A ideologia fascista é revolucionária, ou seja, defende a negação violenta da ordem política e econômica atual, frisa o cientista político
O fascismo, que teve início na primeira metade do século passado, perpetuou-se e chega ao século XXI com uma nova roupagem. O movimento tem suas “origens ligadas à crise da democracia liberal e da economia capitalista, à onda de ressentimento social provocada pela guerra e às transformações sociais e políticas do período”, destaca Alvaro Bianchi em pesquisa recém-publicada.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o professor analisa a presença da ideologia fascista ao longo da história, propondo formas de interpretação e comparação com os ideais dos novos movimentos neofascistas e pós-fascistas que seguem emergindo.
Bianchi assinala que o fascismo é um movimento que assume diferentes formatos: neofascismo nostálgico, neonazismo mimético, movimentos pós-fascistas e neofascismo metapolítico. Este último, sinaliza, trata-se de uma vertente que crê “que para construir uma nova ordem política, é necessária uma profunda mudança de valores e para isso é preciso promover uma revolução cultural. Este é o caso da Nova Resistência e do grupo que se organizava em torno de Olavo de Carvalho”, complementa.
Segundo o cientista político, a ascensão neofacista atual ganhou espaço a partir da crise financeira de 2008-2009. “Em um contexto de crise ela encontrou um terreno fértil para prosperar, canalizando ressentimentos sociais”, coloca.
“Confunde-se, muitas vezes, o fascismo com o conjunto de movimentos e ideologias que formam o que se chama de extrema-direita. Acho isso um equívoco”, adverte o entrevistado. “Os fascismos são uma parte da extrema-direita, mas não toda ela. Os movimentos e grupos fascistas são portadores de uma ideologia particular, que combina ultranacionalismo, estatolatria, autoritarismo, anticomunismo e atribui à violência a capacidade redentora de criar uma nova ordem política para promover o renascimento nacional”, ressalta.
Alvaro Bianchi (Foto: Unicamp)
Alvaro Gabriel Bianchi Mendez é professor adjunto, chefe do Laboratório de Pensamento Político (Pepol/Unicamp), pesquisador associado do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos dos Estados Unidos (INCT-Ineu) e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq nível 2. Mestre em Sociologia (2000) e Doutor em Ciências Sociais (2004) pela Universidade Estadual de Campinas. Pesquisador visitante na Columbia University (2013), na Fondazione Gramsci (2010, 2016 e 2019) e na Brunel University (2022). Membro do Comitê Coordenador da Sociedade Gramsci Internacional, do conselho editorial dos periódicos Outubro e International Gramsci Journal e do Comitê Científico do Marx 21 (editora Unicamp) e Per Gramsci (Sociedade Gramsci Internacional e Centro interuniversitario di ricerca per gli studi gramasciani) coleções. Atua na área de Ciência Política, com ênfase na história do pensamento político italiano e brasileiro e na história da Ciência Política. Foi diretor do Arquivo Edgard Leuenroth (2009-2017) e do Instituto de Filosofia em Ciências Humanas da Unicamp (2017-2020).
IHU – O que é o fascismo, quais suas origens e como ele voltou à pauta?
Alvaro Bianchi – O fascismo surgiu no início do século XX após o fim da Primeira Guerra Mundial, um conflito que devastou a Europa. A primeira reunião pública ocorreu em 23-03-1919, na Piazza di San Sepolcro, em Milão. O movimento reunia ex-sindicalistas revolucionários, que haviam se tornado partidários da intervenção da Itália na guerra, dentre os quais estava Benito Mussolini; futuristas, liderados por Filippo Tommaso Marinetti; e ex-combatentes da Primeira Guerra, frustrados com o desfecho do conflito. Eles partilhavam um nacionalismo extremado e um antissocialismo radical. Vinte dias depois de criado o movimento, deram início às ações violentas. Um grupo liderado por Marinetti atacou a sede milanesa do jornal socialista Avanti! e a incendiou.
O fascismo, entretanto, era um grupo muito pequeno e no início sofreu importantes derrotas eleitorais. Só ganhou força porque o primeiro-ministro liberal o convidou para uma coalizão eleitoral nacionalista. Penso que as origens do movimento estão ligadas à crise da democracia liberal e da economia capitalista, à onda de ressentimento social provocada pela guerra e às transformações sociais e políticas do período. E hoje? Acredito que não podemos entender ressurgimento da ideologia dos fascismos se não olharmos para a crise da economia capitalista que se alastra desde 2008 e à incapacidade de oferecer uma alternativa que a esquerda partidária demonstrou em todo o mundo.
IHU – Qual a diferença entre fascismo enquanto doutrina e enquanto ideologia?
Alvaro Bianchi – Doutrina e ideologia são coisas diferentes, mas profundamente interligadas. A doutrina é constituída por uma visão de mundo elaborada. Ela tem a pretensão de abrangência e coerência. É a filosofia do fascismo, por assim dizer. Na Itália da década de 1930, o filósofo Giovanni Gentile foi o principal responsável pela edificação dessa doutrina, embora houvesse muitos conflitos no interior do movimento a respeito, como tenho procurado mostrar em minhas pesquisas. No nazismo, essa filosofia não encontrou uma forma tão elaborada, ficando a cargo de um arquiteto, Alfred Rosenberg, e de um engenheiro, Rudolf Jung. Mas pode-se dizer que ela tinha raízes mais profundas no nacionalismo e no antissemitismo que se manifestavam na sociedade alemã já no fim do século XIX, como demonstrou o historiador George Mosse.
Já a ideologia é constituída por um conjunto de dispositivos que traduzem essa doutrina para o senso comum, ou seja, a tornam compreensível imediatamente para um grande número de pessoas, interpelando sentimentos e emoções. Enquanto as doutrinas do fascismo italiano e do nazismo alemão diferem em muitos pontos, suas ideologias aproximam esses movimentos, e por isso ambos podem ser denominados fascistas.
IHU – Como definir a ideologia do fascismo?
Alvaro Bianchi – No debate público contemporâneo existe uma tendência a identificar o fascismo com o uso da violência ou com a oposição às regras eleitorais que caracterizam a democracia liberal. Confunde-se, muitas vezes, o fascismo com o conjunto de movimentos e ideologias que formam o que se chama de extrema-direita. Acho isso um equívoco. Os fascismos são uma parte da extrema-direita, mas não toda ela. Os movimentos e grupos fascistas são portadores de uma ideologia particular, que combina ultranacionalismo, estatolatria, autoritarismo, anticomunismo e atribui à violência a capacidade redentora de criar uma nova ordem política para promover o renascimento nacional. Essa ideia de renascimento nacional é muito importante no movimento. O nacionalismo que caracteriza essa ideologia fez com que existissem e existam muitas diferenças entre diferentes grupos de países distintos. Cada fascismo se reivindica único e original, melhor do que os demais porque seu próprio país e sua própria cultura são considerados os mais evoluídos. E alguns nem sequer aceitam o rótulo, embora se sintam parte de um mesmo movimento mundial. O nazismo alemão, por exemplo, era antissemita; o fascismo italiano se torna antijudeu apenas depois de 1938; e no Brasil, Plínio Salgado, o líder do integralismo brasileiro, deu muitas declarações e escreveu artigos condenando o racismo de Hitler.
IHU – A partir de que momento no século XX o fenômeno do fascismo passou a ser estudado de forma mais sistemática, buscando compreender suas engrenagens ideológicas?
Alvaro Bianchi – Desde o início o fascismo despertou a atenção dos críticos. Nos artigos publicados por Antonio Gramsci, Leon Trotsky e Angelo Tasca, por exemplo, encontramos análises muito interessantes sobre a base social do fascismo, o qual era um movimento predominantemente das camadas médias da sociedade, e sobre seus vínculos com a economia capitalista. Os contemporâneos deram, entretanto, pouca atenção à ideologia dos fascismos. Creio que para tal era necessário que se passassem alguns anos, que o tema esfriasse um pouco, para poder ser tratado criticamente. A partir de meados dos anos 1960, autores como Ernst Nolte, na Alemanha, e Renzo de Felice, na Itália, inauguraram um novo ciclo de pesquisas, que nos permitiu uma compreensão mais aprofundada do fenômeno. Podemos dizer que desde o início deste século vivemos um novo e intenso momento nos estudos sobre o fascismo, protagonizado por autores e autoras como Roger Griffin, Emilio Gentile, Victoria De Grazia, Giulia Albanese e muitas mais. No Brasil, Leandro Pereira Gonçalves, Odilon Caldeira Neto, João Fábio Bertonha e Carla Brandalise, entre outras, têm dado atenção ao tema.
IHU – Quais são as formas do fascismo na contemporaneidade?
Alvaro Bianchi – Os neofascistas costumam reivindicar explicitamente a ideologia ou ideólogos dos fascismos do entreguerras. Mas o movimento assume diversas formas. Existe um neofascismo nostálgico, que reivindica movimentos da primeira metade do século XX, como a Frente Integralista Brasileira, o Movimento Integralista e Linearista Brasileiro e a Nova Acção. O neonazismo mimético, por sua vez, costuma se organizar clandestinamente, têm existência muitas vezes efêmera e possui vínculos íntimos com redes internacionais, como o Hammerskins Brasil, a Divisão Misantrópica, Sol e Clava, entre outros. E existe também o que denomino de neofascismo metapolítico. Este considera que para construir uma nova ordem política é necessária uma profunda mudança de valores e que para isso é preciso promover uma revolução cultural. Este é o caso da Nova Resistência e do grupo que se organizava em torno de Olavo de Carvalho.
Provenientes do neofascismo, os movimentos pós-fascistas afirmam terem renunciado à violência extralegal e ao passado, aderindo aos princípios da democracia liberal. Mas esse passo à frente é seguido de dois passos atrás, uma vez que consideram que os direitos políticos e sociais devem ser considerados exclusivos aos membros de um povo definido em termos culturais ou étnicos. Os pós-fascistas continuam sendo ultranacionalistas, anticomunistas e autoritários. Sua recusa a considerar como cidadãos aqueles que não pertenceriam àquilo que chamam povo ou nação mostra o quão frágil e instável é esse compromisso com a democracia liberal. Vivem assim um dilema. Podem se transformar em um partido conservador como outros, mas também podem retornar ao neofascismo.
IHU – Quais as semelhanças e diferenças entre o Partido Nacional Fascista, de Benito Mussolini, e o partido Fratelli d’Italia, de Giorgia Meloni? Faz sentido a comparação?
Alvaro Bianchi – Fratelli d’Italia é filho do Partito Nazionale Fascista. Quando a Segunda Guerra terminou e os fascistas foram derrotados, eles criaram na Itália o Movimento Sociale Italiano (MSI). O anticomunismo desse movimento permitiu que ele tivesse um espaço no sistema partidário italiano ocupando todo o espaço da extrema-direita, elegendo sempre deputados. O líder do MSI era Giorgio Almirante, quem sempre fez profissão de fé democrática para garantir a legalidade do partido. Mas, ao mesmo tempo, o MSI servia de guarda-chuva para frações terroristas que promoveram atentados sanguinários nos anos 1960 e 1970. Com a crise do sistema político italiano no início dos anos 1990, o MSI ganhou força. Foi rebatizado de Alleanza Nazionale e se assumiu explicitamente como pós-fascista. Acabou se juntando com Silvio Berlusconi, em um novo partido, chamado Popolo della Libertá. Era uma frente de conservadores, neoliberais e pós-fascistas, liderada por Berlusconi. Isso permitiu que voltasse ao governo, assumindo alguns ministérios. Giorgia Meloni fazia parte do movimento e elegeu-se deputada pela primeira vez em 2006, ainda pela Alleanza Nazionale. Depois assumiu o Ministério da Juventude do governo Berlusconi. Ela não estava muito satisfeita com o novo perfil moderado de seu partido, rompeu com ele em 2012 e fundou um novo partido, o Fratelli d’Italia, com o objetivo de recuperar a tradição do MSI e dos primeiros anos da Alleanza Nazionale. O partido de Meloni recuperou a tradição ultranacionalista e antissistema dos neofascistas. A tese programática, aprovada em 2017 por Fratelli d’Italia, tinha uma visão de mundo ultranacionalista, xenófoba e moralmente conservadora. Até Giovanni Gentile, filósofo do fascismo e referência intelectual dos antigos militantes do MSI, era elogiado. No governo, o partido de Meloni vive aquele dilema do qual falei há pouco: pode se transformar em um partido conservador, mas também pode se radicalizar e retornar à sua origem.
IHU – Como a ideologia fascista explica a ascensão da extrema-direita?
Alvaro Bianchi – A ideologia fascista é revolucionária, ou seja, defende a negação violenta da ordem política e econômica atual. Em um contexto de crise, ela encontrou um terreno fértil para prosperar, canalizando ressentimentos sociais. Na onda de ataques às escolas que ocorreu no Brasil entre 2019 e 2023, os promotores haviam sido, frequentemente, radicalizados em grupos e redes sociais que divulgavam ideias neonazistas e neofascistas. Eram garotos muito jovens mesmo, os quais haviam, nesses contextos virtuais, encontrado os estímulos e o apoio necessários para realizar os atentados. Pesquisadoras e pesquisadores que monitoram essas comunidades virtuais têm identificado que as organizações neonazis atuam em grupos que muitas vezes não têm uma motivação política direta, mas nos quais prevalecem a revolta contra o mundo, a misoginia e os valores conservadores, radicalizando e recrutando jovens para suas organizações. Nem todas as pessoas que se identificam com esses valores aderem a movimentos neonazis. Muitos vão procurar outros caminhos, irão se aproximar de grupos ultraliberais ou evangélicos, por exemplo, ou seguirão uma liderança de tipo carismático, como Jair Bolsonaro.
IHU – No Brasil, partidos de extrema-direita costumam ter um discurso radicalmente nacionalista, recorrem a valores associados ao fascismo, mas do ponto de vista econômico costumam ser liberais e não estatólatras. Como compreender esse fenômeno?
Alvaro Bianchi – Volto a um tema que já anunciei. A extrema-direita é muito mais ampla que o neofascismo e reúne outras correntes, como o ultraliberalismo. Na discussão atual sobre a escala de trabalho 6x1, por exemplo, os ultraliberais são a favor de sua manutenção, mas organizações neofascistas como a Frente Integralista Brasileira e a Nova Resistência são contrárias. Isso não impede que o ultraliberalismo e o neofascismo, bem como o conservadorismo cristão e o autoritarismo militar, todos movimentos da extrema-direita brasileira, tenham características comuns. Chamo isso de “família de semelhanças”. É como uma grande família, na qual os parentes não são idênticos entre si, mas é possível perceber que todos têm traços fisionômicos parecidos, como o nariz, os olhos ou o formato do rosto. No Brasil os traços comuns mais importantes na extrema-direita são um anticomunismo anacrônico e um forte conservadorismo moral.
IHU – Nesta semana tivemos o trágico incidente a bombas na Praça dos Três Poderes, em Brasília. O autor do atentado acabou morrendo com a explosão de um dos artefatos e, ao que tudo indica, foi um suicídio. Até que ponto esse caso serve de exemplo da penetração da ideologia fascista na sociedade brasileira?
Alvaro Bianchi – Não há dúvida de que o indivíduo que morreu era de extrema-direita. Mas não há indícios de que fosse neofascista ou que tivesse uma conexão direta com o neofascismo. O que sabemos, com certeza, entretanto, é que ele expressava uma ideologia que tinha aqueles traços comuns com o neofascismo que apontei há pouco: o anticomunismo anacrônico e o conservadorismo moral.
Digo que esse anticomunismo é anacrônico porque não existe nenhuma força comunista real no Brasil, com a exceção de microgrupos que não representam nenhuma ameaça à ordem capitalista. O comunismo, entretanto, tem servido como um espantalho que representa todos os medos dessas pessoas: a insegurança pública, o feminismo, o movimento LGBTQIA+, as políticas de cotas étnico-raciais, o secularismo e tudo o mais que percebem como uma ameaça a sua vida ou a seus valores. É isso o que permite que o anticomunismo se confunda com um antipetismo radical ou que acreditem em bobagens como uma conspiração orquestrada no Foro de São Paulo, muito embora o partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o Foro não tenham nada a ver com o comunismo, nem representem uma ameaça ao capitalismo. O que distingue o autor dos atentados de outros indivíduos de extrema-direita é que ele estava disposto a um ato de extrema violência para expressar suas crenças. Nisso ele se aproxima do fascismo.
IHU – É possível afirmar, tomando como referente os discursos e as pautas defendidas por partidos de extrema-direita no Brasil, que temos siglas fascistas, ainda que não tão abertamente? Por quê?
Alvaro Bianchi – Não existe nenhum partido neofascista com registro eleitoral. Já tivemos. A Ação Integralista Brasileira e seu sucessor no pós-guerra, o Partido da Representação Popular, tinham registro, participavam das eleições e elegiam vereadores, prefeitos e deputados com uma ideologia fascista. Pode-se dizer, também, que o Partido de Reedificação da Ordem Nacional (Prona), de Enéas Carneiro, era neofascista. Não basta ser conservador ou mesmo reacionário para um partido ser fascista. O que esses partidos citados tinham em comum era o desejo explícito de construir uma nova ordem, de derrubar a democracia liberal.
Embora inexista um partido neofascista legalizado, há neofascistas em vários partidos brasileiros que possuem registro eleitoral. Em eleições passadas, a Nova Resistência tentou se infiltrar no Partido Democrático Trabalhista, por exemplo. E uma importante liderança neointegralista, Paulo Fernando Melo da Costa, chegou a assumir como suplente um posto de deputado federal pelo partido Republicanos (DF), depois de ter tentado pelo Patriotas, pelo PSDB, pelo PTB e pelo Prona. Enfim, não temos partidos neofascistas, mas não faltam partidos coniventes com o neofascismo, ou mesmo de extrema-direita, como o Partido Liberal, de Bolsonaro.
IHU – A famosa frase de Gramsci, em Cadernos do Cárcere, parece mais atual que nunca: “O velho mundo está morrendo, o novo tarda a nascer. Nesse claro-escuro, surgem os monstros”. Até que ponto esta afirmação reflete o presente e como superar um contexto desta ordem? Como olhar para o futuro com esperança?
Alvaro Bianchi – Permita-me fazer uma correção. Há muitos anos pesquiso a obra de Gramsci e por isso não posso deixar de voltar a um tema sobre o qual sempre falo. Ele nunca escreveu essa frase desse jeito. Ela é uma tradução livre, poética, diria, que aparece primeiro em francês e tem uma versão popularizada em inglês por Slavoj Žižek. A frase correta é esta: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho morre e o novo não poder nascer: neste interregno ocorrem os fenômenos mórbidos mais variados”.
O contexto da frase é importante. Gramsci discutia nesse parágrafo o que ele chamava de “crise contemporânea”, que, para ele, era uma crise de hegemonia, ou seja, de capacidade dirigente. Nenhum partido conseguia dirigir a sociedade, nem os velhos partidos liberais e conservadores, nem os partidos socialistas e comunistas. Nesse contexto de “equilíbrio catastrófico” entre partidos e classes sociais, uma solução radical e imprevista poderia surgir. Obviamente era do fascismo que ele estava falando. Isso fica evidente pelo fato de citar nesse contexto um texto de Mussolini, embora só mencionasse o título e escondesse o autor, provavelmente para evitar a censura. Essa frase nos permite interpretar melhor os fenômenos contemporâneos.
Se quisermos entender o ressurgimento do neofascismo e a emergência do pós-fascismo, não basta olhar para a crise do capitalismo. É imprescindível ver também as dimensões políticas da crise. É ali que estão as ameaças, mas também a esperança. Para que seja possível superar esse contexto é necessário deslocar o terreno da luta. Eu diria que a esquerda precisa retomar o terreno da contestação, e das ruas, terreno que renunciou quando submergiu no lodo dos acordos eleitorais e ministeriais. Gramsci dizia que a história ensina, mas não tem alunos. Se quisermos aprender algo com o passado, poderíamos começar por reconhecer que o fascismo ganhou força mediante acordos promovidos em gabinetes palacianos, mas não foi nesses gabinetes que ele foi derrotado.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Alvaro Bianchi – Tem sido frequente compreender o fenômeno do bolsonarismo como uma forma de populismo ou de fascismo. Eu discordo. Acho que isso simplifica demais o fenômeno. Juntamente com André Kaysel, meu colega da Unicamp, tenho definido a ideologia do bolsonarismo como uma coalizão discursiva de extrema-direita. O neofascismo é parte dessa coalização, embora não a mais importante. Também fazem parte dela o conservadorismo evangélico e católico, o ultraliberalismo e o autoritarismo militar. Creio que desse modo evitamos confundir coisas muito diferentes e, ao mesmo tempo, criamos as condições para compreendermos outras coalizões discursivas de extrema-direita, como os autodenominados “libertários”, do atual presidente argentino Javier Milei; os “republicanos”, encabeçados pelo chileno José Antonio Kast; ou ainda a ala mais radical do movimento cívico de Santa Cruz na Bolívia, liderado pelo ex-governador Luís Fernando Camacho.