresário que vive em cima, mas nosso vizinho que vive embaixo.
Enquanto essas transformações ocorrem, onde está a esquerda?
A esquerda não existe, nem é esperada. O que a extrema-direita nos oferece é uma alternativa reacionária para imaginar o futuro. Existe alguma esquerda neste momento que esteja propondo uma proposta de futuro que supere o capitalismo? Não há. A esquerda não tem uma proposta de esperança. No melhor dos casos, é uma proposta de gestão do capitalismo com rosto humano. No Chile, Boric perde o primeiro turno e o que ganha no segundo turno é o voto contra Kast, o que freia a extrema-direita. A proposta de Kast era militarizar o norte do Chile, levar os soldados e expulsar todos os migrantes. Bem, foi isso que Boric fez. O peronismo na Argentina colidiu constantemente com as suas incapacidades e acabou gerindo os ajustes estruturais do FMI. Penso que, como esquerda, ainda não conseguimos nos livrar dos escombros do Muro de Berlim.
Nas eleições gerais de 23 de julho, o Vox foi a terceira força política mais votada. Ele ainda é uma ameaça para a Espanha?
Ainda é uma ameaça. Na verdade, vemos que a extrema-direita não mantém uma função linear, mas tem altos e baixos. Para mim, existe uma lógica terrivelmente antipedagógica que a esquerda tem, que é a de que sempre que qualquer coisinha é alcançada dizer que se trata de uma vitória histórica. Na verdade, se olhamos para certos elementos dos governos de coligação, há algo na Europa conhecido como “lepenização dos espíritos”.
Os sociólogos franceses analisam como, finalmente, a extrema-direita conseguiu definir a agenda e permear o debate político de tal forma que governos que não são de extrema-direita aplicam as suas políticas. O exemplo mais recente é o de Macron, que teve de ser votado para que Le Pen não ganhasse. E Macron aprovou, em dezembro, a lei mais racista, autoritária e xenófoba da história da França, com os votos de Le Pen.
O que sentir ao vir ao país para uma data tão especial para os argentinos como o 24 de março?
É muito emocionante. A memória democrática da Argentina é um exemplo inspirador para aqueles de nós que continuam exigindo que os crimes do regime de Franco sejam julgados. Tenho acompanhado os demandantes e as vítimas da denúncia da justiça argentina. Meu pai é demandante, foi torturado e nunca teve justiça. Quem o torturou, apelidado de “Billy o Menino”, aposentou-se com 4 medalhas de honra, 3 delas concedidas em tempos de democracia. Então, para mim, acompanhar esta mobilização, quando pela primeira vez um presidente ousa questionar o movimento das Mães e Avós da Praça de Maio, é um motivo de orgulho.
Está otimista de que a Espanha avançará em questões de memória, verdade e justiça?
Sou um otimista bem informado. Compreendo as dificuldades, porque questionar a impunidade no nosso país [Espanha], questionar o nosso modelo de democracia acordado com o regime de Franco, é questionar a democracia tutelada. Mas creio que esta não é uma questão do passado, nem é por causa dos pais, é porque não teremos uma democracia plena até acabarmos com a impunidade. Vemos esta impunidade todos os dias na guerra jurídica que o próprio Judiciário, herdeiro do franquismo, está travando. Não é uma questão do passado, é uma questão do presente e está em jogo o futuro.
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“A extrema-direita pegou o elemento da rebeldia da esquerda”. Entrevista com Miguel Urbán - Instituto Humanitas Unisinos - IHU