01 Junho 2020
"O conjunto do segredo fiscal, da opacidade, da ausência de informações, de emprego de contabilidade criativa, do uso ampliado de empresas fantasmas e do fato inequívoco que boa parte das empresas dos paraísos fiscais são, de fato, subsidiárias de instituições bancárias renomadas formam a estrutura da chamada Economia Paralela ", escreve Bruno Lima Rocha, pós-doutorando em Economia Política, doutor em Ciência Política e professor universitário nos cursos de Relações Internacionais, Jornalismo e Direito na Unisinos.
Com o presente texto que segue (em formato de difusão científica) retomamos as séries de economia política internacional, entrando nos temas mais complicados da análise do capitalismo, ainda no interlúdio entre o período pós-bola/crise/farsa de 2008 e o momento que se avizinha, o pós pandemia, com a evidente mudança na hegemonia mundial. A China irá ameaçar a liderança dos EUA em alguns setores, ainda ficando atrás na presença militar, mas, definitivamente, avançando para desafiar a hegemonia do dólar. Por outro lado, algumas características estruturantes do capitalismo, como um sistema dominante mundial, irão permanecer, dentre estas o uso permanente dos vulgarmente denominados “paraísos fiscais”, cuja denominação mais apropriada entendo que sejam as Jurisdições Especiais (JE). O tema das JE está presente desde o final de 2016, quando começamos observar o acionar da Cooperação Jurídica Internacional e a punição do crime financeiro através das prerrogativas imperiais do Departamento de Justiça dos EUA. Antes disso, em nosso acúmulo de estudo, a evidência deste emprego em escala global se observava na crise e na absurda evasão de divisas na bolha imobiliária de 2008, quando este analista fez ecoar os estudos do especialista da contra-inteligência financeira da França, o comissário nacional Jean François Gayraud. Gayraud tem posições conservadoras, pois em última análise, seu trabalho tenta “limpar” o sistema capitalista, mas como investigador, demonstra as evidências do nexo financeiro-criminal em todas as grandes crises financeiras, também demonstrando o papel central na usurpação de riquezas coletivas através dos “paraísos fiscais”.
O planeta vive um sistema de economia paralela e, para tal, o emprego e uso dos chamados paraísos fiscais (JE) criaram sistemas e regulamentos que ajudam a ocultar o verdadeiro dono dos ativos depositados em seus domínios. Trata-se de um mecanismo, em escala global, em que todos os detentores de riquezas, pessoas físicas ou jurídicas, advindas de atividades econômicas legais ou ilegais, podem vir a usar. Escritórios de advocacia especializados, empresas de contabilidade com escala planetária, auditorias que entram em permanente conflito de interesses são algumas das partes que compõem este mecanismo. De acordo com Joseph E. Stiglitz e Mark Pieth (2017, p.10) a engrenagem conta com estruturas profissionais e até de governos inteiros:
Com a assistência de escritórios de advocacia e de contabilidade (e, às vezes, de governos que oferecem decisões tributárias secretas autorizando tais estruturas, como revelado pelos Luxembourg Leaks, referidos informalmente como os LuxLeaks), empresas multinacionais transferem os lucros do local da atividade econômica para jurisdições com baixa ou nenhuma tributação através de manipulações de preços de transferência e outros artifícios para realização de transferências para o exterior, fazendo assim com que o local da atividade econômica arque com o custo social.
Enquanto o sigilo for mantido, os potenciais sonegadores (através de escritórios de direito tributário e contabilistas internacionais) e sonegadores de impostos, bem como os lavadores de dinheiro, provavelmente tentarão tirar proveito dessas jurisdições para ocultar seus ativos. A questão principal, portanto, é sigilo e, de maneira mais geral, opacidade. Precisamos de um código de conduta acordado internacionalmente que garanta transparência de propriedade e rastreabilidade de ativos para seus proprietários finais. Ao contrário do que se imagina, os intentos de autorregulação após a crise de 2008 reforçam ainda mais as capacidades de operações das empresas especializadas neste tipo de atividade, incluindo os maiores bancos do planeta.
As origens dos chamados paraísos fiscais, contemporaneamente denominados Jurisdições Especiais (JE), remonta ao último quarto do século XIX. Assim, a atração de depósitos de pessoas físicas e jurídicas de não residentes é concomitante ao período da corrida imperialista, da disputa intracapitalista do final do século XIX, período esse que corresponde ao nascedouro do Velho Imperialismo. A atração se deu a partir de legislações de dois governos estaduais que formam a União Americana, Nova Jersey e Delaware, nesta ordem cronológica (PALAN, 2009). Dois países europeus, a Confederação Helvética (Suíça) e o principado de Liechenstein (localizado entre a já citada Suíça e a Áustria), copiaram a legislação pró-mercado, pró-corporações de Nova Jersey e Delaware, e os internalizaram no continente europeu no início dos anos 1920.
As legislações dos dois “paraísos” on shore (ou seja, dentro da plataforma continental) estadunidenses se baseavam na atração de sedes, matrizes de corporações empresariais, e aplicavam leis que não evitavam as fusões e aquisições e tampouco tributavam o balanço final de grandes empresas ali legalmente baseadas. No epicentro consolidado das JE europeias no período entre guerras está a cidade suíça de Zurique, incrementando o modelo de legislação confidencial e ultrassecreta, garantindo a legalidade de empresas cujo único registro público são uma caixa postal dentro de agência regular dos correios (PALAN, 2009). Já a “contribuição britânica” para a legislação em defesa de empresas não residentes é a criação de uma figura jurídica em que o empreendimento tem sede física em um país, mas não é tributado como as demais pessoas jurídicas comuns e correntes do lugar. Essa lei favoreceu, e muito, aos conglomerados e instalações nas colônias britânicas, servindo como um incentivo para o investimento em possessões, protetorados, Estados fantoche e colônias inglesas (PALAN, 2009).
O senso comum associa as JE a Estados independentes em ilhas paradisíacas ou então protetorados, territórios ultramarinos de antigos impérios europeus. Podem ser estes os “paraísos” mais conhecidos, mas está distante de ser a caracterização correta. Assim como se pode afirmar quanto ao uso, o emprego destas Jurisdições Especiais com segredo empresarial quase absoluto. Não são apenas políticos de duvidosa procedência ou empreendedores da economia do crime a operar estes circuitos. Na década de 1980, os depósitos em JE equivaliam a mais de um quarto dos investimentos das Transnacionais (TNCs) estadunidenses e cerca de um terço do lucro obtido no estrangeiro (HINES JR & RICE, 1990, p.31).
As JE não ganharam a dimensão global na Era Thatcher-Reagan, mas sua condição absoluta de mecanismo fundamental para os depósitos ultramarinos ou isentos de tributação se deu nos anos 1980. O mecanismo conjunto em que as TNCs operam através de holdings localizadas formalmente em JE vem num crescendo desde então. O conjunto do segredo fiscal, da opacidade, da ausência de informações, de emprego de contabilidade criativa, do uso ampliado de empresas fantasmas e do fato inequívoco que boa parte das empresas dos “paraísos fiscais” são, de fato, subsidiárias de instituições bancárias renomadas formam a estrutura da chamada Economia Paralela (STIGLITZ & PIERCE, 2017, p.7).
O uso ampliado destas Jurisdições Especiais amplia a disputa por atração de investimentos, através da oferta sempre mais vantajosa para o capital, diminuindo a exigência de contrapartidas, flexibilizando ou abrindo mão de garantias sociais e do mundo do trabalho, e ainda precarizando as condições materiais de vida em amplos territórios do planeta. A concorrência entre os países para atração de investimentos – e não apenas aplicações financeiras, de capital volátil que entra e sai dos registros de movimentação financeira dos Estados – vem se dando na forma de concorrência predatória. Os relatórios da Comissão Independente para a Reforma da Tributação Empresarial Internacional (ICRICT) destacaram dois dos aspectos mais sujos da globalização: a transferência de preços no atual sistema tributário empresarial propicia um arcabouço fácil, dentro do qual as multinacionais podem evitar a tributação; e também alimenta uma corrida ao fundo do poço, na medida em que diferentes países competem para atrair negócios pela redução de seus impostos (STIGLITZ & PIERCE, 2017, p.31).
Ao contrário dos respeitados economistas que assinam o relatório citado acima, não nutro ilusões nem quanto à autorregulação coordenada e tampouco no compromisso das tecnocracias estatais quanto à vigilância no segredo e a opacidade do capitalismo em sua etapa de absoluta acumulação financeira. Ou seja, embora sejam temas densos, o que nos obriga a buscar estudos sérios, comprometidos com as soluções e não com o cinismo dos modelos neoclássicos (neoliberais no sentido comum), é apenas e tão somente a auto-organização da sociedade, especificamente das entidades e movimentos em defesa da justiça social. Somente uma forma de vida equilibrada com os biomas podem garantir a luta sem tréguas contra a perversa forma de exploração e domínio capitalista no século XXI.
Para saber a quem pertence a titularidade de milhares de empresas em Jurisdições Especiais, que agem sempre no limite ou além da própria legalidade dos países, acesse: OffShore Leaks.
HINES, J.R. & RICE, E.M., 1990. Fiscal Paradise: Foreign Tax Havens and American Business, Papers 56, Princeton, Woodrow Wilson School - Discussion Paper.
PALAN, Ronen. History of Tax Havens, 2009. Documento eletrônico disponível neste link. Consulta realizada em 28/05/2020.
STIGLITZ, Joseph E., PEITH, Mark Superando a economia paralela, Análise No 20, 2017, Friedrich Ebert Stifung Brasil, fevereiro de 2017, documento eletrônico disponível neste link. Consulta realizada em 28/05/2020
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Paraísos fiscais e a economia paralela no Sistema Internacional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU