08 Junho 2020
"Em 2008 começaria a “nova era” com Obama eleito. Pura ilusão. Tanto aqui como lá, só a luta e a auto-organização a partir da base da sociedade e estrutura de coalizões locais, regionais, estaduais e nacionais oferece alguma chance para os oprimidos", escreve Bruno Lima Rocha, pós-doutorando em Economia Política, doutor em Ciência Política e professor universitário nos cursos de Relações Internacionais, Jornalismo e Direito na Unisinos.
Charge: Rafael Costa
Em 25 de maio de 2020, George Floyd, um homem afro-americano de 46 anos de idade, foi assassinado por asfixia executada por um policial branco do Departamento de Polícia de Minneapolis (estado de Minnesota). O assassino foi o oficial de polícia Derek Chauvin, permanecendo por 8 minutos e 46 segundos sobre o pescoço da vítima. Os demais policiais, Tou Thao, J. Alexander Kueng e Thomas K. Lane foram cúmplices, sendo que Kueng ajudou a imobilizar o “suspeito”. O crime de George, tentar comprar cigarros com uma nota de 20 dólares, supostamente falsa. Para termos uma ideia de comparação, Donald Trump, o próprio, é um empresário picareta que quebrou seis vezes, entre 1991 e 2009 e “espertamente” não deixou na reta escapando das “leis”. Com bons advogados e excelentes tributaristas, o sistema de Justiça do Império é perfeito para o andar de cima. Desde então os EUA mergulharam numa panela de pressão, começando pela própria Minneapolis cujo estopim foi mais esse assassinato de outro homem negro. Neste artigo, faço uma modesta reflexão de contatos com as esquerdas daquele país que ainda é a potência hegemônica – embora decadente - sobre a nossa América Latina.
Final de julho, início de agosto de 1992, poucos meses após o Levante de Los Angeles (em abril de 92, com dimensões nacionais, ver aqui) eu tive a oportunidade de ir aos EUA, e comecei por Oakland (município de maioria negra), berço do BPP (Partido Pantera Negra, 1966-1975, depois em fase muito decadente até a dissolução em 1982). Tinha relações por correspondência física ainda com algumas agrupações e em especial com a Industrial Workers of the World (IWW, confederação sindical de linha combativa fundada em 1905 e cujo ápice foi até o início dos anos 1930). Em Oakland, fui muito bem recebido pelo APSP (African’s People Socialist Party, Partido Socialista do Povo Africano, fundado em 1972), um racha do A-APRP (Partido Revolucionário de todo o Povo Afircano, All-African People’s Revolutionary Party, fundado por Kwane Nkrumah já na Guiné, em 1968 e chegando aos EUA em 1972). A implantação do A-APRP na prática operou como um racha de gente que foi pantera negra nos anos '70. Fui a mais de uma dúzia de entidades locais, a maioria de base latino-americana, chicana na Califórnia (mexicano-americana) e ao menos vinte atos públicos. Como era de se esperar, já no início da década de ’90, “brown is the new black” e os movimentos político-culturais de origem mexicana, em especial a Chicano Moratorium Coalition (chicano-moratorium.com) tinha mais vida, sangue fervendo, muitas famílias ilegais, de ambos lados da fronteira imposta pelo roubo do território de Aztlán na Guerra da União Americana dos brancos contra o México (1846-1848).
Foi um paradoxo toda a experiência política. Não gostei de nada que vi em termos organizativos. Nem na área da Baía de São Francisco, tampouco em Michigan ou na Philadelphia: partidos negros combativos, mas com discurso sectário entre si; sindicalistas de orientação anarquista com pouca base social; squatters (casas ocupadas coletivas) mais na contracultura (branca) do que como alternativa de luta e moradia; uma boa militância de ecologia social embora distante da massificação; e como era de esperar levas e mais levas de intelectuais ditando regras e estilos de discursos (como dizem na gringolândia “there’s no business like show business!”). Mas culturalmente estava tudo ali, e um sentimento de enorme revolta após o final do terceiro governo da direita republicana, com Bush Pai tentando reeleição. Na Convenção Republicana de 1992, esse facínora da indústria do petróleo e ex-diretor da CIA, o pai do Bush Jr era o mais brando dos correligionários de Reagan. O país estava muito, muito dividido e sofrendo recessão econômica e repressão na chamada guerra contra as drogas.
Se dependesse de visual, de simbologia política, as grandes cidades estariam à beira de uma revolução social. Organizativamente estava tudo muito longe disso. A coisa mudou nesses quase 30 anos e a ilusão da Era Obama acabou. Dez anos depois, já tentando me "institucionalizar" (algo que nunca deu muito certo), tive um professor do primeiro semestre de mestrado em ciência política na UFRGS, o estadunidense Timothy Power. Pedi uma conversa e dentro da interlocução, perguntei "e se um presidente negro for eleito nos EUA?" Ele me respondeu que o sistema de freios e contrapesos iria conter qualquer grande iniciativa desse então improvável presidente. Seis anos depois Obama era eleito, e depois reeleito.
No período da fantasia organizada anterior (a suposta era pós-racial do governo Obama 2009-2016), tive a chance de participar do Left Forum nas edições de 2014 e 2015, ambas realizadas no John Jay College, pertencente à Universidade da Cidade de Nova York (CUNY). Mais importante que isso, nessas duas ocasiões e em outra (também para aprendizado da nobre arte), conheci um pouco do cotidiano de regiões de maioria portorriquenha e dominicana (West Bronx, para conhecer um pouco das raízes “duras” de Puerto Rico na região, no vídeo abaixo) e negra (no Brooklyn, em Brownsville e Bad stuy, para tal ver a clássica abertura do filme Faça a Coisa Certa, com Roie Pérez). Aí sim, gente como a gente, sendo guero pero no gringo (latino de pele clara), convivendo cotidianamente com pessoas modestas, mas orgulhosas de si e de suas raízes (as humble as tough), a identificação é de outra ordem. Para alguém que é militante bem à esquerda e de um país latino-americano, posso afirmar que naqueles bairros é possível uma imediata identificação. O inverso também é verdadeiro.
Toda a babaquice dos EUA permaneceu no período mais recente do Partido Democrata. Estupidezes de tipo clichê tipo: “você é um vencedor”, “faça você mesmo”, “competir para ganhar” e outras excrescências sociológicas. Tampouco o racismo estrutural e institucionalizado recuou de fato. O assassinato de Michael Brown em Ferguson, Missouri (agosto de 2014) foi no governo Obama, o assassinato à luz do dia de um homem negro por um enforcamento foi em seu governo (Eric Garner, julho de 2014, Staten Island, NYC).
As promessas de novo pacto keynesiano e sociedade pós-racial não foram alcançadas. O racismo elegeu Trump e a ignorância não elegeu Hillary, que tampouco vale nada a não ser para seus patrocinadores de campanha. A coisa apertou nas maiores cidades do Império. A primeira versão deste artigo foi escrita enquanto assistia a CNN Internacional (não a emissora terraplanista que é sua franquia no Brasil) cobrir ao vivo o decreto de Estado de Sítio de Trump e a ameaça de militarização federal de todo o território da decadente Superpotência.
Espero realmente que o esforço de toda a gigantesca esquerda americana dê agora o salto de qualidade necessária para ir além de traidores oligarcas do Partido Democrata. Aqui como lá, só saiu New Deal porque à época a CIO (Congresso of Industrial Organizations, Congresso de Organizações Industriárias, 1935-1955) era um bastião da luta sindical e na década anterior e na anterior, a IWW quase levou regiões inteiras a uma revolução social (ver o documentário The Wobblies) , incluindo a epopeia de Joe Hill e a participação de uma coluna internacionalista na Revolução Mexicana (ver o filme Joe Hill). Só saíram os direitos civis porque houve a NAACP (National Association for the Advancement of Colored People, Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor, fundada em 1909), a Convenção Batista do Sul, o racha a Nação do Islã (Nation fo Islam), e infelizmente o martírio de Malcolm X (fevereiro de 1965) como o de Martin Luther King Jr (em abril de 1968). Só saíram as cotas sociais pelo esforço descomunal dos panteras negras e seus aliados.
Essa é a AmeriKKKa como ela é, para afro-americanos e latino-americanos, para nativo-americanos. Não é na cabeça dos entreguistas colonizados socialmente brancos que vão para lá. Combater essa condição também é urgente, conforme veremos na sequência, na incrível (em duplo sentido) cobertura ao vivo da Bobo News (a emissora de notícias 24 horas do clã do Cosme Velho e que no governo Bolsonaro, faz oposição ao infeliz que ela mesmo ajudou a eleger).
Não tem um infeliz na Bobo News falando da enorme e gigantesca base social organizada, diversa e pluriétnica, com base no que nos EUA denominam grass roots movements. Como eu disse acima, ninguém me contou não. A maior organização jornalística do país tem mais de uma dezena de jornalistas e freelas morando lá e ninguém fala nada que preste. A repórter que acompanhou o ato em Manhattan na noite de domingo 31 de maio parecia assessora de imprensa da polícia de NYC. Dá muita vergonha ver esse bando seleto de coleguinha deslumbrado, que se sente branco no Hamburguestão e é – seria - eleitor do Partido Democrata. Estavam nos seus postos "meritocráticos", “curtindo a vida adoidado”, até que o reality show momentaneamente foi interrompido. Detalhe: eu nem me incomodo de comentar o famigerado Manhattan Connection, porque ali, desde a versão com o carcomido Paulo Francis (que vergonha, que decadência) até a distopia falante do Diogo Mainardi é a antessala do viralatismo de pior calanha.
Infelizmente falo de quem se diz repórter ou “analista”. Durante a cobertura, quase não se lembravam dos oito anos de governo Obama que não serviram para nada na vida de afro-americanos, latino-americanos e a vida da maioria subempregada ou endividada.
Charge: Rafael Costa
A AmeriKKKa está sem máscaras com seus 43 milhões de desempregados, mas há algo de novo no ar além de vírus e Fake News. Vocês repararam que não estão sendo registrados saques ou incêndios em bairros de maioria negra ou latina? Em 1992, infelizmente, a rebelião em Los Angeles levou á destruição de East LA, South Central e a região de Compton. Ou seja, afro-americanos e latino-americanos incendiaram onde vivem ou sobrevivem.
Agora, se as imagens da Bobo News ou na CNN International não estão adulteradas, os bairros chiques ou moderninhos de Manhattan estão sendo o local das manifestações. A mão de obra deslumbrada da Famiglia Marinho fica horrorizada com uma vitrine quebrada (isso me faz lembrar do clássico documentário de 1979, 80 Blocks from Tiffany’s), mas não se lembra da dívida dos universitários, do desemprego absurdo e das hipotecas atrasadas. O mesmo ocorreu na capital do Império, Washington DC; os conflitos, a agressão policial se deu no em torno da Casa Branca, no domingo a sede da pelegada de lá, a AFL-CIO (central sindical pelega), foi atacada. Repito, 43 milhões de desempregados e os burocratas corruptos só pedem votos para Joe Biden (nem sequer garantiram a vitória do Bernie Sanders).
Confesso, ficaria muito brabo se visse os bairros do Bronx, algumas zonas do Brooklyn, ou não o Harlem ainda não gentrificado pegando fogo. Mas com mais de 100.000 mortos pelo coronavírus - a maioria destes negros e latino-americanos (como nós, um país de maioria negra e latino-americano) - não me comovo com uma ou duas vitrines de grife. Em Washington, que eu saiba, não incendiaram a região Nordeste e sinceramente não vi nada semelhante em nenhuma capital ou grande cidade do Império.
Na segunda-feira dia 1º de junho no início da noite o empresário picareta (faliu seis vezes e ficou mais rico!) e canastrão de reality show Donald Trump militariza Washington DC e despacha a Guarda Nacional para todo o país. Ameaça a federalização de municípios, condados e estados que não coloquem todo o seu dispositivo policial nas ruas. Isso num pais que sequer tem saúde pública universal.
Para quem pensou, imaginou, delirou com os anos 60 nos EUA, esse é o lado da rebelião da juventude americana que os clichês não mostram. Para quem está assustado com o Trump, eu trago a canção “Ohio” (1970, de Crosby,Stills, Nash & Young): "Teen soldiers and Nixon coming, we're finally on our own...".
A AmeriKKKa agora espanca de novo a maior parte de sua população, decretando o desemprego e o endividamento eterno, pagando a casa através de hipotecas e devendo para as instituições universitárias, públicas ou privadas. No pesadelo ameriKKKano, o maior dos perigos é ficar doente, além de ir preso. Lá está a maior população carcerária do planeta, com 69 para cada 100.000 habitantes, mais de dois milhões e 200 mil presos, além de quase 5 milhões em condicional ou no aberto custodiado. Sonho de quem?
No segundo semestre de 2008, em meio a uma recessão absurda após o criminoso estouro da bolha imobiliária, a farsa com nome de crise, com 500 mil empregos formais sendo incinerados a cada semestre, os Estados Unidos entraram em processo de “encantamento político”. Barak Hussein Obama, então senador democrata por Illinois, venceu as primárias contra ninguém menos do que Hillary Rodham Clinton, depois da desistência dos demais concorrentes. O ex-estudante de Columbia e Harvard iria concorrer contra o senador republicano John McCain (1936-2018).
McCain tinha estirpe, filho do ex-comandante geral das forças imperialistas no Vietnã, ele mesmo como piloto da Marinha do Império foi prisioneiro de guerra por mais de cinco anos (1967-1973). Entrou na carreira política como republicano na Era Reagan chegando ao Senado em 1987, sendo parte da bancada do especulador fraudulento Charles Keating, “The Keating 5” era o nome dos representantes do fraudador). Ainda assim escapou meio incólume e não se somou na neurose absurda de cretinos como o radialista Rush Limbaugh, Tea Party e companhia. Na sua chapa estava o embrião da alt-right, com a impagável ex-governadora do Alaska, Sarah Palin, concorrendo como vice e dando um vexame após o outro em aparições públicas. McCain perdeu as eleições e os oligarcas republicanos perderam o seu partido de vez; a direita política chegou ao auge do cinismo com Bush Jr, mas nada é comparável com as aberrações na era da Fake News.
Obama ganhou e prometeu um novo pacto de tipo keynesiano e a inauguração da Era Pós-Racial. Percebam, estou falando da política doméstica dos EUA, em escala mundo seguiu a presença militar e os assassinatos diários de possíveis opositores em países de maioria islâmica. Dentro das fronteiras, o ovo da serpente chocava com a direita à direita do Tea Party e, no dia a dia das comunidades de maioria negra ou latino-americana, o inferno continuava. Crescimento econômico com empregos precários e taxas elevadas para qualquer empréstimo. Obama não era FDR e nem o tecido social da pobreza estadunidense estava à altura do desafio de obrigar um presidente a governar conforme prometera. Não saiu nem o Obama Care completo e a saúde continuou sendo a melhor forma de matar a economia das famílias.
Durante o governo Obama o assassinato de jovens negros seguiu o mesmo, tanto pelas forças policiais como pela insanidade de um país viciado em medicamentos semelhantes ao ópio (a praga dos opioides), mas com a plena liberação de armas largas ou de repetição automática. Obama cantou “amazing grace” em junho de 2015, no funeral de dez pessoas negras, fuziladas por um supremacista ao invadir uma congregação afro-americana. Até me emocionei, tentando esquecer que esse desgraçado autorizou centenas de bombardeios por drones (540 especificamente, ver Obama’s Final Drone Strike Data) e centenas de operações especiais (ver Obama administration expands elite military unit’s powers to hunt foreign fighters globally) incluindo o controle e disputa de rotas no tráfico de ópio no Afeganistão (ver How the US military's opium war in Afghanistan was lost). Como eu disse, são temas diferentes, não deveriam ser, mas acabam sendo.
Em março de 1991, Rodney King é espancado por quatro policiais, três brancos. Todos absolvidos um ano depois. Resultado, abril de 1992, comunidades chicanas e negras de Los
Angeles convocaram os protestos. Em 2008 começaria a “nova era” com Obama eleito. Pura ilusão. Tanto aqui como lá, só a luta e a auto-organização a partir da base da sociedade e estrutura de coalizões locais, regionais, estaduais e nacionais oferece alguma chance para os oprimidos. Não é clichê de panfleto não, é o manual prático de ciência política das maiorias pós-coloniais.
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A verdadeira face da AmeriKKKa: uma crítica aos olhares colonizados vindos do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU