28 Abril 2018
"Não há nenhuma ameaça soviética e nenhuma globalização para liderar a China e o mundo juntos. A China não conhece o mundo, e o mundo é muito maior do que a China, embora liderado por um país menor do que ela em termos de população, os Estados Unidos", escreve Francesco Sisci, sinólogo italiano que vive em Pequim, em artigo publicado por Settimana News, 25-04-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Enquanto as ameaças de uma guerra comercial entre Estados Unidos e China continuam, o recém-nomeado Almirante dos EUA, responsável pela região Ásia-Pacífico, prometeu conter o país asiático e demonstrar poder somente “quando necessário” [1]. O espectro de uma Guerra Fria começa a se materializar. Contudo, para os Estados Unidos esse posicionamento não é novidade: existe um longo histórico de tensões entre os dois países. Aqui, buscamos apresentar resumidamente tais tensões a fim de tentar lidar com elas, e também para apresentar ângulos nos quais essas tensões poderiam ser resolvidas.
Este histórico pode ser dividido em três movimentos: as três longas fases de relações bilaterais recentes. Um longo, um muito longo e um curto.
Este movimento começa quando o então Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, visita a China no início da década de 70, e segue com a visita do presidente Richard Nixon na mesma época. Depois disso, houve uma convergência de interesses entre Washington e Pequim. Washington queria compensar pela iminente derrota no Vietnã. Pequim queria evitar ser esmagado entre a União Soviética ao norte e o Vietnã, cada vez mais pró-URSS, ao sul.
Este casamento de conveniência se tornou um compromisso quase oficial em 1979, momento em que a China interveio contra o Vietnã a partir de um acordo firmado com os Estados Unidos. Ela também ajudou a levar armas para os militantes mujahidin, anti-URSS, no Afeganistão. Depois da guerra, os EUA abriram às exportações de dois tipos de tecnologia (civis e militares) para Pequim e a China foi integrada num ambiente comercial maior, aumentando as suas exportações, e, com isso, suas reservas cambiais internacionais. As reformas lançadas por Deng Xiaoping na mesma época, também permitiram que China avançasse nos estágios iniciais de desenvolvimento e modernização.
Houve, portanto, um plano interno chinês de reforma da economia e de abertura, bem como um plano externo de realinhamento estratégico com os Estados Unidos. Este realinhamento interno e externo foi quase simbolicamente interpretado na década de 1980 pelas reformas de Zhao Ziyang, incentivadas pelas monetaristas da escola America de Chicago que também inspiravam as reformas liberais de Reagan.
Este entendimento foi rachado mas não totalmente quebrado entre 1989 e 1992.
Vários episódios contribuíram para as lacerações. Houve o Massacre de Tiananmen em junho de 1989; Houve a queda do muro de Berlim em novembro do mesmo ano. Houve também a tentativa de golpe na União Soviética em agosto de 1991 que derrubou o líder soviético Mikhail Gorbachev, e pôs fim à URSS. Nesta época a China ainda estendia a mão aos conservadores soviéticos.
Todos estes episódios contribuíram, um após o outro, para aumentar as divergência dos americanos e chineses. Mas não era o fim.
No início da década de 1990, EUA e China viram o início de controvérsias comerciais que simplesmente não existiam antes. Um ponto sensível para os Estados Unidos foi o roubo de propriedade intelectual pelas empresas chinesas que emergiam.
Isso levou os Estados Unidos a uma grande indecisão sobre o que fazer com a China até o início das negociações para a admissão de Pequim na recém-criada OMC (Organização Mundial do comércio).
Então, a consideração feita foi de que os EUA estavam dispostos a dar tempo para a China mudar. A China explodiria ou se tornaria como a América. Foi uma aposta segura. Chances de que a China poderia surgir com êxito em uma terceira via foram consideradas mínimas.
Entretanto, os EUA ajudariam a transformar a China numa grande fábrica e na base para a recém-lançada "globalização", ou seja, o processo de deslocamento da produção para países de terceiro mundo onde há mão de obra barata. Isso se tornou possível com uma segurança geral da China garantida pelos EUA (não existia mais a ameaça de uma guerra repentina, como existia durante a Guerra Fria) e logística, que se tornou muito mais barata, graças a inovações tecnológicas.
No entanto, as coisas começaram a tomar um rumo diferente em 1999: os EUA bombardearam a Sérvia, a China se aliou com a Iugoslávia e os americanos bombardearam a embaixada de Pequim em Belgrado. A opinião pública chinesa apoiou a resistência iugoslava contra os Estados Unidos, e estes deixaram cair uma bomba na embaixada chinesa.
Pouco a pouco, EUA e China afastavam-se. A China apoiou a política da Coreia do Sul em relação a Coreia do Norte, mas em 2001 os EUA mudou de ideia e sabotou o plano. Apenas alguns meses mais tarde, o pouso forçado de um avião de vigilância dos Estados Unidos, o EP-3, na ilha chinesa de Hainan aumentaram ainda mais as tensões bilaterais.
A escalada de tensão entre EUA e China foi interrompida pelo o ataque de 11 de setembro em Nova Iorque. Os EUA mudaram suas prioridades por alguns anos e pensaram que poderiam renovar seu poder democratizando e mantendo sob sua asa o Afeganistão e o Iraque. Graças a uma base nestes dois países, os EUA poderiam controlar a Ásia Central e, portanto, todas as rotas de contato através da Eurásia e o preço do petróleo. Energia e logística estavam para ser reorganizados.
As coisas não funcionaram, mas por que? Em poucas palavras, a democracia não é fácil de exportar. Os Estados Unidos estariam melhor se tivessem dado o Iraque a um dos generais de Saddam.
Mas em poucas palavras, aqui é a raiz de um problema com Pequim. Os EUA queriam a China como aliada contra a URSS para o bem da globalização; Enquanto os resultados estavam chegando, estavam dispostos a ignorar as diferenças no sistema político e as constrições e os limites de seu mercado. A China também ganhava na troca. Ela teve a segurança total e a boa vontade dos EUA, dois elementos muito importantes na economia global, bem como o acesso a mercados e a tecnologia. E para estes benefícios, a China estava pronta para esquecer a constante e irritante a pressão ocidental sobre direitos humanos e sobre seu sistema político.
Quanto a quem ganhou mais, é difícil chegar a um resultado puro e real. Globalmente a China cresceu muito mais do que os EUA, mesmo tendo em consideração a diferença em seus respectivos pontos de partida.
O fracasso da guerra no Iraque e o desperdício improdutivo de centenas de bilhões, contribuíram para a crise financeira americana em 2008 [2]. Isto levou ao fim do período de pausa nas tensões entre os EUA e a China. A China deduziu a partir da falha no Iraque e da crise financeira que os EUA estavam declinando e que poderiam ser posto de lado. Não havia mais necessidade de tentar se americanizar, ou seja, adotar o modelo político e econômico dos EUA, porque o modelo era defeituoso e deveria ser rejeitado; os EUA chegaram a conclusões diferentes, especialmente após as catástrofes diplomáticas de dezembro de 2009 em Copenhague.
Na verdade, o então recém-eleito presidente, Barack Obama, chegou quase de chapéu na mão ao Presidente chinês, Hu Jintao, em novembro de 2009, oferecendo uma grande barganha: a grande colaboração em tecnologia limpa [3]. Mas os Estados Unidos também pediram uma apreciação da RMB (Renminbi, moeda oficial da China, ndt), cuja taxa de câmbio mais barata estava prejudicando todos os outros países exportadores. Os outros países, ao contrário da China, tem taxas de câmbio flexíveis, e elas estavam caindo. A China, no entanto, recusou-se a apreciar o RMB.
Somado a isso, o plano de financiar o investimento interno ajudou o crescimento global para eventualmente se recuperar e sair da crise. Mas o RMB barato também fere outras economias duas vezes: primeiro porque estava envolvido na crise dos EUA e segundo porque as baratas exportações chinesas (apoiadas também pela enorme expansão do crédito) cortaram a quota americana de mercado global.
A China eventualmente passou à frente no jogo, mas arruinou seu prestígio internacional.
Uma década antes, durante a crise financeira asiática de 1997-98, a China parou uma onda de desvalorização competitiva, alimentada também pela especulação em Wall Street, recusando-se a desvalorizar o RMB. A China foi o herói do dia. As coisas na região eram tão boas para Pequim que o Japão lançou a ideia de criar um Fundo Monetário Asiático (AMF) para compensar o FMI, cuja intervenção na crise tinha piorado as coisas. Na verdade, na década de 1990, os EUA tinham levantado a questão da liberdade de navegação no mar da China Meridional. Em 1999, o então premier Zhu Rongji foi capaz contornar o assunto, apontando algumas banalidades sobre o desenvolvimento comum da área[4].
Uma década mais tarde, os chineses não conseguiram perceber que quando Obama pediu a valorização do RMB, não falava apenas pelos EUA, mas pelo bem do resto mundo também. Então, quando a China recusou o pedido, ele mostrou que Pequim simplesmente estava pensando em sua própria vantagem. Mas mesmo para os países vizinhos da China, os EUA e a China continuavam os mesmos. Entre o velho diabo conhecido e novo diabo desconhecido, era mais fácil escolher o primeiro.
Ainda, para alguns países da região, a China era certamente pior do que os EUA. A América não havia humilhado ninguém em um guerra de fronteira, como a China fez com a Índia; Não tinha conflitos históricos com o Vietnã; Também não tinha conflitos com o Japão.
A China simplesmente não viu, ou não queria ver, a complexidade da situação e foi sem vontade para a cúpula do meio ambiente de dezembro de 2009 em Copenhague. O encontro foi um desastre tático. Os EUA queriam conhecer o lado chinês, mas o lado chinês não colaborou. Então Obama quase invadiu uma reunião particular entre China e Índia, e um ministro chinês gritou com ele.
A questão era que os EUA queriam que China cortasse sua emissão, prometendo cortar a sua própria em troca. Obama não conseguiu assegurar o apoio para os cortes e queria um sinal de Pequim para voltar a Washington com uma influência. Pequim não queria reduzir as emissões, que podiam amassar o seu crescimento econômico. Reduziria apenas em troca de concessões específicas dos Estados Unidos.
Mesmo assim, apesar do erro chinês em lidar com o incidente específico, havia uma profunda falta de entendimento. Em Copenhague os maiores objetivos não eram sobre a troca de cortes nas emissões, mas sim, uma verdadeira e maior relação bilateral entre a China e os EUA. Era para ser o início do relacionamento dos países grandes. Acabou por ser o início de um desastre.
A partir daí, as coisas começaram a piorar. No início do ano de 2010, o Google exprimiu a sua forte preocupação com a censura e o acesso ao mercado chinês. O gigante do Internet teve preocupações por meses, mas o governo dos EUA os manteve em silêncio na esperanças de consolidar um grande acordo com a China. Sem ele, o caso do Google desandou.
Logo depois veio a controvérsia do mar da China Meridional, onde os EUA alegaram liberdade de navegação e o Vietnã concordou com Washington, ao contrário de dez anos antes, quando fez frente com a China. Atritos com o Japão sobre a controversa reivindicação das Ilhas Senkaku também também esquentou a situação, enquanto os baratos produtos industriais chineses cortavam as exportações japonesas. A situação era tão ruim que o Japão, depois de décadas de resistência, finalmente apoiou a possibilidade de um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, abrindo mercado para as exportações agrícolas americanas.
Além disso, após os fracassos dos EUA no Afeganistão e no Iraque, a China lançou a Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota, mas foi desatenta lidar com a questão. Aos EUA foi oferecido um lugar quase como um convidado da China, e a China impôs suas condições. Também, a China apresentou sua diplomacia de grande poder, que ofereceu algum tipo de Nova Ialta, em que a Ásia seria dada à China e os EUA receberiam todo o resto. Mas por que deveria haver uma divisão do mundo? E, os países asiáticos estariam dispostos a serem "dados" à China? Na verdade, depois que a proposta foi vazada, toda a Ásia pegava em armas e em Washington, fazia lobby contra a China e sua divisão do mundo.
Tudo isto se resumia a uma hostilidade generalizada em todo o mundo contra a China por volta de 2015. Por que a China não previu isso? Duas respostas simples: Pequim foi envolvido em suas lutas internas pelo poder, e não entendeu que o mundo em torno de si não era como a China Imperial, onde ela estava no centro e uma periferia desprezível compondo apenas metade de seu população e riqueza estava ao redor. Na verdade, era um mundo dominado por valores e conceitos Ocidentais e Orientais, onde a população e a riqueza da China eram apenas uma fração do total. Neste contexto, alianças contam tanto quanto força real. Aqui, ela estava sem aliados, possuía apenas parceiros de negócios.
Mas o clima tinha mudado mesmo entre parceiros de negócios. Os empresários se queixaram de não estarem fazendo dinheiro e também do roubo de segredos comerciais – não só de direitos de propriedade intelectual.
Pessoas ocidentais comuns ficam chocadas com as notícias de roubos de dados pessoas por parte da China, uma violação na sua sagrada privacidade. Os ocidentais também estavam irritados com a atitude rude de oficiais de negócios chineses e até mesmo de turistas chineses.
Isso deu novo combustível para a velha preocupação de ativistas sobre a opressão política e a falta de liberdade na China. Políticos e estrategistas viram isso isso como parte de um grande projeto da China querendo impor suas regras sobre o mundo[5] .
Claro algumas das preocupações que foram endereçadas: os turistas têm sido orientados para se comportar, e o roubo massivo de dados pessoais foi verificado. A China está também ajudando o Japão e a Índia, compreendendo que ao trazê-los para seu lado, podem ajudar a melhorar a situação.
Mas as questões globais ainda estão presentes e ganhando força. Não há nenhuma ameaça soviética e nenhuma unidade de globalização para liderar a China e o mundo juntos. A China não conhece o mundo, e o mundo é muito maior do que a China, embora liderado por um país menor do que a ela em termos de população, os Estados Unidos. Então para a China fazer as coisas direito, seria necessário desvendar os três movimentos, que nós sumariamente esboçamos aqui. Não será fácil.
Neste contexto, as provocações vindas da Coreia do Norte, ou confrontos acidentais na fronteira, como o ocorrido na Índia, no verão passado, em Doklam, podem desencadear explosões maiores.
A China vai querer desvendar tudo isso? Vendo de Pequim, parece que o mundo está se resolvendo mais rápido. A UE pode estar perto de um colapso, está tomada por muitas contradições. Os EUA de Trump parecem um circo. O resto do mundo está espalhado. Talvez se China se acalmasse e esperasse, as coisas tomarão seu caminho...
Isto nos leva a acreditar que a China tem um plano para o domínio do mundo, como Pillsbury escreveu [6]. Ou como disse Graham Allison recentemente, "o que conhecemos como 'business as usual' nas relações com a China está para sempre no nosso espelho retrovisor. Nos movemos em terreno desconhecido, novo, em que os perigos são maiores do que as oportunidades." [7]
[1] Almirante dos EUA apresenta novas instalações militares para conter a China.
[2] Ver meu livro China. Em nome da lei. Uma nova ordem global, 2016 e o capítulo "pensando do impossível: o mundo da China."
[3] Acreditamos sem modéstia que contribuímos para a ideia de uma grande barganha. Consulte David P. Goldman e Francesco Sisci, "estrada do EUA para recuperação percorre Beijing", Tempos de Ásia, 15 de outubro de 2008.
[4] Ver também "Vietnam-China Relations Since The End Of The Cold War" (Relações Vietnã-China Desde o Fim da Guerra Fria)
[5] Publicamos vários artigos em Settimana News que aprofundam estas questões.
[6] A maratona de cem-ano: Estratégia secreta da China para substituir a América como a superpotência Global, 2016
[7] Como Trump poderia transformar uma guerra comercial em uma guerra verdadeira com a China
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Eua e China. Três movimentos da história recente que levaram ao embate atual - Instituto Humanitas Unisinos - IHU