17 Março 2018
“Acredito que efetivamente os Estados Unidos são uma grande potência em decadência. Este é o principal aspecto da questão. Mas, o declive não é linear, nem rápido, possui contratendências”, escreve o jornalista e analista político uruguaio Raúl Zibechi, em artigo publicado por La Jornada, 16-03-2018. A tradução é do Cepat.
Em períodos de caos sistêmico global é fácil confundir a realidade com os desejos. Mais ainda quando há dados fidedignos que dão margem para pensar que aquilo que desejamos durante longo tempo parece estar se aproximando de forma iminente. No entanto, aqui aparecem os problemas, os desvios óticos que nos levam a conclusões erradas. De algum modo, todos caímos em simplificações que, a longo prazo, se mostram incorretas.
Desejamos, ao menos eu desejo, o fim deste sistema, imperialista, colonial, patriarcal e capitalista. Mas, seria errôneo acreditar que existem leis que conduzam ao sistema à ruína. Olhemos apenas alguns anos atrás, quando analistas sérios e bem documentados vaticinaram o peak oil, o pico das descobertas de petróleo, que levaria inevitavelmente ao fim da civilização baseada nos hidrocarbonetos.
Pensávamos que a partir da primeira década do século começaria um declive inexorável e que os preços seriam tão elevados que provocariam mudanças abruptas e revolucionárias. Como sabemos, isso não está acontecendo. Os Estados Unidos se colocaram à cabeça da extração por fratura hidráulica (fracking), uma técnica muito poluidora, e está batendo todos os recordes de produção, levando os preços a níveis muito inferiores aos de três ou quatro anos atrás.
É apenas um exemplo, entre muitos. Nós, que nos formamos em Marx, aprendemos – graças aos maus divulgadores e ao desejo de acreditar neles – que o capitalismo está condenado a desaparecer por supostas leis que governam a economia e que o conduzirão ao colapso. Estes debates ocorreram um século atrás e ainda sobrevivem. Não me refiro àqueles que estão olhando o horizonte e que veem a tempestade se aproximando, mas, sim, aos que fazem previsões a partir de um escritório, guiados por alguma teoria.
Quero apresentar dois exemplos, um que abona a tese da decadência dos Estados Unidos e outro que a contradiz.
O economista David P. Goldman sustenta, em um documentado trabalho em Asia Times, que a imposição de tarifas ao aço e alumínio não tem nenhuma possibilidade de rejuvenescer a base industrial dos Estados Unidos. Sua análise é contundente. Afirma que a partir dos anos 2000 há um declive na inovação e produtividade nos Estados Unidos, porque o capital de risco deixou de investir na indústria manufatureira.
A causa é tipicamente capitalista: aversão aos riscos pela queda da taxa de lucro. A China fez o contrário, porque não é um capitalismo selvagem, mas, sim, um capitalismo de Estado, que se dedica a proteger e subvencionar as indústrias estratégicas para que a nação não volte a ser humilhada, como aconteceu com as três invasões que a prostraram (as guerras do ópio no século XIX e a invasão japonesa no século XX).
Os investimentos em tecnologias de ponta caíram estrondosamente nos Estados Unidos, sendo apenas um quinto do que eram em inícios de 2000. A participação dos Estados Unidos nas exportações mundiais de alta tecnologia caiu de 20%, em 1999, a pouco mais de 5%, em 2014, ao passo que a China aumentou de 3 para 26%, no mesmo período, destaca Goldman.
Afirma que os Estados Unidos nunca enfrentaram um competidor como a China. Washington se limita a colocar impostos, conforme fez com os painéis solares, mas Pequim continua ganhando simpatias ao se oferecer como líder da liberdade de comércio. Os papéis se inverteram e agora os Estados Unidos estão se convertendo, nas palavras de Goldman, em um produtor e exportador de produtos agrícolas e matérias-primas ou semielaboradas com uma base industrial atrofiada.
A segunda análise foi publicada dias atrás, pelo jornal El Economista, e mostra que os Estados Unidos se tornarão, a partir de outubro, o primeiro produtor de petróleo, deslocando Arábia Saudita e Rússia, e colocando a OPEP na defensiva. Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), graças ao fracking a nova produção dos Estados Unidos cobrirá mais da metade do crescimento mundial da demanda de petróleo até 2023.
Com 10 milhões de barris diários, os Estados Unidos conseguem uma sólida independência energética e, além disso, passam a ser grande exportador. Segundo a AIE, em 2019, os países que não pertencem à OPEP (como Canadá, Estados Unidos, México, Rússia e Brasil, entre outros) produzirão 60% do petróleo mundial.
Enquanto a produção de petróleo da Venezuela cai aos níveis de 1940, a dos Estados Unidos bate todos os recordes históricos e, questão mais surpreendente ainda, as exportações crescem de forma geométrica (89% em 2017), ao ponto que se estima que 40% da demanda das refinarias asiáticas serão cobertas com petróleo estadunidense. De país historicamente dependente das importações petroleiras, passou a ser em muito poucos anos a grande potência energética global.
Chegados a este ponto, parece necessário fazer algumas precisões.
A primeira, é que acredito que efetivamente os Estados Unidos são uma grande potência em decadência. Este é o principal aspecto da questão. Mas, o declive não é linear, nem rápido, possui contratendências, como a que destaco acima. Isto quer dizer que a transição para a hegemonia da China será mais longa e complexa do que podíamos prever anos atrás e, certamente, no caminho, haverá acordos e crises que acelerarão e retardarão, por sua vez, tanto a decadência, como a ascensão de novas potências.
A segunda questão se relaciona aos modos de compreender e analisar o que está acontecendo. É muito habitual cair na tentação de eliminar aqueles dados que contradizem nossas previsões e, sobretudo, nossos desejos. Até certo ponto é uma tendência inevitável, mas deveríamos estar alertas para minimizar este risco.
A terceira é que não há leis objetivas capazes de colocar fim a este sistema de morte. Só a atividade humana, coletiva e organizada, por sua vez, pode conter esta barbárie e abrir frestas no muro da dominação.
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Contratendências da decadência dos Estados Unidos. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU