09 Junho 2020
“Entre a fumaça das fogueiras e o cheiro acre de um país [Estados Unidos] queimado, surge uma espiral de caos que, junto com a pandemia, pode se estender para todo o planeta, posto que se trata do país que era o centro do mundo que se foi”, escreve Manuel Castells, sociólogo espanhol, em artigo publicado por La Vanguardia, 06-06-2020. A tradução é do Cepat.
“Por isso, o Senhor enviará uma doença devastadora entre seus fortes guerreiros, e sob a sua glória acenderá um fogo como chama abrasadora” (Isaías, 10, 16).
Em 1944, o catedrático e diplomata sueco Gunnar Myrdal publicou um livro que o tornaria famoso: Um dilema americano. O problema negro e a democracia americana. O dilema que expôs era inequívoco: como é possível que uma das primeiras democracias do planeta perpetuasse a discriminação sistemática contra seus cidadãos negros pelo fato de serem negros?
Suas documentadas oitocentas páginas podem ser sintetizadas em uma simples conclusão. Para aceitar moral e politicamente a escravidão sobre a qual, em parte, a economia estadunidense foi fundada, era preciso considerar os negros subumanos e, portanto, não podiam ser sujeitos dos mesmos direitos. Ainda que uma cruel guerra civil tenha abolido a escravidão, o estigma continuou pela história e reverbera sinistramente quase um século depois.
As múltiplas revoltas e os poderosos movimentos pelos direitos civis, apoiados por brancos progressistas, foram mudando as condições legais dos negros, mas perpetuaram a marginalização social e econômica de muitos deles. Em particular, o racismo foi mantido em amplos setores da polícia e do judiciário. Por exemplo, os sindicatos da polícia são importantes doadores para as eleições dos promotores. No entanto, conforme cresciam a consciência e a educação da minoria afro-americana (14% da população), o abuso e a violência da polícia se tornaram intoleráveis.
Recentemente, houve múltiplos casos em que por qualquer coisa se matava um suspeito ou a alguém de quem se suspeitava que pudesse ser responsabilizado sem respeito às mais elementares normas legais. A polícia, em geral, protegia seus agentes, e os júris e juízes costumavam encontrar uma justificativa para livrar os culpados ou condená-los a penas leves que se convertiam rapidamente em liberdade condicional.
Enquanto isso, qualquer afro-americano que enfrentava um tribunal recebia com frequência uma longa condenação de prisão. Por isso, representam 37% dos que estão na prisão e, por isso, 60% dos homens afro-americanos, de 18 a 40 anos, estão submetidos ao sistema de justiça criminal, seja na prisão ou em liberdade condicional. E representam 55% dos homicídios cometidos pela polícia.
Assim nasceu o movimento Black Lives Matter (as vidas dos negros importam), que despertou as comunidades afro-americanas e milhões de estadunidenses que acreditam em valores democráticos a enfrentar uma realidade intolerável e que, no entanto, se tolera pelas instituições, ao longo do tempo.
É esse clima de racismo perpétuo, em que qualquer novo abuso desata a ira contida, que permite entender a fúria que seguiu o assassinato de George Floyd, em Minneapolis, por um policial branco que apertou o joelho contra o seu pescoço, quando estava no chão, durante oito minutos, enquanto Floyd gritava: “Não posso respirar!”. Até que parou. Sem que houvesse resistência à prisão, pelo simples fato de que um vendedor suspeitou que a cédula de dólares pudesse ser falsa. Como sempre, a acusação imediata ao policial foi simplesmente de homicídio acidental.
A explosão social de indignação e raiva desta vez surpreendeu a todos por sua dimensão. Em todos os estados e em todas as grandes cidades, manifestações massivas e multirraciais enfrentaram a polícia e as noites foram iluminadas por incêndios acompanhados, em muitos casos, de saques, sobretudo nos bairros mais abastados, porque houve uma reação de sair do gueto e levar a violência para fora dos bairros pobres.
Não é por acaso que esta fúria tenha ocorrido em um país no qual a pandemia levou mais de 103.000 vidas, com quase dois milhões de contágios, muito mais frequentes entre as minorias sem seguro médico, com a economia em colapso e 40 milhões de desempregados, com quase nenhuma cobertura para o desemprego. E com um presidente que, refugiado em seu bunker, continua jogando a culpa na fraqueza dos governadores democratas, que acusa os antifascistas Antifa (uma rede ativista com pouca influência) de promover a revolta e que oferece a intervenção do Exército como solução.
Por que esse grau de desordem? Por que os saques? Porque a raiva é de tal dimensão que já não há confiança nas instituições e muito menos em qualquer político. Muita injustiça, muitas vezes. Com uma polícia para a qual tudo é permitido. Mesmo que também existam policiais que se ajoelham em solidariedade aos manifestantes, não basta. Há fome e miséria em todas as partes, e quando não se respeita a lei de cima, também não há razão para respeitá-la de baixo.
Desintegração moral e social de uma ordem que aparece ilegítima ao aplicar a lei de forma diferente, conforme quem for. “Sem justiça, não há paz”, dizem os manifestantes. Ao mesmo tempo em que proliferam grupos violentos de brancos supremacistas que, segundo seu discurso nas redes sociais, querem acelerar a destruição de toda a ordem para que se constituam novos estados por e para os brancos.
É assim que, entre a fumaça das fogueiras e o cheiro acre de um país queimado, surge uma espiral de caos que, junto com a pandemia, pode se estender para todo o planeta, posto que se trata do país que era o centro do mundo que se foi.
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Caos. Artigo de Manuel Castells - Instituto Humanitas Unisinos - IHU