08 Mai 2024
Quando a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos formou seu primeiro Comitê de Atividades Antiamericanas, em maio de 1938, o seu presidente, o democrata texano Martin Dies, identificou o comunismo e o fascismo como ameaças estrangeiras perigosas: “doutrinas antiamericanas” que, dizia, “só podem ser combatidas a partir de um americanismo autêntico”. De fato, a perspectiva aterrorizante de que o fascismo possa “chegar à América”, que tem sido invocado com regularidade desde a década de 1920 até hoje, implica uma premissa tranquilizadora e até lisonjeira: a de que o fascismo não é americano.
A entrevista é de Sebastiaan Faber, publicada por Ctxt, 05-05-2024. A tradução é do Cepat.
É uma noção reconfortante, mas insustentável, como demonstra uma série de estudos recentes. No outono passado, o livro Fascism in America (Fascismo na América), editado por Gavriel Rosenfeld e Janet Ward, destacou a tremenda força e persistência das correntes fascistas na história dos Estados Unidos. Nesta primavera, Jeanelle Hope e Bill Mullen colocam lenha na fogueira com seu livro The Black Antifascist Tradition: Fighting Back from Anti-Lynching to Abolition (Haymarket Books).
Hope e Mullen apresentam três argumentos centrais. Em primeiro lugar, argumentam que as raízes do fascismo remontam para além de Hitler e Mussolini, não apenas ao colonialismo europeu, mas à opressão racial nos Estados Unidos. Não é por acaso que as leis raciais nazistas foram inspiradas nas leis de segregação estadunidenses conhecidas como “Jim Crow”. Em segundo lugar, defendem que a anti-Blackness, a antinegritude, é um princípio fundador e uma característica persistente do fascismo em todas as suas formas: “Não há fascismo em lugar algum, escrevem eles, que não contenha também uma dimensão antinegra”.
Por último, mostram que muitas das primeiras e mais eficazes tentativas de identificar e combater o fascismo foram feitas por dezenas de pensadores, ativistas e organizações radicais – desde Ida B. Wells e Cedric Robinson até Angela Davis, o Congresso pelos Direitos Civis, o Partido dos Panteras Negras e o Black Lives Matter –, que juntos constituem algo que poderíamos chamar de “tradição antifascista negra”. Trata-se de uma tradição parcialmente esquecida e muitas vezes mal compreendida, mas que Mullen e Hope estão convencidos de que pode servir como uma poderosa inspiração para os ativistas progressistas de hoje.
Jeanelle K. Hope, uma acadêmica ativista de Oakland, Califórnia, leciona Estudos Afro-Americanos na Prairie View A&M University. Bill V. Mullen, professor emérito de Estudos Americanos em Purdue, é cofundador da Rede Universitária Antifascista. Conversamos com os dois no início de abril.
Para quem este livro foi escrito?
Jeanelle K. Hope: Como intervenção acadêmica, é a nossa resposta a uma série de novos estudos sobre o fascismo e o antifascismo. Queríamos centrar o debate na experiência antifascista negra e na centralidade da antinegritude em todas as formas de fascismo. Mas também o escrevemos para organizadores e ativistas que buscam táticas e estratégias. A editora Haymarket Books tem sido uma grande parceira em nosso esforço para atingir essas pessoas.
Bill V. Mullen: Também esperamos atingir os estudantes de todo o país, e é por isso que incluímos um temário de curso no livro. Alguns colegas já nos contaram que pretendem utilizá-lo nas aulas, o que é muito gratificante.
Muitas leis estaduais recentes proíbem explicitamente os professores de sugerir que a história dos Estados Unidos está intimamente vinculada com ideologias e práticas racistas. Vocês dão um passo além, argumentando que as próprias origens do fascismo estão deste lado do Atlântico. O que vocês acham do fato de que seu livro possa ser proibido em alguns Estados?
Jeanelle K. Hope: (Risos) Ainda não fomos notificados de que estamos em alguma lista de livros proibidos! Se estivéssemos, seria uma honra. Brincadeiras à parte, sabíamos o que estávamos fazendo. Isto é, a tradição antifascista negra que esboçamos inclui todo um cânone de escritores e pensadores cujas obras já foram proibidas em múltiplas ocasiões. Do nosso ponto de vista, que felizmente é partilhado por muitos, há algo de fundamentalmente valioso na leitura de livros proibidos.
Bill V. Mullen: No nosso posfácio, abordamos explicitamente a recente guerra legislativa contra a liberdade de expressão e a liberdade acadêmica neste país. Mas, como disse Jeanelle, muitas das pessoas sobre as quais escrevemos foram presas, perseguidas ou colocadas na lista proibida por suas ideias e seu ativismo, desde W.E.B. Du Bois e Paul Robeson até Claudia Jones e Assata Shakur. Alguns dos grandes heróis da tradição antifascista negra foram vítimas da repressão e da censura. De certa forma, é irônico que, enquanto muitos de nós tentamos recuperar a nossa voz, estejamos mais uma vez enfrentando a censura. Em todo caso, mostra que as suas ideias continuam a ser uma ameaça ao Estado e à sociedade burguesa dominante.
O que há no momento atual que torna um livro como este urgente e possível? Por um lado, vocês partem do trabalho que vem sendo realizado desde o final dos anos oitenta e começo dos anos noventa; estou pensando em Robin D.G. Kelley, por exemplo. Mas, por outro lado, parece que há agora mais espaço para recuperar figuras radicais associadas ao Partido Comunista dos EUA, ao movimento anarquista e às diversas formas de luta armada contra o Estado. Estarão os tabus da Guerra Fria que persistiram no início do nosso século finalmente se dissolvendo?
Bill V. Mullen: É uma pergunta interessante. O nosso livro é claramente uma intervenção pós-2016: Trump assustou todo mundo, fazendo-nos pensar que o fascismo poderia estar em ascensão neste país. Tanto Jeanelle quanto eu temos experiência como organizadores antifascistas. Desde 2016, como cofundador da Rede Antifascista do Campus, tenho coletado recursos, tanto online quanto por meio de projetos como o The US Antifascism Reader, que montei com Chris Vials.
Mas você está certo ao dizer que o trabalho de Robin Kelley foi muito importante. Ajudou-nos a ver com novos olhos o papel do Partido Comunista, sem o qual a história do antifascismo estadunidense e do antifascismo negro não pode ser escrita. O seu livro Hammer and Hoe, sobre os comunistas do Alabama durante a Grande Depressão, foi publicado em 1990 e inspirou o meu primeiro livro, que se centrava na política cultural negra em Chicago entre 1935 e 1946, a época da Frente Popular Contra o Fascismo. Parte desse livro tratava da Campanha da Dupla Vitória, iniciada pela imprensa negra e pelo jornal Chicago Defender, que buscava derrotar o fascismo, simultaneamente, no exterior e neste país. Jeanelle e eu voltamos a esse momento em nosso livro, onde o identificamos como o primeiro movimento antifascista negro de massa.
Jeanelle K. Hope: Comecei a pensar sobre o fascismo estadunidense e no antifascismo negro na pós-graduação, por volta de 2010, quando comecei a pesquisar a solidariedade afro-asiática na região da Baía de São Francisco durante as décadas de 1960 e 1970, com a participação do Partido dos Panteras Negras, grupos asiático-americanos, e outros radicais não negros. Mais de uma vez me deparei com o Congresso da Frente Unida Contra o Fascismo, que os Panteras Negras organizaram em Oakland em 1969. Na época, eu realmente não sabia bem o que fazer com isso, mas o Antifascism Reader de Bill e Chris me ajudou a ver como a frente antifascista da época serviu como ferramenta para a construção da solidariedade.
Em termos do nosso livro atual, 2016 foi um momento chave, mas também 2020, quando o Black Lives Matter se levantou em protesto contra os assassinatos de George Floyd, Breonna Taylor e outros. O que também tem sido crucial em termos mais acadêmicos é o trabalho sobre o afropessimismo realizado por pessoas como Frank B. Wilderson, Saidiya Hartman e Jared Sexton, que nos oportunizou uma linguagem para falar sobre a centralidade da antinegritude na história nacional e no fascismo global.
O livro de vocês não apenas resgata o arquivo, mas também busca ressignificá-lo por meio do conceito de tradição antifascista negra. Por exemplo, vocês tomam o rótulo de “antifascismo prematuro” que os veteranos estadunidenses da Guerra Civil Espanhola adotaram como uma medalha de honra e o aplicaram a Ida B. Wells, a ativista contra o linchamento da virada do século, a quem identificam como uma “antifascista negra prematura”.
Bill V. Mullen: No nosso livro, como dissemos, afirmamos que o fascismo sempre inclui a antinegritude. Para nós, o ponto chave, mesmo remontando a pessoas como C.L.R. James e George Padmore, era identificar a negritude como um elemento central na análise discursiva do fascismo. Acreditávamos que era uma tarefa importante que não havia sido realizada de forma significativa. Para Frank Wilderson, é na África do Sul que o apartheid se baseia na antinegritude, de onde viaja para o discurso político dos Estados Unidos. Nós, ao vasculharmos o arquivo da escrita antinegra, também localizamos as raízes do pensamento e da escrita antifascista negra.
A história do antifascismo no século XX é marcada por alianças amplas – as Frentes Unidas ou Populares –, mas também pelas divisões entre comunistas, socialistas, anarquistas e liberais, que muitas vezes se manifestavam em divergências táticas e estratégicas. No livro, vocês dizem que isto também era verdade para a tradição antifascista negra. Por exemplo, o Exército Negro de Libertação (BLA), fundado em 1970, denunciou todo tipo de “reformismo” como cumplicidade fascista. Mas o que não vocês não fazem, me parece, é tomar posição nessas disputas. Não avaliam realmente a eficácia das táticas propostas ao longo dos anos. Não fica claro para o leitor, por exemplo, se vocês acreditam que a luta armada era uma tática viável naquela época ou se poderia ser hoje.
Jeanelle K. Hope: Essa é uma observação acertada. Nós não nos pronunciamos sobre a eficácia das táticas. O que tentamos, em vez disso, é expor toda a multiplicidade de táticas utilizadas e sublinhar a importância de combater o fascismo como uma frente unida, mas em múltiplas frentes. Ida B. Wells exortou as pessoas a aproveitarem-se da imprensa, pegarem em armas, juntarem as suas coisas e partirem. Vemos como pessoas como William Patterson lutaram contra o fascismo nos tribunais. Centramos a atenção na mobilização da frente cultural, incluindo a poesia e os quadrinhos. Falamos dos Panteras Negras, das zonas autônomas e de ajuda mútua e da luta travada pelos presos políticos neste país, até aos sequestros de aviões pelo Exército Negro de Libertação.
É claro que, embora não tenhamos avaliado quais táticas foram mais eficazes, temos certeza de que algumas, inclusive as mais violentas, podem ter sido mais alienantes do que outras. Para mim, a chave é que existem, e devem existir, várias formas de combater o fascismo. Afinal, a direita também se organiza de várias maneiras, desde Moms for Liberty até os Proud Boys.
Bill V. Mullen: Em vez de tomar partido, o nosso objetivo foi repensar os termos dos debates. Quando George Jackson estava preso, ele manteve uma correspondência regular com Angela Davis, debatendo com ela definições de fascismo. Jackson pensava que mesmo o reformismo capitalista era uma forma de fascismo, o que significava que o fascismo já estava aqui. Davis discordava dele, argumentando que os Estados Unidos estavam, antes, em um estado de fascismo incipiente. Retrospectivamente, penso que ambos estavam parcialmente certos. Jackson e os Panteras faziam parte do que chamamos de “abolicionismo de primeira onda”. Os movimentos carcerários de Folsom, San Quentin e Attica, que levaram a revoltas em massa, foram o produto de uma interpretação particular do fascismo que veio, em parte, de George Jackson.
Pois bem, acontece que precisávamos dessas rebeliões nas prisões. Qualquer que fosse o seu resultado imediato, representaram um passo político necessário para acabar com o que, na época, era um enorme espectro de opressão racista. Angela Davis continuou o seu trabalho e tornou-se uma importante teórica da abolição das prisões, argumentando, como tem feito até hoje, que o complexo industrial penitenciário, se não for controlado, conduzir-nos-á por um caminho sombrio em direção ao fascismo. Acredito que nosso papel como autores deste livro não é tomar partido nesses debates, mas expô-los e falar sobre eles.
Jeanelle K. Hope: Da mesma forma, o debate da década de 1970 entre os Panteras Negras e o Exército Negro de Libertação sobre a utilidade da política eleitoral é útil para nós hoje, quando o Partido Democrata tenta nos convencer de que a única maneira de salvar o país do fascismo é votar em Joe Biden. Essa não pode ser a única tática.
Já que você nos trouxe de volta ao presente, Jeanelle, você pode compartilhar alguns dos projetos antifascistas mais interessantes ou eficazes que conhece nos Estados Unidos hoje?
Jeanelle K. Hope: Agradeço a oportunidade de destacar iniciativas que podem não ser imediatamente identificadas como antifascistas. Estou muito inspirada e encorajada pelas pessoas que trabalham na Stop Cop City em Atlanta, que estão lutando contra a criação de um campo de testes para novas táticas e armamentos policiais no coração da cidade. Também estou profundamente impressionado com todos que trabalham em ajuda mútua – programas dos quais foram pioneiros os Panteras Negras –, fornecendo de tudo, desde comida até dinheiro, inclusive aqui em Fort Worth, Texas, onde a Funky Town Fridge colocou geladeiras que se tornam espaços centralizados para doações de alimentos em comunidades historicamente negras e pardas. E, evidentemente, as muitas formas como as pessoas têm apelado aos Estados Unidos para que parem de financiar a guerra e o genocídio em Gaza.
Bill V. Mullen: Em nosso último capítulo, chamado Antifascismo Abolicionista, falamos sobre alguns momentos antifascistas menos visibilizados, mas importantes, no movimento Black Lives Matter. O Malcolm X Grassroots Movement, por exemplo, o We Charge Genocide, que surgiu em Chicago depois do tiroteio de Trayvon Martin e denunciou a tortura de jovens negros por parte da polícia de Chicago. O grupo tomou seu nome da petição de 1951 do Congresso dos Direitos Civis, que, como explicamos no livro, utilizou a Convenção das Nações Unidas sobre o Genocídio de 1948 para denunciar o tratamento dispensado aos negros nos Estados Unidos. Esses jovens de Chicago também foram às Nações Unidas.
Vocês disseram que alguns destes projetos não seriam imediatamente identificados como antifascistas. Isto me leva à minha pergunta final: tanto “fascismo” como “antifascismo” foram durante muito tempo termos controversos aqui nos Estados Unidos, talvez a tal ponto que dividem mais do que unem. A demonização generalizada da “Antifa” nos últimos anos também não ajudou. No entanto, vocês invocam ambos os termos de forma proeminente e assumida.
Bill V. Mullen: Sim, porque estamos tentando recuperar o termo “antifascismo” e generalizá-lo, colocá-lo na agenda política de todo o mundo. O termo tem sido controverso desde a Guerra Fria, quando alguns dos voluntários negros que lutaram contra o fascismo na Espanha foram forçados a testemunhar em Washington e solicitados a denunciar o seu próprio antifascismo, o que se recusaram a fazer. Neste país, por outras palavras, o próprio Estado atacou o antifascismo pela sua associação com o Partido Comunista.
Recuperar a tradição antifascista significa recuperar o melhor da história da esquerda estadunidense. Parece-nos também que o nosso termo “antifascismo negro” é teoricamente importante. Queremos que as pessoas usem isso como alavanca para o seu próprio ativismo. Acreditamos que o diálogo e a luta política não estão completos sem alguma compreensão desses dois elementos: a antinegritude como elemento do fascismo e da maravilhosa e importante tradição do antifascismo negro.
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“Recuperar a tradição antifascista negra significa recuperar o melhor da esquerda nos EUA”. Entrevista com Jeanelle Hope e Bill Mullen - Instituto Humanitas Unisinos - IHU