13 Março 2024
Claudio Katz é economista, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), professor da Universidade de Buenos Aires (UBA), membro do coletivo Economistas de Esquerda e ativista dos direitos humanos.
Katz publica em meios de comunicação da Argentina, México e Brasil, e é autor de numerosos artigos que interpretam o capitalismo atual e a crise econômica global. Nesta entrevista analisa o momento particular que a Argentina vive com o governo da extrema-direita Javier Milei.
A entrevista é de Carlos Aznárez, publicada originalmente por Resumen Latinoamericano e reproduzida por Rebelión, 11-03-2024. A tradução é do Cepat.
Vamos começar com uma reflexão sobre o discurso de Milei na abertura do ano parlamentar.
Penso que o discurso destaca os graves problemas que o governo enfrenta a nível político, econômico e social. Comecemos pelo político. É evidente que Milei ratificou o plano de guerra contra os trabalhadores. Todos os dias estamos vivenciando algum episódio desse atropelo. Agora foi o fechamento da Télam. Tem um grau pavoroso de desumanidade. Por exemplo, o corte dos remédios oncológicos, as declarações discriminatórias de Milei contra as pessoas com Síndrome de Down, o corte da comida nas cozinhas populares com o argumento de que os movimentos sociais “fazem negócios” quando na realidade os movimentos garantem o funcionamento dos refeitórios e fazem-no muito mais barato do que qualquer outra instituição. O governo não para: cancelou o plano Potenciar Trabajo com a história de que assim gerará empregos, algo que já Macri fez. Se alguém destruir isso, não se gerará emprego porque o emprego depende do funcionamento da economia. E como Milei destrói, a economia não gera empregos.
Este governo é uma enxurrada de maldades. Por isso, e com razão, muitos dizem: “parece que vivemos um pesadelo, mas infelizmente é a realidade”.
Com este governo estamos vivendo uma tragédia social, com uma indigência terrível no celeiro do mundo, com uma queda do consumo tão abrupta como em 2001, com uma menina de 12 anos que saiu para roubar material escolar de uma loja para poder ir à escola, com abusos complementares no campo da cultura. Interrompeu o início das aulas em cinco novas universidades, proibiu a linguagem inclusiva que ampliava direitos. E neste contexto de abusos, abusos e abusos, Milei propôs no discurso um pacto para reimplementar a Ley Ómnibus; para começar de novo. Ou seja, ordenar todos estes ataques com uma Ley Ómnibus 2 do Parlamento.
E a lei que ele oferece é a mesma que a anterior: um plano de saque, de desigualdade, de pobreza; com reforma trabalhista, com aposentadoria privada, com abertura comercial. O que aconteceu é que Milei se encontrava num beco sem saída porque havia uma forte ameaça dos senadores que estavam prestes a anular o Decreto Nacional de Emergência (DNU). Então ele estava tropeçando. Sem lei e sem DNU já não tinha mais instrumentos. E foi e ofereceu um pacto aos governadores. Ele, de fato, lhes diz: restituo-lhes a coparticipação, devolvo-lhes o que tirei, retiro a lei dos lucros e da coparticipação.
Vamos a esse ponto. Ele diz: dou-lhes a coparticipação, expliquemos bem o que isso significa, dar-lhes a coparticipação da exploração dos recursos naturais e isso é uma grande caixa de dinheiro, como se sabe. Em outras palavras, compra-os para reduzir a beligerância.
Exato. Acontece que forçou uma retirada da coparticipação que distribui os recursos entre as províncias, segundo os critérios da última Constituição; e o fez porque o ajuste que ele implementa é muito brutal. Ele gostaria de remodelar as províncias; quer reestruturar o sistema federal, e a província que não conseguir financiar-se deveria fechar as suas instituições e juntar-se a outras, que desapareça. Que haja uma junção de várias províncias. Aquelas que podem, podem, e aquelas que não podem, juntem-se com outras. O plano de Milei, assim como não tem limites para atacar os professores, também não tem limites para demolir a estrutura federal das províncias.
O problema é que não conseguiu. Foi aí que veio a ameaça de Chubut de querer cortar o fornecimento de petróleo e depois do papelão, da solidariedade dos governadores, aí ele percebeu que não iria conseguir e assumiu a situação de fragilidade em que se encontra, e que mascara com um discurso agressivo. E é por isso que ele renegocia com os governadores, que na sua grande maioria são do seu próprio bastão, são gente da direita, gente do PRO, mas não poderiam ficar sem a coparticipação, porque do contrário a província não consegue operar. Então é aí que começa uma negociação. A “oposição amigável”, a direita do PRO e os governadores já acenaram para ele. Aceitaram inclusive o corte da coparticipação do mês passado como um gesto de boa vontade e agora “negociamos tudo”. E acredito que a causa desta recomposição em curso é que toda a classe dominante continua apoiando Milei.
E é por isso que lhe perdoam tudo, embora muitas vezes não gostem de algumas de suas formas.
Como está, perdoam-lhe que tenha um patrimônio raríssimo não declarado, perdoam-lhe a existência de denúncias de que aconselhou traficantes de drogas como economista e ninguém lhe diz nada, perdoam-lhe que tenha gasto fortunas na remodelação da Casa de Governo para acomodar os seus cachorros. Ninguém diz nada porque a classe dominante quer que o seu plano de guerra contra o povo funcione, mesmo à custa de benefícios imediatos.
O setor industrial vai perder com Milei. Mas entre a reforma trabalhista que anule os sindicatos e a abertura comercial que o enfraquece como concorrente, o capitalista industrial prefere destruir o sindicato. E as grandes empresas sabem que com a dolarização podem perder, mas em troca apoiam-no na destruição dos movimentos populares. Os governadores concordam com ele pelo mesmo motivo. No final das contas, na negociação final vão perder parte dos seus recursos, mas preferem essa perda se Milei acabar com a dor de cabeça que as greves do movimento estatal, do movimento docente, representam. E há uma negociação porque Milei também conta com o apoio do imperialismo anglo-estadunidense.
Aquela visita de Cameron às Malvinas, onde o chanceler respondeu com um gesto gracioso, confirma o grau de entrega que este governo tem aos EUA, à base militar da OTAN nas Malvinas; porque existe uma política de Estado de democratas e republicanos. É por isso que Blinken e a funcionária democrata do FMI vêm a Buenos Aires, e, no dia seguinte, Milei partiu e encontrou-se com Trump nos EUA. Os dois blocos trabalharam com Milei porque Milei é a grande cartada dos EUA contra a China e contra Lula. Contra a China porque Milei está disposto a fazer qualquer coisa, até mesmo afetar os negócios do agronegócio argentino com a China, se os EUA pedirem.
Lá ele colocou em risco a relação com a China. A China já os avisou que vai cortar o seu crédito em yuan, que vai negociar com outros países, que vai comprar carne e soja de outros. Mas Milei continua “durão” porque é subserviente ao Departamento de Estado. Ele também ataca Lula, porque Lula está emergindo com um arco geopolítico muito autônomo em relação aos EUA. Isto é muito visível na posição que ele assume sobre a questão palestina. Aí ele não repete o discurso dos EUA, e bem, eles têm um líder de direita em toda a América Latina, assim como têm Netanyahu no Oriente Médio. Eles querem um líder de direita na América Latina.
Portanto e em resumo, a nível político Milei faz esta proposta de acordo devido aos graves problemas que enfrenta na sua própria arquitetura, na sua própria estratégia; e a isto se soma o segundo grande problema, que é a questão econômica.
Agora, a questão política está obviamente ligada à questão econômica e aí ele enfrenta uma decisão que obviamente terá de lhe trazer, se o povo reagir, problemas graves, que passa pela submissão ao acordo com o Fundo Monetário. Esta organização está realmente começando a exigir que coloque seu corpo em coisas que talvez não estivesse totalmente determinado a fazê-lo antes de chegar ao governo. Agora deve obedecer e não só cumprirá o que Sergio Massa prometeu, mas está disposto a ir muito mais longe. Você não acha que isso pode gerar uma quebra no curto prazo em termos de rebote que terá não só para as pessoas mais humildes, mas também para uma faixa importante da população?
Sim, claro que sim. O problema é que Milei disse desde o início que pretendia fazer um ajuste maior do que o solicitado pelo Fundo Monetário; e Milei está afetando o movimento trabalhista, os setores precários, a classe média; e, à medida que o seu plano avança, para setores cada vez mais importantes da comunidade empresarial. Mas ele tem um plano e está disposto a segui-lo; quer fazer uma remodelação neoliberal total da Argentina, esse é o seu objetivo. Obviamente, com o passar do tempo ele começa a tropeçar uma e outra vez. E toda vez que tropeça, o motivo é o que você aponta: é uma motosserra e é um liquidificador que já pulveriza a renda de todo mundo.
Agora, toda vez que Milei encontra um obstáculo, tem três possibilidades. Ele demonstrou isso nestes sessenta dias. Ele pode escalar, pode negociar ou pode fracassar. Em geral, ele agora está escalando, cada vez que encontra um obstáculo, ele aumenta a aposta; e cada vez que ele entra em conflito, primeiro entra em conflito com um setor do seu próprio partido, depois com os governadores. A questão é que, a certa altura, a escalada irá obrigá-lo, aconteça o que acontecer, a convocar um plebiscito, ele não terá outra escolha. E ele não quer convocar um plebiscito porque se fracassar, está frito.
Mas ao mesmo tempo, se ele brigar com todo mundo e não receber apoio, não terá mais margem de manobra. A outra coisa que ele está dominando é ameaçar e negociar, que foi o que fez agora com os governadores. Ameaça e negocia. O problema desta jogada é que quem tende a vencer é Macri e não Milei. É evidente que quem se beneficia com esta negociação é Macri. Lembre-se que os governadores respondem ao PRO. E aí ele enfrenta o perigo de que Macri assuma o governo e dilua a sua própria autoridade. E em terceiro lugar, se tudo der errado, há sempre o perigo de impeachment. Não esqueçamos que ele tem 38 deputados. Com 38 deputados, ele está totalmente desamparado em um julgamento político.
E o pano de fundo é que Milei age como Bolsonaro ou Trump, mas sem ter a base política e social de Bolsonaro ou de Trump. Ele repete o comportamento dos seus admiradores; mas não tem a base que Bolsonaro voltou a demonstrar na semana passada, quando, ameaçado de ir para a cadeia, convocou uma marcha que encheu as avenidas do Brasil de multidões, demonstrando que os evangélicos, o agronegócio, os pilares da direita de seu movimento, ainda estão vivos. Por outro lado, Trump caminha de fato para a reeleição. Ao contrário, aqui Milei fez seu discurso no Congresso e não conseguiu reunir as pessoas.
Ele não tem ninguém para ganhar as ruas, apenas sequazes ao seu redor e eleitores passivos.
Ele substituiu a rua por esse show burlesco da claque que foi uma zombaria. Isso não é uma base da direita, é uma palhaçada...
Sabe o que aquele cenário do Congresso me lembrou muito? Ao golpista venezuelano Pedro Carmona “O Breve” quando assumiu o cargo no dia em que Chávez foi preso na [base militar de] La Orchila. Em seu discurso, Carmona disse uma coisa ultrajante e teve quem o aplaudisse que o ovacionasse, parecia que ele iria governar pelo resto da vida e durou 24 horas. Este, por enquanto, tem um pouco mais de sorte.
E depois de 60 dias ele não está conseguindo forjar essa base de rua. Não basta que digam que as pesquisas o apoiam. Porque esse é, em todo caso, um apoio passivo, que deriva da penetração da ideologia neoliberal ao longo de vários anos. Ou seja, o macrismo, a mídia instalou em muitos setores populares a ideia do individualismo, do empreendedor, de que o Estado é culpado. Isso penetrou efetivamente. Mas para que isso se traduza em ação política, é preciso que ganhe as ruas. E por enquanto Milei não tem as ruas. Milei não tem um movimento ativo e até a carta repressiva está falhando com ele. Porque são 60 dias e o protocolo antipiquetes é continuamente desrespeitado. Agora dizem que há infiltrados de Cuba, da Venezuela, repetem as coisas mais bobas, mais banais, que não têm nenhuma consistência.
O problema de fundo é que a economia não está funcionando. Esta é a razão última. Se ele pudesse ter mostrado alguma indicação de que seu plano teria sucesso, ele teria obtido mais apoio. Ou seja, ele está deliberadamente criando o caos no atual funcionamento do Estado como parte do seu ajuste. Por exemplo, não consegue nomear os funcionários que devem assinar as resoluções para que haja uma dinâmica normal da administração pública. E o que ele fez foi lançar deliberadamente a superinflação para produzir uma redistribuição regressiva da renda.
O que ele repete é uma estupidez: de que esta é uma inflação herdada; de que esta é uma inflação criada. Pela enésima vez, ele insiste em números que não fazem sentido sobre a hiperinflação que herdou. Ele não herdou nada, foi ele quem criou isso. A criação desta hiperinflação está causando uma recessão deliberadamente induzida, com o único objetivo de criar um elevado nível de desemprego no curto prazo. O que Menem fez em quatro ou cinco anos, ele quer fazer em quatro ou cinco meses: duplicar a taxa de desemprego antes do final do ano e trazê-la para 20% nos próximos anos. E com esse instrumento enfraquecer o movimento popular. Esse é o plano completo.
Neste quadro, anuncia o Pacto de Maio. Tem possibilidades de se concretizar ou é uma nova fantasia que ele tenta criar para ganhar tempo?
Vai depender dessa negociação que tiver com os governadores, e sobretudo vai depender muito do que acontecer nos próximos sessenta dias com a situação econômica. Porque uma coisa é conseguir uma certa redução da inflação e outra é se essa inflação elevada que já foi engolida pela desvalorização gerar outra desvalorização e assim recomeçarmos. Assim como começamos com uma Ley Ómnibus 2, dentro de algumas semanas existe o perigo de começarmos com uma desvalorização 2. Além disso, a recessão econômica corrói, deteriora a arrecadação de impostos. Então, cada ajuste de gastos que ele faz vem acompanhado de uma redução da renda e, portanto, o gasto foi inútil. Demito 50 mil funcionários públicos, poupei um milhão de dólares, mas a receita diminui um milhão de dólares devido à recessão e estou na mesma situação em que comecei.
Acredito que ele tenha carta para o pacto ou para depois do pacto, ou para forçar o pacto, ou se o pacto não der certo, que é o que ele sempre está flertando com a dolarização. A dolarização é uma carta que Milei tem, é um instrumento como o plebiscito. São duas grandes jogadas que Milei guarda caso as coisas não corram bem; se correrem bem, servem para consolidar o seu domínio. As duas têm esses dois sentidos. Ele acena para a dolarização. Por isso nestes sessenta dias produziu uma absorção tão forte dos pesos em circulação. Houve uma aspiração de pesos. Ele não emite nada. Portanto, a base monetária encolhe com a inflação elevada e há menos pesos, o que é uma das condições para a dolarização.
Depois, ele já conseguiu alguns dólares; diz que tem oito bilhões. Claro, tem mais do que antes. E espera que o Fundo Monetário lhe dê, em troca de um pacto, dez ou quinze bilhões. A questão é que isso pode ou não ser suficiente. Além de não conseguir, o FMI não quer. É uma jogada, uma medida muito arriscada. Na verdade, quem quer isso são os bancos internacionais, os setores de serviços, que podem cobrar em dólares e remeter lucros. O Mercado Livre, por exemplo. Esses grupos, que não constituem a maior parte da classe dominante; não aqueles que dependem do mercado interno, e eu diria que também não aqueles que dependem das exportações agrícolas.
Mas é claro que a dolarização fortaleceria o plano econômico e consolidaria Milei como o líder da gangue que atropela o movimento popular. Então, voltamos à estaca zero. Mesmo que a classe dominante não o favoreça, se virem que pode ser um instrumento para derrotar o movimento popular, é isso que lhes importa. Embora a dolarização tenha o nome de tráfico de drogas como aconteceu no Equador, gera perigos de corridas bancárias e corralitos, como aconteceu no Equador, gera o perigo de a China cortar os swaps, há novamente este duplo processo de um aceno da classe dominante e uma tensão com a classe dominante.
Já estamos em março. Tínhamos previsto que tudo ficaria mais difícil contra o governo quando chegássemos em março. Você vê que o movimento popular tem possibilidades e capacidades para movimentar o amperímetro daqui para a frente através das mobilizações e de toda resistência que está sendo forjada, ou isso vai demorar muito?
Olha, a moeda ainda está girando no ar, ainda não sabemos quem vai vencer essa luta. Todos os dias temos algum novo indício de resistências parciais. O “molinetazo” que os jovens da universidade fizeram, a greve dos professores, a greve dos ferroviários, a greve dos trabalhadores aéreos, acredito que a greve da CGT barrou a Ley Ómnibus 1. Temos que ver se tem uma nova greve da CGT para parar a Ley Ómnibus 2. E estamos todos esperando que a CGT acorde e diga: devemos colocar em prática o plano de luta.
Penso que há sinais interessantes. Parece-me que há uma convergência de resistências. Por exemplo, nos movimentos sociais, pela segunda vez, ou nos diferentes setores da esquerda, juntamente com setores do kirchnerismo que fizeram conjuntamente esses 500 bloqueios de estradas na semana passada. Ao mesmo tempo, no dia 24 de março, quando pela primeira vez poderá haver uma única marcha. Sim, estão sendo elaborados dois documentos, mas haverá apenas uma marcha.
Portanto, a dinâmica das lutas continua e Milei não consegue neutralizá-las, reprimi-las ou detê-las. Ainda não sabemos se o plano thatcherista de Milei, que é produzir um golpe estratégico no movimento popular como Thatcher fez com os mineiros em 1984, funcionará. Ele ainda não conseguiu fazê-lo, mas o movimento popular também não conseguiu desafiá-lo e impor-lhe uma derrota como a de 2017, com a reforma da previdência proposta por Macri.
Então aqui estamos diante de um homem que é muito virulento, que vai aumentar a aposta; e a grande tarefa que temos no movimento popular é responder com o mesmo parâmetro, é quebrar a resistência numa sociedade argentina que está muito habituada a resistir aos abusos neoliberais e muito habituada a derrotar os abusos neoliberais. Tenho esperança de que vamos vencer Milei neste jogo.
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Argentina. “Com este governo estamos vivendo uma tragédia social”. Entrevista com Claudio Katz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU