Por: Patricia Fachin | 21 Junho 2018
Depois de ter se transformado na “fábrica do mundo” e de seu PIB ter superado o dos EUA, a China também se tornou o “banco do mundo” e “estimula o crescimento de todo o continente asiático” por meio da iniciativa “Um cinturão, uma rota” (One Belt One Road, ou OBOR), resume José Eustáquio Diniz Alves à IHU On-Line, ao comentar a ascensão econômica e política da China. Essa iniciativa, esclarece, “visa construir redes de comércio e infraestrutura conectando a Ásia com a Europa e a África ao longo dos antigos caminhos comerciais da Rota da Seda, objetivando o compartilhamento do desenvolvimento e da prosperidade”. Um exemplo dessa proposta, diz, é a inauguração da recente linha ferroviária que liga Londres à estação de Yiwi, no sul de Xangai. “Trata-se de uma interligação de Pequim e Xangai com o mundo”, pontua.
Na entrevista a seguir, Alves explica a relação da China com o BRICS, especialmente com a Rússia e a Índia, que formam, juntamente com os chineses, o “triângulo estratégico” que quer dominar a Eurásia. “A Eurásia é a faixa contínua de terra mais extensa do mundo. Ela é berço das mais antigas e importantes civilizações do passado. Sua extensão territorial é de 54,8 milhões de km² (mais de seis vezes o tamanho do Brasil) e possui cerca de dois terços da população e do PIB mundial. Quem controlar a Eurásia, controlará o mundo. Mas as alianças já passaram por muitas reviravoltas”, frisa.
De acordo com José Eustáquio Diniz Alves, “a ascensão da China e dos países aliados do Oriente pode significar o fim do modelo econômico e político do liberalismo democrático burguês e o fim da ordem internacional fundada a partir da reunião de Bretton Woods, em 1944”. Em seu lugar, passará a vigorar o “Consenso de Beijing”, que aposta na “promoção das economias em que a propriedade estatal continua tendo um peso dominante, na promoção de câmbio competitivo, com mudanças graduais para evitar choques e controle cambial para escapar da especulação predatória, em políticas de promoção das exportações com proteção da indústria local e dos setores estratégicos do país, em reformas de mercado, mas com controle das instituições políticas e culturais, e na centralização das decisões políticas e das estratégias de projeção nacional”. Essa possível mudança, adverte, que levará à “ascensão da Ásia e à emergência do processo de Orientalização do mundo, sob liderança chinesa, pode não ocorrer de maneira pacífica diante do declínio relativo dos EUA e do Ocidente. Infelizmente, a Armadilha de Tucídides é como uma espada de Dâmocles suspensa sobre a ordem internacional e a possibilidade de paz mundial”.
José Eustáquio | Foto: Unicamp
José Eustáquio Diniz Alves é doutor em Demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – Ence/IBGE.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o significado do encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un, em Singapura, na semana passada?
José Eustáquio Diniz Alves - O encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un, em Singapura, na ilha de Sentosa (que significa paz e tranquilidade em língua malaia) foi um importante passo para evitar um conflito nuclear iminente, depois de meses de agressões verbais, de insultos pessoais e de disputa sobre o poderio mútuo de destruição. Kim havia revelado ter em sua mesa um botão com o qual poderia iniciar uma guerra nuclear. E Trump contra-atacou pelo Twitter dizendo ter "um botão nuclear maior, mais poderoso do que o deles, e que funciona". A possibilidade de um conflito bélico era real, mesmo porque não houve um tratado de paz após o fim da guerra entre as Coreias, em 1953. A chamada zona desmilitarizada entre as Coreias, no paralelo 38, é na verdade uma das áreas mais militarizadas do mundo. Mesmo sob segredo militar, dizem que a Coreia do Sul tem um “Sistema de Arma Autônomo” (AWS, na sigla em inglês), comandado por Inteligência Artificial, capaz de responder às ameaças recebidas de artilharia e mísseis, sem a supervisão humana.
Portanto, o mundo respira aliviado com a possibilidade de uma desnuclearização da península coreana. O estranho é que o presidente dos EUA não tenha tocado na questão dos direitos humanos e nem exigido compromissos de mudanças de um regime reconhecidamente enclausurado e ditatorial. O placar foi Kim Jong 1 x 0 Trump.
IHU On-Line - Qual foi o papel dos EUA e de Trump em particular no acordo de paz entre as duas Coreias e, de outro lado, qual é o papel do chamado RIC (Rússia, China e Índia) nesse processo?
José Eustáquio Diniz Alves - A posição histórica dos EUA sempre foi por uma "desnuclearização completa, verificável e irreversível” da Coreia do Norte. Mas o acordo assinado foi pela “desnuclearização da península coreana”. Sem qualquer contrapartida, Trump ainda concordou em encerrar os “jogos de guerra” (exercícios militares conjuntos que os EUA realizam com a Coreia do Sul). Esta atitude surpreendeu o Japão e a Coreia do Sul, aliados dos EUA e das forças ocidentais, deixando embaraçado até mesmo o Pentágono. Evidentemente, a menor presença americana no leste asiático agrada fundamentalmente à China, em primeiro lugar, e à Rússia, em segundo lugar.
Nos dias imediatamente anteriores ao encontro histórico de Singapura, houve duas Cúpulas emblemáticas. Nos dia 8 e 9 de junho, o G7 (grupo formado pelas grandes economia capitalistas — Estados Unidos, Canadá, França, Reino Unido, Alemanha, Japão e Itália) se reuniu em Charlevoix, no Canadá, onde o destaque foi o aumento da tensão entre os EUA e os outros seis membros, que estão insatisfeitos com a saída dos EUA da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento - TTIP, do Acordo de Paris (do clima), do Acordo nuclear com o Irã, além das críticas à Otan e das medidas para o enfraquecimento do NAFTA - Acordo de Livre Comércio da América do Norte. Trump chegou atrasado e saiu mais cedo do encontro, não assinou o comunicado conjunto da Cúpula de Charlevoix e ainda acusou o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, de ser fraco e desonesto. A política de Trump, do “America first”, parece estar rompendo com a aliança ocidental e com a ordem internacional global pós-Segunda Guerra.
Enquanto os líderes da ordem liberal-burguesa se desentendiam no Canadá, os países asiáticos se encontravam na 18ª cúpula da Organização de Cooperação de Xangai - OCX, ocorrida nos dias 9 e 10 de junho, na cidade litorânea chinesa de Qingdao. Foi a primeira reunião de cúpula da OCX depois que a Índia e o Paquistão foram aceitos como membros plenos em junho do ano passado. Assim, os oito membros plenos da OCX são China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Uzbequistão, Índia e Paquistão. A OCX também tem quatro estados observadores e seis parceiros de diálogo. Os oito países membros respondem por mais de 60% do território eurasiático, quase metade da população global e cerca de 30% do PIB mundial (em poder de paridade de compra – ppp, na sigla em inglês). O PIB conjunto dos países da OCX é maior do que o PIB total do G7.
A cúpula de Qingdao foi a primeira a contar com os líderes do triângulo estratégico (RIC) e ainda teve a presença do presidente do Irã, Hassan Rohani. O presidente Xi Jinping resumiu tudo dizendo: “A cúpula de Qingdao é um novo ponto de partida para nós. Juntos, vamos içar a vela do Espírito de Xangai, quebrar ondas e iniciar uma nova viagem para nossa organização”. Ficou subentendido que é a viagem rumo à ascensão do século asiático e rumo à hegemonia chinesa global. Uma península coreana desnuclearizada e com menor presença americana só fortalece Rússia, Índia e China, que são potências nucleares da Eurásia e aliados no âmbito da OCX.
IHU On-Line - Em artigo recente o senhor afirma que está se formando uma aliança entre Rússia, China e Índia (RIC), que fazem parte do BRICS, enquanto Brasil e África do Sul ficam de fora. Quais são os fatores que favorecem essa aliança, por que ela está sendo feita neste momento e qual dos três países tem mais poder de barganha nessa aliança?
José Eustáquio Diniz Alves - O termo BRIC foi inventado pelo economista Jim O'Neill, do banco de investimento Goldman Sachs, em 2001, com o objetivo de indicar aos investidores globais as oportunidades de lucro nos grandes países “emergentes” do mundo: Brasil, Rússia, Índia, China. Posteriormente foi incluída a África do Sul (South África) e o termo BRIC se transformou em BRICS. Desde 2009, os líderes do grupo se encontram em cúpulas anuais. Porém, Brasil e África do Sul (o começo e o fim do acrônimo) sempre foram países menores em termos políticos, econômicos e militares e ficaram ainda menores depois da crise econômica e do imbróglio político que afastou seus líderes mais tarimbados, os ex-presidentes Lula e Jacob Zuma.
Mas os fatos que vieram fortalecer o grupo RIC ocorreram pela conjunção de três fatores recentes. O primeiro aconteceu durante o 18º Congresso do Partido Comunista Chinês, em novembro de 2012, com a escolha de Xi Jinping para o cargo de presidente da China, que, em seguida, lançou a iniciativa “Um Cinturão, Uma Rota” (One Belt One Road, ou OBOR), que é um gigantesco projeto de infraestrutura, com investimentos de mais de US$ 1 trilhão, para unir, por terra e pelo mar, toda a Eurásia (incluindo partes da África).
Um cinturão, uma rota (Fonte: BrasilNaval.com)
O segundo fato foi a expulsão da Rússia do G8 — devido à anexação da região autônoma da Crimeia que aumentou as tensões entre os russos e a Ucrânia, e afastou o país da Europa e da aliança ocidental, forçando Vladimir Putin a buscar aliados no Oriente.
O terceiro fato foi a eleição, em maio de 2014, de Narendra Modi, do Partido Bharatiya Janata (BJP), para primeiro-ministro da Índia, com uma plataforma que combina o nacionalismo hindu com os sonhos de desenvolvimento da Índia. Diante das medidas protecionistas de Donald Trump e do enfraquecimento da aliança ocidental, Modi, que já tinha uma boa relação com a Rússia, passou a se aproximar da China e teve uma reunião informal com Xi Jinping na cidade histórica de Wuhan, nos dias 27 e 28 de abril de 2018, onde os dois líderes acertaram os passos para os eventos ocorridos nos meses seguintes e para uma aliança de longo prazo.
Evidentemente, o país líder é a China devido ao seu tamanho econômico, demográfico, territorial e à capacidade de influência política. Em 2017, segundo dados do FMI, o Produto Interno Bruto - PIB chinês foi de US$ 23,2 bilhões (em ppp), volume muito superior aos US$ 9,5 bilhões da Índia, US$ 4 trilhões da Rússia, US$ 3,2 trilhões do Brasil e dos US$ 765 milhões da África do Sul. Além da dimensão da economia, a China tem mais de US$ 3 trilhões em reservas internacionais, mega superávit na balança comercial e altas taxas de poupança, o que possibilita às empresas chinesas realizar grandes investimentos nacionais e globais.
IHU On-Line - De outro lado, por que Brasil e África do Sul ficam de fora dessa aliança? Como o RIC vê o Brasil e a África do Sul?
José Eustáquio Diniz Alves - O Brasil e a África do Sul são cabeças de ponte para o grupo RIC, especialmente a China, atuar na América Latina e na África. Rússia, Índia e China são protagonistas, enquanto Brasil e África do Sul são coadjuvantes. Claro que são cinco nações soberanas, mas a relação da China com o Brasil e a África do Sul está mais para aquela do tipo que se costumava chamar centro-periferia, ou melhor, do “Império do Meio” para países periféricos dependentes. A China exporta mercadorias industrializadas e capital para ter domínio da relação bilateral e acesso aos bens primários e commodities.
IHU On-Line - Há disputas entre os países do RIC sobre o controle da Eurásia?
José Eustáquio Diniz Alves - A Eurásia é a faixa contínua de terra mais extensa do mundo. Ela é berço das mais antigas e importantes civilizações do passado. Sua extensão territorial é de 54,8 milhões de km² (mais de seis vezes o tamanho do Brasil) e possui cerca de dois terços da população e do PIB mundial. Quem controlar a Eurásia, controlará o mundo. Mas as alianças já passaram por muitas reviravoltas.
A China já esteve próxima da União Soviética - URSS, depois se afastou e se aproximou dos EUA, a partir da visita de Richard Nixon a Pequim, em 1972. Mais recentemente, China e Rússia se aproximaram bastante e a relação de Vladimir Putin com Xi Jinping é de grande coesão. A Índia sempre teve boa relação com a Rússia e grandes dificuldades com a China, especialmente devido às alianças e rivalidades com o Paquistão (envolvendo a disputa pela Caxemira). Mas depois dos diversos encontros entre Putin, Xi e Modi e após a 18ª cúpula da OCX parece que o triângulo estratégico (RIC) vai caminhar mais lado a lado, buscando tornar viável a unidade de ação no território da Eurásia.
Mapa da Eurásia (Foto: ecrimes.us)
IHU On-Line - Como os países do território eurasiático veem a hegemonia do RIC? Que tipos de disputas surgem na região por conta dessa hegemonia?
José Eustáquio Diniz Alves - Existem muitas rivalidades e disputas fronteiriças, culturais e étnicas, sendo que a ação das forças armadas de Mianmar contra os muçulmanos rohingya, na região noroeste do país, é um dos eventos mais dramáticos. O avanço militar chinês no Mar da China causa grandes atritos com os vizinhos do leste asiático (além de ameaçar a presença americana na região). Mas uma aliança do grupo RIC com o Irã e a Turquia é meio caminho andado para unificar os interesses e a logística da maior parte do território asiático da Eurásia. Neste sentido, a iniciativa “Um Cinturão, Uma Rota” (One Belt One Road, ou OBOR) joga um papel importante na interligação econômica da região.
IHU On-Line - De outro lado, como a Europa se posiciona diante do RIC e da Eurásia?
José Eustáquio Diniz Alves - A presença da China na Europa oriental é cada vez mais forte e a Rússia continua com laços fortes (especialmente no campo da energia) com esta região. Mas claro que a Europa ocidental vê o avanço da China e da Rússia com grande preocupação e até um certo medo, pois existe todo um antigo imaginário aterrorizante sobre os bárbaros orientais pouco democráticos e com outra cultura (outros hábitos, outras religiões etc.). A alternativa da Europa ocidental seria fortalecer os laços com os EUA, o Canadá e o Japão, mas parece que Donald Trump não está ajudando muito no fortalecimento do G7 e a Europa ocidental vai ter que repensar o seu lugar no mundo ou aderir à onda oriental.
IHU On-Line - Quais têm sido as estratégias da China para garantir a sua hegemonia e fazer com que outros países dependam dela?
José Eustáquio Diniz Alves - Primeiro a China montou uma máquina azeitada de produção de bens de consumo de massa a preços baratos que invadiu todas as fronteiras e ocupou as prateleiras do planeta, tornando-se a fábrica do mundo. Em segundo lugar, com o dinheiro que acumulou no comércio internacional, fortaleceu suas instituições financeiras e passou a ser exportadora de capital, tornando-se, também, banco do mundo. Boa parte da rolagem da dívida americana depende do dinheiro de Pequim.
A Venezuela está totalmente “no bolso” dos chineses.
Na Europa, o frágil grupo PIGS (Portugal, Itália, Grécia e Espanha) depende cada vez mais dos investimentos chineses. Em terceiro lugar, a China pretende ser líder global da 4ª Revolução Industrial. Ela já está na liderança da produção de energia renovável e da transição da indústria automobilística do motor a combustão interna para os carros elétricos, também lidera no uso de smartphone para as compras e pretende ser a líder isolada da Inteligência Artificial até 2025. Tem o supercomputador mais rápido do mundo e o maior centro de pesquisa de computação quântica. Seu projetado sistema de navegação por satélite competirá com o GPS dos EUA até 2020. No ano passado, a China ultrapassou os EUA e ocupou o primeiro lugar na produção mundial de artigos científicos.
IHU On-Line - Em que consiste a política chinesa chamada de “Um cinturão, uma rota”?
José Eustáquio Diniz Alves - A Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota (One Belt One Road, ou OBOR) visa construir redes de comércio e infraestrutura conectando a Ásia com a Europa e a África ao longo dos antigos caminhos comerciais da Rota da Seda, objetivando o compartilhamento do desenvolvimento e da prosperidade. As estatísticas mostraram que os bancos chineses já participaram de mais de 2.600 projetos e inclui investimentos em uma ampla variedade de áreas, desde energia limpa até manufatura, tecnologia da informação e comunicações, transportes, portos e aeroportos, projetos hidráulicos, assim como desenvolvimento urbano e moradia, entre outras.
Oleoduto de Kyaukpyu (Fonte: Shwe Gas Movement)
Por exemplo, o oleoduto de Kyaukpyu, em Myanmar, no valor de US$ 1,5 bilhão, vai permitir que os suprimentos de petróleo do Oriente Médio e da África cheguem à China mais rapidamente. O porto de Gwadar e o corredor ferroviário, no Paquistão, permitirão ligar o oeste da China, através de uma ferrovia de 3 mil km e de um porto de águas profundas, ao Mar da Arábia. As conexões ferroviárias na região Ásia-Pacífico envolvem a ligação da região sudoeste de Yunnan a vários países da região, por meio de três rotas planejadas: uma central, que atravessa o Laos, a Tailândia e a Malásia para chegar a Singapura, uma rota ocidental que atravessa Myanmar e uma rota oriental que atravessa o Vietnã e Camboja. Existem projetos ferroviários no Quênia, Etiópia e Senegal. Foi inaugurada, recentemente, uma linha ferroviária ligando Londres à estação de Yiwu, cidade ao sul de Xangai. Ou seja, trata-se de uma interligação de Pequim e Xangai com o mundo.
Ferrovia que liga China a Londres (Foto: BBC Brasil)
IHU On-Line - Qual é a relação e a influência da China na Coreia do Norte?
José Eustáquio Diniz Alves - A influência é total. A Coreia do Norte só existe por conta do apoio da China e da URSS, que na guerra de 1950-53, garantiu a permanência no poder de Kim Il-Sung, avô de Kim Jong-un. Em 2016, o comércio da Coreia do Norte com o mundo totalizou cerca de US$ 6 bilhões, sendo US$ 5,5 bilhões (91,5%) com a China, US$ 140 milhões com a Índia e US$ 76 milhões com a Rússia. Os três maiores parceiros da Coreia do Norte são os países do grupo RIC.
Mas a influência da China é incomensurável e antes do encontro da ilha de Sentosa em Singapura, Kim Jong-un se encontrou duas vezes com Xi Jinping, em território chinês. Outro exemplo, o voo de Kim para Singapura aconteceu em um avião do governo chinês e foi escoltado por caças chineses. Por fim, no dia 19 de junho, uma semana após a reunião de Singapura, Kim Jong-un viajou para Pequim para se encontrar com Xi Jinping e, provavelmente, comemorar os resultados do enfraquecimento dos EUA na península coreana. O incrível é que neste mesmo dia em que os dois “ditadores” orientais se encontravam na Praça da Paz Celestial, no lado ocidental, o “democrático” presidente dos EUA reforçou sua política de tolerância zero na migração ilegal (colocando crianças em “jaulas”) e anunciou a saída dos EUA do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
IHU On-Line - Quais são os sinais que demonstram uma mudança na hegemonia no mundo, com o declínio dos EUA e do Ocidente e ascensão da China e do Oriente?
José Eustáquio Diniz Alves - Durante toda a década de 1980, a economia dos EUA representava mais de 20% da economia mundial e a economia da China representava menos de 5%, segundo dados do FMI (em ppp). Nas décadas seguintes o quadro se inverteu. Em 2014, o PIB da China, representando 16,6% do PIB global, ultrapassou o PIB dos EUA, que ficou com 15,8% do PIB global. Em 2017, a China já levava uma vantagem de 18,3% sobre 15,3% dos EUA. Para 2022, as estimativas do FMI indicam que o PIB da China subirá para 20,4% do PIB global, enquanto o PIB dos EUA cairá para 14,1%. A China já ultrapassou os EUA em tamanho do PIB e agora estimula o crescimento de todo o continente asiático.
A hegemonia da China também ocorreu no comércio mundial. No final dos anos 1970 a participação das exportações chinesas estava abaixo de 1% do total mundial, contra 12% dos EUA, segundo dados da Organização Mundial do Comércio. No início dos anos 1990, as exportações chinesas subiram para 2% do total mundial e as exportações americanas permaneceram nos 12%. Mas o quadro mudou rapidamente nos anos seguintes. Em 2007, pela primeira vez, as exportações chinesas ultrapassaram as exportações americanas. Em 2017, as exportações da China somaram US$ 2,26 trilhões (representando 13% do total global) e as exportações dos EUA foram de US$ 1,55 trilhão (representando 9% do total global). Em 2017, o saldo comercial da China com o resto do mundo foi de US$ 421 bilhões e o déficit comercial dos EUA foi de US$ 863 bilhões.
No confronto direto entre as duas maiores economias do mundo, a vantagem chinesa é impressionante. Os dados do “U.S. Census Bureau” mostram que o déficit comercial dos EUA com a China cresceu enormemente nos últimos 25 anos, pois era de US$ 23 bilhões no começo do governo Clinton, em 1993, passou para US$ 268 bilhões no fim do governo Bush, em 2008, e não parou de subir no governo Obama, chegando a US$ 367 bilhões em 2015, caindo um pouco para US$ 347 bilhões em 2016.
No governo Donald Trump, a despeito de toda a retórica protecionista, o déficit comercial com a China bateu todos os recordes históricos e atingiu US$ 375 bilhões em 2017. O ano de 2018 começou com outro recorde chinês, que teve um superávit de US$ 119 bilhões nos primeiros quatro meses do ano, o maior saldo positivo de todos os tempos, para o primeiro quadrimestre do ano.
A economia americana funciona na base dos déficits gêmeos (fiscal e comercial) e do aumento da dívida. O último relatório do Escritório de Orçamento do Congresso (CBO) mostra que a dívida pública americana vai aumentar em US$ 12,4 trilhões entre 2019 e 2028, devendo alcançar quase 100% do PIB, no final da próxima década.
O PIB conjunto do grupo RIC (Rússia, Índia e China), em 2017, foi de US$ 36,6 trilhões e o PIB conjunto do G7 (EUA, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Canadá) foi de US$ 38,8 trilhões. Para 2020, o PIB do grupo RIC deve chegar a US$ 46,8 trilhões, contra US$ 43,9 trilhões do G7, segundo dados do FMI (em ppp). Ou seja, os três países ditos emergentes devem ultrapassar os sete países capitalistas mais avançados ainda na atual década.
IHU On-Line - Que tipos de reconfigurações tendem a ocorrer no mundo caso a ascensão da China e do Oriente vigore?
José Eustáquio Diniz Alves - A ascensão da China e dos países aliados do Oriente pode significar o fim do modelo econômico e político do liberalismo democrático burguês e o fim da ordem internacional fundada a partir da reunião de Bretton Woods, em 1944. O empresário Klaus Schwab, criador do Fórum Econômico Mundial, em evento realizado em São Paulo no mês de março de 2018, disse que vê para breve um mundo em que a China assumirá a liderança econômica global. Muito tempo atrás, o secretário de Estado dos EUA, John Hay, em 1900, já previa que haveria uma mudança geopolítica estratégica no mundo. Ele disse: "O Mediterrâneo é o oceano do passado. O Atlântico é o oceano do presente e o Pacífico o oceano do futuro”. Indubitavelmente, os Estados Unidos e a Europa estão em declínio relativo no contexto da economia global. Enquanto o governo Trump tenta construir um muro, separando fisicamente o México e a América Latina dos EUA, a Grã-Bretanha implementa o Brexit e as forças da direita isolacionista crescem na Europa, a China, sob a liderança de Xi Jinping, implementa uma integração internacional por meio de uma globalização à moda chinesa.
O modelo de Pequim não é exceção na Ásia, pois os Tigres Asiáticos (Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e Hong Kong) já tiveram sucesso neste tipo de estratégia de desenvolvimento. Atualmente, países como Tailândia, Malásia, Indonésia e Vietnã também emulam a China e se beneficiam dos investimentos regionais em infraestrutura. Desta forma, a despeito das especificidades, fica cada vez mais clara a diferenciação entre os modelos econômico e político do Oeste e do Leste. No primeiro caso, o Ocidente pode ser definido pela somatória da economia de mercado e da democracia representativa, enquanto o Oriente é mais caracterizado pela presença estatal no mercado e pelo autoritarismo na política. O sucesso de Singapura, de Lee Kuan Yew (1923-2015), tem servido de inspiração para os outros países asiáticos. A China, por exemplo, governada por um partido único, costuma ser definida pelos oximoros “socialismo de mercado” ou “capitalismo de Estado” e não tem se comprometido com os valores da democracia, próprios dos países liberais.
IHU On-Line – Na sua avaliação a mudança geopolítica significará uma mudança na globalização: sairá de cena uma globalização neoliberal do Consenso de Washington e entrará em cena uma globalização liderada pela China e o Consenso de Beijing. Quais são as diferenças entre esses dois tipos de globalização e o que preconizam o Consenso de Washington e o de Beijing, e qual é a diferença distintiva entre ambos?
José Eustáquio Diniz Alves - A queda do Muro de Berlim (1989), a reunificação da Alemanha (1990) e a dissolução da União Soviética (1991) marcaram o fim de 40 anos de Guerra Fria. Teve início um período de hegemonia unipolar dos EUA e dos valores econômicos e políticos do Ocidente. Para o cientista político Francis Fukuyama, estes acontecimentos marcaram a vitória do capitalismo liberal sobre os regimes de forte intervenção estatal. Utilizando uma linha teórica desenvolvida por Hegel (1770-1831), Fukuyama escreveu o artigo “O fim da história" (1989), onde defendeu a ideia de que o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento do progresso civilizatório. Na concepção de Fukuyama, não se trata do fim da história em termos cronológicos, mas sim da derrocada do “socialismo real” e da vitória da democracia liberal, que com todas as suas imperfeições, passou a ser a solução final e mais avançada de governo da história da humanidade.
Aproveitando a conjuntura favorável da ideologia do neoliberalismo, algumas instituições sediadas em Washington (FMI, Banco Mundial, Departamento do Tesouro dos Estados Unidos etc.), buscando aprofundar a influência do capitalismo liberal, apresentaram, em dezembro de 1989, uma lista de dez pontos com recomendações de política econômica para os diversos países do mundo. A elaboração do receituário, conhecido como “Consenso de Washington” ficou a cargo do economista John Williamson e pode ser sumarizada no decálogo seguinte:
1. Disciplina fiscal e baixo déficit público;
2. Focalização dos gastos públicos em educação, saúde e infraestrutura;
3. Reforma tributária;
4. Liberalização financeira;
5. Taxa de câmbio competitiva;
6. Liberalização do comércio exterior;
7. Eliminação de restrições ao capital externo;
8. Privatização e venda de empresas estatais;
9. Desregulação das relações trabalhistas;
10. Defesa da propriedade intelectual. Sem dúvida, a globalização neoliberal, estimulada pelo Consenso de Washington, foi claramente hegemônica no mundo entre 1989 e 2008 (quando houve a quebra do banco Lehman Brothers e a grande recessão internacional de 2009).
Mas como mostram os dados já apresentados, os países do grupo RIC tiveram um melhor desempenho econômico na retomada da crise e devem ultrapassar o G7, em tamanho do PIB, até 2020. O sucesso, especialmente da China, foi adotar um outro caminho diferente do Consenso de Washington, que o economista Joshua Ramo definiu como “The Beijing Consensus”, em 2004.
O “Consenso de Beijing” reúne as seguintes características:
1. Promoção das economias em que a propriedade estatal continua tendo um peso dominante;
2. Promoção de câmbio competitivo, com mudanças graduais para evitar choques e controle cambial para escapar da especulação predatória;
3. Políticas de promoção das exportações (“Export-led growth”) com proteção da indústria local e dos setores estratégicos do país;
4. Reformas de mercado, mas com controle das instituições políticas e culturais;
5. Centralização das decisões políticas e das estratégias de projeção nacional.
Desta forma, o Consenso de Beijing tem sido referência não só para a China, mas também para a Rússia, a Turquia, o Cazaquistão, as Filipinas etc.
A Índia, de Narendra Modi, embora seja considerada a maior democracia do mundo, também flerta com vários aspectos do modelo de Beijing.
IHU On-Line - O que mudaria na globalização com a ascensão do Consenso de Beijing? O que o mundo ganha ou perde com essa mudança?
José Eustáquio Diniz Alves - A ascensão da China, desde as reformas de Deng Xiaoping, no final da década de 1970, viabilizou a retirada de 1 bilhão de chineses da situação de extrema pobreza. Os outros países da região buscam repetir o sucesso chinês nesta área e para isto contam com o avanço do comércio internacional. Todavia, com a saída da Parceria Transpacífico, a adoção de medidas protecionistas e a utilização de tarifas, o governo Trump tem irritado os países asiáticos e tem perdido espaço na sua esfera de influência.
Em contrapartida, a China trabalha agressivamente para preencher o vácuo. A iniciativa “Um Cinturão, Uma rota” (One Belt One Road, ou OBOR)— que é considerada a maior façanha de infraestrutura da história da humanidade — pretende ser um instrumento para acelerar o crescimento econômico da Eurásia, gerando milhões de empregos, o que possibilitaria o aumento da classe média asiática. A China busca interligar a Eurásia de uma forma nunca vista e com oportunidade de negócios que deslumbra as diversas nações. Os cerca de 5 bilhões de habitantes da região sairiam ganhando economicamente.
Contudo, o impacto ecológico será enorme e, com toda certeza, o meio ambiente sairá perdendo. O Presidente Xi Jinping tem feito um discurso tentando minimizar os efeitos ambientalmente negativos da iniciativa “Um Cinturão, Uma rota” (One Belt One Road, ou OBOR) e, em várias ocasiões, tem repetido: “devemos buscar a nova visão do desenvolvimento verde e um modo de vida e trabalho que seja verde, de baixo carbono, circular e sustentável. Devem ser feitos esforços para fortalecer a cooperação em proteção ecológica e ambiental e construir um ecossistema sólido, de modo a atingir as metas estabelecidas pela Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável”.
Mas os críticos consideram que as melhores práticas ambientais não serão adotadas, devido à falta de transparência e ao baixo compromisso democrático dos desenvolvedores dos projetos. Na China é comum se adotar o conceito “poluir primeiro, controlar depois”. O maior risco de uma iniciativa tão grandiosa é a proliferação de tecnologias sujas e destrutivas, como carvão, grandes hidrelétricas, desmatamento florestal, uso de recursos hídricos escassos, fragmentação das paisagens naturais, perda de biodiversidade etc. Devem aumentar os conflitos socioambientais.
IHU On-Line - Acerca da ascensão do Oriente, o senhor já disse que existem oportunidades e riscos nesse processo. Poderia nos dar alguns exemplos tanto das oportunidades quanto dos riscos?
José Eustáquio Diniz Alves - Existem oportunidades advindas do processo de desenvolvimento e da melhoria das condições de vida dos cerca de 5 bilhões de habitantes da Eurásia e existem os riscos ecológicos e socioambientais.
Mas as maiores ameaças surgem da possibilidade de um conflito bélico entre as superpotências. O escritor e professor da Universidade de Harvard, Graham T. Allison, no livro, “Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap?”, aponta para a possibilidade de uma guerra entre os EUA e a China. O motivo é a “Armadilha de Tucídides”, que se refere a um padrão de estresse estrutural que resulta do movimento provocado pelo choque entre um poder ascendente e o poder hegemônico descendente. Para o professor, esse fenômeno é tão antigo quanto a própria história. Ele explica que na Guerra do Peloponeso (que devastou a Grécia antiga entre os anos de 431 e 404 a.C.) foi a ascensão de Atenas e o medo que isso incutiu em Esparta que tornou a guerra inevitável. Nos últimos séculos, essas condições de mudanças de hegemonia ocorreram dezesseis vezes, sendo que, em doze delas, estourou uma guerra. Para o autor, as condições atuais estão dadas para gerar um conflito bélico entre os EUA e a China.
Embora, o encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un em Singapura tenha contribuído para aliviar as tensões nucleares, os EUA continuam uma potência militar dominante no mundo e tiveram despesa militar de U$ 611 bilhões em 2016, enquanto a China é o país que apresenta as maiores taxas de aumento nos investimentos bélicos, internos e externos, tendo contabilizado despesas militares de US$ 215 bilhões em 2016. Em terceiro lugar vem a Rússia com despesas de US$ 69 bilhões, segundo o Stockholm International Peace Research Institute. Estes três países foram responsáveis por 53% do gasto militar mundial. Se houvesse desarmamento, o mundo seria outro caso estes recursos fossem usados para a guerra contra a pobreza e pela regeneração ecológica, ao invés de aumentar os arsenais de destruição em massa de vidas humanas e não humanas.
Portanto, a ascensão da Ásia e a emergência do processo de Orientalização do mundo, sob liderança chinesa, pode não ocorrer de maneira pacífica diante do declínio relativo dos EUA e do Ocidente. Infelizmente, a Armadilha de Tucídides é como uma espada de Dâmocles suspensa sobre a ordem internacional e a possibilidade de paz mundial.
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José Eustáquio Diniz Alves - Apenas dizer que Francis Fukuyama estava errado, pois a ordem democrática liberal e de mercado parece não ser a forma de organização político-econômica mais evoluída e superior do mundo, nem representa o fim da história. A hegemonia ocidental que foi construída a partir da 1ª Revolução Industrial e Energética, há 250 anos, está cedendo espaço para uma hegemonia oriental menos liberal, menos democrática e menos apoiada no mercado.
Surpreendentemente, este processo está sendo acelerado pelas atitudes do atual presidente dos EUA, que passou a maior parte de seu período de ano e meio no poder rasgando acordos multilaterais, desestabilizando as organizações internacionais, impondo penalidades comerciais a aliados, fraquejando diante de antigos inimigos ditatoriais, ameaçando o relacionamento com a China construído desde os tempos do presidente Nixon e perturbando a ordem diplomática global construída, com muito esforço, sobre os escombros da Segunda Guerra. Para completar, a democracia liberal está em retrocesso em todo o mundo atualmente e ganham força líderes autocráticos com Vladimir Putin e Xi Jinping, enquanto Donald Trump aumenta os gastos militares dos EUA.
Existe alguma esperança de que a mudança de hegemonia entre o Ocidente e o Oriente possa ocorrer de forma mais ou menos pacífica, embora não seja improvável ocorrer a Armadilha de Tucídides, num contexto de conflito nuclear entre a potência emergente e a potência descendente. Se a governança global não for capaz de apresentar soluções para o complexo quadro das relações internacionais e a deterioração das condições sociais e ambientais, pode ser que, de fato, ocorra o fim da história, em sua forma trágica, juntamente com o fim da civilização humana.
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A ascensão da China, a disputa pela Eurásia e a Armadilha de Tucídides. Entrevista especial com José Eustáquio Diniz Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU