20 Fevereiro 2024
"Talvez fosse o caso de nos resignarmos um pouco menos à guerra e de nos prepararmos para a paz, valorizando o instinto natural de sobrevivência do gênero humano", escreve juiz italiano Domenico Gallo conselheiro da Suprema Corte de Cassação da Itália, em artigo publicado por “il Fatto Quotidiano”, 16-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O termo “macarthismo” vem do nome do senador republicano Joseph McCarthy que liderou, na década de 50 do século passado, a Comissão do Senado dos EUA para a repressão de “atividades antiamericanas". A atividade da Comissão consistia naquela que foi definida como a "caça às bruxas." A Guerra Fria gerou, no plano internacional, forte contraposição entre blocos militares que se enfrentaram na Europa numa guerra simulada em torno de uma suposta fronteira percebida como uma “cortina de ferro”. No lado interno, a guerra foi travada identificando como inimigos ativistas do Partido Comunista, funcionários públicos, intelectuais, artistas, escritores, suspeitos de simpatias comunistas ou, simplesmente, antifascistas. Professar ideias não conformes com a narrativa ideológica oficial, ou simplesmente ser suspeito de tê-las, comportava todo tipo de discriminação ou exclusão da vida social.
O filme Testa-de-ferro de Woody Allen (1976) evocou com maestria a condição da indústria cultural durante o período do macarthismo, quando centenas de atores, diretores e roteiristas, suspeitos de ideias subversivas, foram incluídos na chamada lista negra em decorrência das investigações do Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara, perdendo toda possibilidade de continuar trabalhando.
Agora que o espírito e a cultura da Guerra Fria voltaram à moda, por causa da guerra contra a Rússia às custas da população ucraniana, também temos que assistir a um retorno do macarthismo. O Parlamento Europeu, que deveria ser o berço dos direitos de liberdade, incrivelmente ressuscitou o macarthismo, pisoteando os princípios solenemente sancionados pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e pelas tradições constitucionais dos seus Estados membros. Fez isso com uma Resolução aprovada em 8 de fevereiro de 2024 sobre a ingerência russa nos processos democráticos europeus.
O leitmotiv da Resolução é o mesmo posto como fundamento do macarthismo: existe um Estado inimigo (Rússia) cujos “agentes de influência tomam ativamente como alvo todos os setores da vida pública, em particular a cultura, a memória histórica, as mídias e as comunidades religiosas, bem como os políticos e as suas famílias” espalhando a manipulação das informações. Há expoentes políticos que, pagos ou não, assumem posições pró-Rússia, para aliviar as sanções e o isolamento internacional da Rússia, com o risco de influenciar os governos e o próprio Parlamento Europeu.
Aqueles que discordam da verdade oficial do Parlamento Europeu que identificou a Rússia (já classificada como Estado patrocinador do terrorismo) como o inimiga contra quem é preciso se preparar para lutar, são as quintas colunas do inimigo, que é preciso desmascarar e silenciar. Para melhor combater a desinformação e a ameaça de ingerências estrangeiras, a Resolução recomenda uma "cooperação mais estreita com a OTAN".
Assim, as chamadas “atividade antiamericanas” que eram a obsessão do senador McCarty retornam na versão europeia e pressionam a declarar que a ingerência russa, por meio das quintas colunas europeias “não deve ficar impune”. Finalmente, a Resolução “destaca o papel fundamental do jornalismo investigativo em revelar as tentativas de ingerência estrangeira e atividades ocultas”, evidentemente apreciando aqueles jornais que, também na Itália, construíram as listas de proscrição dos supostos “putinianos”, enquanto se esquece de Julian Assange, que corre o risco de apodrecer para o resto da vida nas prisões estadunidenses.
Costuma se dizer que quando as tragédias históricas se repetem se transformam em farsa; também neste caso, o macarthismo na versão europeia tem o viés de uma farsa, especialmente porque na Europa a caça às bruxas é um pouco mais difícil de implementar devido aos incômodos vínculos do direito. Contudo, a farsa pode transformar-se em tragédia, uma vez que a deslegitimação política de todo pensamento crítico pode favorecer a concretização da tétrica profecia da guerra inevitável com a Rússia, relançada mais recentemente pelo almirante holandês Rob Bauer, presidente do Comité Militar da OTAN. Em 18 de janeiro, Bauer disse: “Viver em paz não é um fato adquirido. É por isso que estamos nos preparando para um conflito com a Rússia”, que poderá eclodir nos “próximos 20 anos”. Temos de evitar que a previsão do Almirante Bauer se transforme numa profecia que se concretiza. Durante as fases mais agudas da Guerra Fria, nenhum líder político ou militar jamais ousou declarar inevitável a guerra total com a URSS, o que de fato foi evitada.
Talvez fosse o caso de nos resignarmos um pouco menos à guerra e de nos prepararmos para a paz, valorizando o instinto natural de sobrevivência do gênero humano.
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O macarthismo europeu sonha com 20 anos de guerra. Artigo de Domenico Gallo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU