12 Julho 2024
Neste período de tensão política, que provavelmente continuará, qual pode ser a contribuição dos cristãos? La Croix-l'Hebdo explora as maneiras pelas quais a vida cristã pode promover uma democracia mais ativa.
O artigo é de Élodie Maurot, jornalista francesa, publicado em La Croix International, 07-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Acolhimento de migrantes, políticas de integração, preferência nacional... O debate público de hoje questiona os limites de nossa solidariedade e as prioridades segundo as quais devemos vivê-la.
Que reflexões o cristianismo pode oferecer sobre esse tema? "O cristianismo é um universalismo moral, o que significa que é fundamental para os cristãos não apenas se preocuparem com o bem-estar daqueles que pertencem às suas próprias comunidades particulares: as nossas 'tribos', as nossas famílias, a nossa nação, a nossa comunidade religiosa", enfatiza o eminente sociólogo das religiões, Hans Joas, alemão, católico convicto. "Os cristãos têm moralmente obrigações não apenas com os outros cristãos, mas com todos os seres humanos, e até mesmo àqueles que virão depois de nós".
Em suas obras, famosas internacionalmente, Hans Joas sempre fez questão de ressaltar que o cristianismo é uma das formas mais importantes de universalismo moral. "Não é a única", afirma o sociólogo. "Enfatizo esse ponto porque alguns cristãos tendem a ser egocêntricos e se consideram os únicos universalistas morais. Existem outras formas religiosas e laicas de universalismo moral, mas os cristãos são universalistas morais. Esse é um ponto fundamental". Entretanto, esse universalismo moral não leva a uma solidariedade tão generalizada que se torne vaga e impessoal. "O universalismo moral certamente não significa que os cristãos não tenham também obrigações morais específicas: eles não deveriam se sentir moralmente obrigados apenas em relação àqueles que estão longe deles, mas também em relação àqueles que estão mais próximos", continua Hans Joas, que cita a armadilha da "filantropia telescópica" destacada por Charles Dickens em seu romance Bleak House, "em que um dos personagens está tão empenhado em ajudar os pobres na África que negligencia completamente sua própria família e filhos". No cristianismo, não se pode simplesmente arbitrar entre o próximo e um estranho do outro lado do mundo. "Na vida cristã, o desafio é encontrar um equilíbrio entre as obrigações éticas universais e aquelas específicas", ressalta o sociólogo. "Essas duas formas de empenho moral não podem ser colocadas em uma hierarquia clara, mas as duas dimensões, que são incomensuráveis, devem ser mantidas em equilíbrio".
Quais são as consequências dessa tensão no plano político? Em primeiro lugar, o universalismo moral é contra todas as formas de racismo, não apenas o racismo biológico, mas também as formas mais contemporâneas ligadas, por exemplo, à rejeição do Islã ou a discriminações sociais em que o outro é sempre reduzido a uma diferença radical, em nome da qual se acredita que a relação seja impossível. O cristianismo é, portanto, incompatível com a lógica tribal da extrema direita, resumida por Jean-Marie Le Pen em uma célebre frase: "Gosto mais das minhas filhas do que das minhas sobrinhas, das minhas sobrinhas mais do que das minhas primas, das minhas primas mais do que das minhas vizinhas", porque o Evangelho afirma que Deus se revela no rosto de cada "próximo", de qualquer pessoa que eu encontre.
No plano político, a vida cristã nos convida a manter juntos diferentes níveis de empenho, "mesmo que isso seja incômodo no atual contexto político, enraizado na dicotomia simplista entre nacionalismo e não nacionalismo", admite Hans Joas. "Os cristãos não podem ser nacionalistas, porque não podem considerar sua própria nação como seu maior ponto de referência, mas isso não significa que eles sejam simplesmente universalistas e rejeitem todas as fronteiras.
Eles devem sempre se perguntar o que promove melhor os valores que prezam: a democracia e a justiça social do estado de bem-estar".
Para Bernard Bourdin, frade dominicano que ensina teologia política no Institut Catholique de Paris (ICP), essa oscilação "entre um universalismo generalizado e um nacionalismo cada vez mais rígido" é "o grande dilema de nosso tempo". O que a reflexão cristã pode oferecer neste momento "é uma rearticulação do universal e do particular".
"O universal é sempre vivido em um lugar particular, e isso também é o que dizemos sobre a Igreja", enfatiza. Para o teólogo, isso significa considerar a nação como "uma comunidade de existência cívica e não étnica, que é inclusiva sob certas condições, e combina o desejo de permanência de um grupo com a integração dos novos chegados".
Essa maneira de colocar em diálogo o particular e o universal leva o cristianismo a vivenciar as fronteiras de uma maneira especial, sem aboli-las, mas tampouco absolutizá-las. "Na Igreja primitiva, os cristãos eram itinerantes", lembra Christoph Theobald, jesuíta e professor de teologia na Faculdade Loyola de Paris. "Eles logo cruzaram fronteiras, se desvencilharam do tribalismo e das leis de pureza do grupo e introduziram um novo tipo de hospitalidade".
No nosso tenso clima político, a audácia dos primeiros cristãos incentiva uma forma de liberdade interior em relação à questão das fronteiras. "Ela nos convida a cruzar as fronteiras, não na forma da globalização que nega a necessidade de uma casa, mas na convicção de que o encontro com os outros pode ser frutuoso", sugere Christoph Theobald. Com sua longa história de viagens a várias partes do mundo e sucessivas aculturações, os cristãos podem testemunhar a riqueza dos encontros culturais e religiosos. "Eles podem ajudar as pessoas a descobrirem que a identidade não é fixada de uma vez por todas e a trabalharem em prol de uma concepção de identidade na qual a travessia de fronteiras seja vista de forma positiva".
Como mostram as pesquisas, os cristãos não estão imunes ao fascínio dos extremismos, mas o voto nesses partidos entre os praticantes regulares ainda está abaixo da média nacional. Poderia o habitus cristão ser um convite a uma forma de moderação política? "Na política, a maioria dos católicos não escolhe o extremismo", afirma Jean-Louis Schlegel, sociólogo das religiões e especialista em cristianismo. "Sua posição pode ser considerada um tanto morna, mas há também uma sabedoria nessa moderação, que não esquece que a política é a grande arena da violência e das más paixões. Sem dúvida, essa moderação também é um traço característico da nossa geração (nascida após a Segunda Guerra Mundial), que experimentou os excessos do totalitarismo e não esqueceu suas inúmeras vítimas".
Ao contrário do que se acredita, moderação não significa necessariamente compromisso ou tibieza. "Poderíamos dizer que o cristianismo cultiva uma radicalidade que não pretende impedir o discernimento das situações, uma radicalidade que se aplica a si mesmos e não se impõe aos outros", continua Jean-Louis Schlegel. Essa moderação política não impede convicções fortes. "Na vida cristã, a radicalidade é essencialmente um gesto de retorno às raízes, como mostra a etimologia da palavra", insiste o teólogo Bernard Bourdin. Ao longo de sua história, o cristianismo foi capaz de sucessivos retornos às suas fontes originárias, às Sagradas Escrituras e aos diversos carismas dos fundadores de suas ordens religiosas. Esse estilo singular, que combina memória e criatividade, poderia inspirar a vida democrática de hoje na redescoberta de suas intuições originais: antigas, religiosas, iluministas, liberais, sociais, republicanas...
Mas a moderação não é a única característica dos cristãos. Em uma sociedade onde a sedução dos extremismos está em ascensão, eles não ficam alheios a essa tendência geral. "Alguns cristãos podem ser tentados por uma radicalidade identitária e afirmar não querer aceitar compromissos com ninguém", escreve Bernard Bourdin. "Nesse caso, simplesmente se limitam a defender um segmento da identidade e desconsideram todo o resto". O risco aqui é ficar dentro de seu próprio círculo e perder uma visão ampla da vida política para se especializar em determinados tópicos, como o fim da vida ou as migrações. Para Bernard Bourdin, ao contrário, a política é necessariamente um lugar de compromissos: "A vida política é sempre uma busca de consenso. Essa é a própria essência da política. Somente nos regimes autoritários os compromissos nunca são feitos, e é fácil entender por quê...".
Uma vez livre das armadilhas do ceticismo e do maniqueísmo, será que a moderação poderia se tornar uma forma de radicalismo? Esse aparente paradoxo dá o que pensar... "A moderação não pode ser uma tentativa de conciliar tudo; não é manter juntos uma coisa e seu contrário, o que acaba criando problemas", ressalta o teólogo Christoph Theobald. "Em vez disso, a moderação consiste em perceber que os seres humanos e a sociedade são marcados pela vulnerabilidade e que hoje existem áreas mais frágeis, como as zonas rurais, as periferias e as fronteiras, que precisam de mais atenção. Nesse caso, trata-se de uma radicalidade espiritual que não tem nada a ver com os extremismos".
Não pode haver democracia sem justiça social. A urgência de implementá-la é acentuada hoje pelo crescimento da xenofobia, ligada à sensação de abandono e rebaixamento das classes populares e ao crescimento das desigualdades. Neste momento de desorientação, precisamos ouvir novamente os apelos dos filósofos Emmanuel Mounier (1905-1950) e Simone Weil (1909-1943), que tentaram despertar as consciências católicas de seu torpor burguês para falar da urgência do compartilhamento e da justiça social.
Ambos foram capazes de rejeitar, com lucidez e vigor, as armadilhas do fascismo e do comunismo, mas também a traição do capitalismo burguês, que entorpece as consciências no prazer egoísta.
Emmanuel Mounier criticou particularmente a "boa consciência social" do católico burguês, que se compraz em condenar os excessos da extrema esquerda sem se comover com a situação dos mais pobres. "Contra o pessimismo, temos a fé. Contra o otimismo, a mordida da injustiça", escrevia ele em Feu la chrétienté (1950). "Injustiça! Milhares de pessoas honestas a ignoram com total tranquilidade, e hoje usam a sua indignação contra o comunismo para silenciar os seus remorsos e os seus chamados. Nós atormentaremos as suas noites, as nossas noites com sua voz estridente. Se a revolução socialista perde de vista os seus objetivos, é muito fácil julgá-la, afastar-se e sentar-se (...) O cristão não abandona o pobre, o socialista não abandona o proletário, ou estarão traindo o seu nome".
A fim de valorizar o empenho dos cristãos pela justiça social, o Papa João Paulo II não hesitou, em sua encíclica Sollicitudo rei socialis, de 1987, em usar o termo "solidariedade", embora ele estivesse mais relacionado ao patrimônio intelectual e social da esquerda do que à linguagem tradicional da Igreja Católica. "É importante enfatizar o quanto o reconhecimento da solidariedade no ambiente católico abra o caminho para o encontro de heranças intelectuais e sociais que podiam parecer estar nos antípodas da tradição cristã", enfatiza André Talbot, teólogo, professor emérito do ICP e especialista em questões sociais. “A referência ao mesmo termo nunca é insignificante: torna possíveis debates e ações comuns".
Na mesma encíclica, João Paulo II elevou o status da solidariedade no corpus cristão, chamando-a de "virtude cristã" (n. 39-40). Para André Talbot, pode-se ler nisso "um chamado ao investimento pessoal tanto nas relações diretas com outros seres humanos quanto na contribuição para a vida de instituições sociais (mutualismo, cooperação, etc.)". Essa leitura também permite entender a solidariedade como uma verdadeira "virtude social". No debate sobre a justiça social, a contribuição ativa dos cristãos é um lembrete das exigências concretas do "destino universal dos bens" e da "opção preferencial pelos pobres", dois princípios fundamentais da doutrina social da Igreja que podem lançar luz sobre muitos pontos cegos das nossas democracias. Nestes tempos de crise da autoridade política, também podem nos lembrar da importância da subsidiariedade, um outro princípio orientador do pensamento social da Igreja, que consiste em evitar a transferência de decisões para os níveis mais altos e favorecer a participação e a responsabilidade dos cidadãos próximos às realidades concretas.
A urgência em buscar o bem comum, numa sociedade francesa fortemente dividida em tantos grupos, como ilhas de um arquipélago, parece mais do que nunca uma necessidade. Essa noção, tradicional no pensamento social da Igreja Católica, passou mais ou menos para a linguagem comum, mas continua sendo conflitual. Porque o que cada um entende por "bem comum" depende muitas vezes dos valores subjetivos. "É preciso reiterar a ideia de que ninguém sozinho pode definir o bem comum, porque invocar o bem comum pode esconder a afirmação do bem como eu ou meu grupo o vemos", insiste o teólogo Bernard Bourdin. “Nesse sentido, o comunismo foi uma ideologia equivocada do bem comum".
Podemos, portanto, dar um conteúdo à noção de bem comum? "Depois de muita reflexão, acredito que o bem comum não possa ser substancializado, o que equivaleria a supor que se sabe o que é o bem comum", responde Bernard Bourdin. Ele só pode ser um objetivo, um ideal. Nesse sentido, ele restitui à democracia a sua razão de ser".
O bem comum também pode ser visto não tanto como um horizonte, mas como uma fonte, "não tanto como uma meta a ser alcançada em uma marcha heroica, mas como um núcleo de sentido que tem um efeito sobre nós", enfatizam a teóloga Claire-Anne Baudin e a filósofa Camille de Villeneuve. Um núcleo de sentido que devemos ser capazes de imaginar "não na forma de um bem a ser possuído juntos (seja material ou ideológico), mas de uma vida que seja boa para todos".
Com a crise ecológica, a busca pelo bem comum se tornou ainda mais urgente e crucial, como enfatizou o Papa Francisco na sua encíclica Laudato si' (2014). Passou-se um nível puramente político para aquele de uma preocupação mais ampla pela vida e os seres vivos, que, por sua vez, deve ter um impacto sobre as decisões políticas. A busca pelo bem comum é, mais do que nunca, uma questão de profundo trabalho interior, de luta espiritual, porque somos "assolados por desejos de fuga. Com todas as nossas forças, preferiríamos não ver, gostaríamos de não ter de querer, escolhemos por adiar e, de preferência, pedimos que tudo o que é necessariamente custoso seja feito em outro lugar", afirmam Claire-Anne Baudin e Camille de Villeneuve.
Nessa reflexão sobre o bem comum, o cristianismo pode oferecer à discussão a sua metáfora de uma sociedade vista como um corpo solidário, uma interpretação herdada do pensamento do apóstolo Paulo em sua Primeira Carta aos Coríntios (1 Coríntios 12, 12-25). Nesse corpo, cada membro conta aos olhos dos outros e é considerado na sua singularidade e em relação ao todo. Essa visão fala de uma solidariedade que está muito distante da imagem de uma sociedade centrífuga que atrai para o centro os cidadãos de melhor desempenho e deixa às margens os mais fracos, que são em número cada vez maior.
“O problema é que a reflexão sobre o corpo é marcada por um pensamento reacionário e antimoderno, porque é a linguagem usada por Bonald e de Maistre no século XIX", aponta Jean-Marie Donegani, professor emérito de ciência política na Sciences Po de Paris e psicanalista, que enfatiza que existem, de qualquer forma, duas sensibilidades na teologia católica, "aquela de São Tomás, que valoriza a preeminência da cabeça, e aquela de Bossuet, que defende a igual dignidade dos membros". No debate filosófico sobre a democracia, a dificuldade hoje é pensar na conjunção entre as liberdades individuais e o bem do todo, a manutenção de um bem comum, e também dos bens comuns - aqueles bens necessários à vida humana (água, ar, biodiversidade, etc.) dos quais ninguém tem o direito de se apropriar ou degradar. Aqui nos deparamos com um nó que resiste e estimula a pesquisa. "A metáfora do corpo foi completamente abandonada pelo pensamento liberal, que só quer ver indivíduos radicalmente isolados", explica Jean-Marie Donegani. "Mas não é assim que uma sociedade funciona. Na realidade, ela não é composta de indivíduos que são como átomos. A metáfora do corpo também é encontrada no discurso da República Francesa, que voltou com força nos últimos anos".
Donald Trump, Viktor Orbán... O iliberalismo, definido como um regime político que mantém as características da democracia, mas reduz as liberdades individuais, a igualdade dos cidadãos e o estado de direito constitucional, e no qual os controles e os equilíbrios (juízes, imprensa etc.) são enfraquecidos, está prosperando. Seu sucesso é muitas vezes sustentado por uma narrativa nacionalista e por valores que são reivindicados, embora de forma instrumental e desviante. Dessa forma, tenta ocupar o espaço público deixado em aberto e "vazio" pela democracia liberal, construída com base na recusa de promover uma visão particular do bem. Como os cristãos podem se posicionar diante do renascimento de determinados valores? Como evitar ser envolvidos em um "choque de civilizações" semelhante ao que se alastra há vários anos nos Estados Unidos? Atualmente, está se desenvolvendo um discurso cristão que vincula as dificuldades da democracia à secularização e à perda do senso de Deus. Mas é possível inverter a perspectiva e ver a democracia como uma forma de construção política com um valor espiritual. "Os valores da República - liberdade, igualdade e fraternidade - são, de certa forma, enormes", ressalta o teólogo Christoph Theobald, querendo despertar o significado mais profundo de palavras desgastadas pelo tempo e pelo hábito. "Trata-se de valores herdados da tradição cristã que podem ser compartilhados com os outros". O jesuíta chamou a atenção especialmente para a fraternidade, "sobre a qual não se pode legislar e que, em certo sentido, torna a democracia um sistema frágil, deixado à capacidade de solidariedade da sociedade e à generosidade de cada pessoa".
"Ao designar a fraternidade como um valor, nomeamos uma transcendência imanente", afirma Christoph Theobald.
Longe de ser um sistema simplista que pode ser reduzido aos caprichos da maioria, como afirmam seus detratores, a democracia requer "um nível muito exigente de liberdade interior e de espiritualidade", enfatiza Christoph Theobald. Em sua opinião, requer a aquisição de "uma atenção aos outros, uma maneira de se colocar no seu lugar" que corresponde à regra de ouro enunciada por Cristo no Evangelho: "Tudo o que vocês desejam que os outros façam a vocês, façam também a eles. Esta é a essência da Lei e dos Profetas" (Evangelho de Mateus 7,12).
Tal fraternidade, necessária, mas não imponível, fez com que o grande jurista alemão Ernst-Wolfgang Böckenförde (1930-2019), católico fervoroso e socialdemocrata engajado, dissesse que a democracia se fundamenta em uma substância espiritual - em sentido amplo - que ela não pode garantir. "O Estado liberal secularizado vive de pressupostos que ele mesmo não pode garantir. Esse é o grande risco que foi assumido por amor à liberdade", escreve ele em uma frase que chamou a atenção na Alemanha. Oponente ferrenho de qualquer ideia de Estado cristão, Ernst-Wolfgang Böckenförde não escreveu essa frase com a intenção de questionar a pertinência ou a sustentabilidade do Estado secularizado. Pelo contrário, o jurista apontou como o Estado laico e a liberdade religiosa tenham se desenvolvido na mesma medida. Por um lado, o nascimento do Estado moderno, desvinculado do poder religioso, permite o reconhecimento e a proteção da liberdade religiosa. Por outro lado, o crescimento da liberdade religiosa impede que o Estado moderno fique prisioneiro de seu próprio absolutismo e o abre para o respeito radical pela liberdade. Nessa configuração política, a atenção na liberdade é central, mas a verdade não é esquecida. Pelo contrário, para Böckenförde, o reconhecimento da liberdade religiosa é o resultado de um amor pela verdade que tomou consciência de que a verdade só pode ser buscada livremente. A liberdade religiosa existe como direito não contra a verdade, mas por amor à verdade, e corresponde precisamente a uma exigência da fé cristã", escreve ele.
O que podemos aprender com isso para o presente, nos tempos frágeis pelos quais tantas democracias estão passando? Essa poderosa reflexão, que evidencia tanto o valor da democracia quanto a sua vulnerabilidade, convida os cristãos a apoiá-la, sem partidarismos. De fato, Ernst-Wolfgang Böckenförde esperava que os cristãos "deixassem de ver nesse estado, no seu caráter laico, algo de estranho e hostil às suas convicções, e vissem nele, ao contrário, a oportunidade de liberdade que também é seu dever preservar e realizar".
O nosso debate público é fragmentado, mas, paradoxalmente, uma característica parece uni-lo: está repleto de medos. Medo de estrangeiros e migrantes, medo do Islã, medo do neofascismo, medo do fim da democracia, medo de esquecer a crise ecológica por considerações de curto prazo... A lista das nossas preocupações parece interminável. Devemos diminuir a importância desses medos ou, ao contrário, levá-los mais em consideração? "O medo é um sentimento básico que se associa automaticamente à insegurança", afirma Jean-Marie Donegani, segundo o qual os medos devem ser levados muito a sério e não podem ser facilmente descartados. "Assim que nos deparamos não apenas com a insegurança, mas até mesmo com uma menor segurança, entramos em pânico, porque é a morte que aparece, o medo de não existir mais", enfatiza. O problema causado pelos medos se torna ainda mais agudo pelo fato de que as nossas sociedades ocidentais se acostumaram com a segurança e desenvolveram grandes expectativas nesse campo. "Qualquer mínima insegurança, qualquer violação da sensação de segurança, é percebida com muito mais intensidade do que no passado e se torna uma fonte de pânico", observa Jean-Marie Donegani.
Então, como enfrentar esse sentimento de insegurança, que agora é generalizado e tem consequências perigosas nas urnas? "A resposta para a insegurança está em uma socialidade forte", afirma Jean-Marie Donegani. "Não podemos esquecer que o medo depende do estado da sociedade, o que nos leva a ver o outro como um inimigo em potencial ou como um irmão ou irmã." Para o psicanalista, "o cristianismo certamente tem muitas coisas a dizer, mas o caminho é estreito e não serão suficientes as pregações para que o percorramos". Isso nos lembra que a base do cristianismo não é tão óbvia e que não é tão normal ter irmãos".
Para Christoph Theobald, diante dos medos, há a responsabilidade de não se deixar levar pela dramatização e não os propagar: "Isso pressupõe uma atitude nas conversas mais elementares: a escolha de não se deixar levar e uma forma de renúncia, porque o que assusta também é o que fascina, como mostrou a obra de Rudolf Otto (teólogo e filósofo alemão, 1869-1937, ndr). Para fazer isso, os cristãos têm seus próprios recursos nas Escrituras, que contêm muitos convites para resistir às ansiedades, aos medos e até mesmo à radical sensação de abandono que caracteriza cada vida humana. Esses medos também podem ser desconstruídos coletivamente. "Em resposta aos medos, os cristãos podem designar microlugares, microssociedades que são lugares de fraternidade, onde o medo é exorcizado, porque isso é realmente um exorcismo", enfatiza Christoph Theobald.
Correr o risco de tomar a palavra também é uma forma de superar o medo e uma atitude alinhada com os fundamentos da fé cristã. "Quando lemos o Evangelho, vemos que Jesus sempre se expressa de forma dialógica. Ele passa o tempo discutindo com os fariseus, com todos aqueles que são contra ele, quer os convença ou não", ressalta o teólogo Bernard Bourdin. O Evangelho nos diz que nada é alcançado sem um diálogo, sem uma troca de palavras".
Sobre esse tema, o cristianismo oferece um tesouro, mas "em vasos de barro", como diria o apóstolo Paulo, porque hoje a conversa é vivida de forma difícil em todas as comunidades cristãs, "mesmo naquelas religiosas, onde se pensa que seria mais fácil falar uns com os outros", sorri Bernard Bourdin.
"Somos uma religião da Palavra, uma tradição da Palavra, e nem sequer conseguimos falar uns com os outros", observa também Christoph Theobald, para quem "as divisões da sociedade francesa estão totalmente presentes também na Igreja".
Portanto, é com grande humildade e começando com um trabalho prático em seu próprio nível que os cristãos podem se envolver nas discussões que são vitais para qualquer democracia. "Diante da sensação de ser rebaixados, da sensação de insegurança cultural, a pergunta me parece ser: 'Conseguiremos fazer com que as pessoas falem e se escutem plenamente? A tradição cristã tem muito a oferecer nesse sentido: a capacidade de escutar as pessoas em sua vida diária - e enfatizo a expressão ‘plenamente', porque os representantes eleitos acreditam que escutam, mas será que realmente escutam 'plenamente'? - e, acima de tudo, a capacidade de fazer com que falem entre si".
Na esfera política, a escolha do diálogo não é banal. Leva a uma mudança na relação com o adversário e até mesmo com o inimigo político. "Do meu ponto de vista, a natureza radical da mensagem cristã é evidente: 'Nunca tratar outro ser humano como um inimigo'", afirma Hans Joas. Ao dizer isso, o sociólogo pretende se distanciar das teses de Carl Schmitt (1888-1985), um teórico do direito católico membro do regime nazista, que estabeleceu a centralidade da distinção entre “amigo” e “inimigo” na política, uma abordagem que mais tarde se tornou comum na filosofia política. "Para mim, essa distinção não é cristã, porque, como cristão, sinto-me profundamente obrigado a considerar posições das quais discordo totalmente, e continuo obrigado a ver, mesmo no nazista, um ser humano", enfatiza o sociólogo, ponderando as suas palavras.
No mundo de hoje, essa posição tem importantes consequências práticas. "Manifestem, formem coalizões contra a extrema direita, etc.", exorta Hans Joas. "Mas sempre o façam com uma atitude crítica em relação a vocês mesmos." Para o sociólogo, qualquer oposição à extrema direita deve ser acompanhada por uma reflexão sobre as promessas não mantidas pela democracia, "sobre seus limites atuais, e com a tentativa de perceber os elementos pró-democráticos presentes no protesto das pessoas que votam na extrema direita". "Ao propor isso, não pretendo de forma alguma negar o fato de que existam realmente ideólogos inimigos da democracia", explica Hans Joas. "Mas rotular aqueles que os seguem como meros antidemocratas não ajudará a fortalecer a democracia.
Em uma época marcada pelo individualismo e pela retração para a esfera privada, o empenho não é simples e garantido, tanto para os cristãos quanto para outros cidadãos. Será que o gosto pelo engajamento público não se teria enfraquecido em favor de empenhos privados ou de afinidades? Portanto, vale a pena reler hoje o texto que Paul-Louis Landsberg (1901-1944), amigo de Mounier, publicou na revista Esprit sobre o engajamento em 1937. No pano de fundo dos anos entre as duas guerras e da ascensão do totalitarismo, esse filósofo perspicaz, nascido em uma família judia, batizado quando criança protestante e depois católico, confronta-se com a questão do engajamento político, tão necessário quanto perigoso.
Para Landsberg, o comprometimento é fundamentalmente exigido pela "humanização do mundo" e está ligado ao caráter histórico da vida humana. Mas o filósofo escuta as reservas daqueles que optam por uma forma de retração. "Jogados em um mundo cheio de contradições, cada um de nós sente muitas vezes a necessidade de se retirar do jogo e se colocar às margens, se não 'acima' dos acontecimentos, como espectadores distantes", analisa. "A razão para essa fuga do mundo não é o egoísmo puro e simples, mas sim o desejo de poder construir pelo menos uma vida significativa na nossa esfera individual e privada, retraindo-nos em nós mesmos."
Seu objetivo é demonstrar a natureza ilusória dessa fuga do mundo. Ele argumenta que "a nossa existência humana está tão envolvida em um destino coletivo que a nossa vida só pode adquirir significado participando da história das comunidades a que pertencemos". Ao nos empenharmos, nos comprometemos com o futuro e "nenhum Deus pode nos livrar dessa responsabilidade para com o futuro".
Superando suas próprias hesitações em relação ao empenho, Emmanuel Mounier ouviu a lição do amigo. "O dever dos homens que têm intenções puras será o de entrar no impuro, buscando purificá-lo por dentro, mas sem fugir dessa impureza sob o pretexto de que ela é impura", escreveu depois de seus encontros.
Mas como superar a hesitação e a procrastinação? "Para Landsberg, que trabalhou extensivamente sobre Santo Agostinho, o empenho - para ser justo - deve equilibrar duas tendências: ceticismo e maniqueísmo", explica Yves Roullière, ensaísta e editor das obras completas de Emmanuel Mounier. "A essência do ceticismo é que sempre suspende o empenho, com base no fato de que não se pode saber nada sobre a realidade e por nossa consternação em função da nossa limitada capacidade de acessar a verdade. O maniqueísmo, por outro lado, defende posições bem definidas". Para o editor, a análise de Landsberg está muito alinhada com a nossa situação atual, "onde a atmosfera cética de negligência e apatia em que estamos imersos gera o maniqueísmo, e onde o maniqueísmo, rapidamente desapontado, por sua vez alimenta o ceticismo". Como sair desse círculo vicioso? "Para Landsberg, é antes de tudo dentro de nós mesmos que temos que elaborar essas duas tendências, porque elas estão em nós naturalmente: todos nós temos um cético e um maniqueísta dentro de nós", ressalta Yves Roullière. A única maneira de fazer isso é confrontar–se com si mesmos e a realidade. Trata-se de estar presentes para a realidade, assim como ela é, nem preta nem branca, nem perfeita nem imperfeita, nunca ‘sabida’, nunca ‘"conhecida’. É uma realidade na qual nos empenhamos com certeza, mas sempre sem garantias".
O empenho pode, portanto, dar origem a uma nova perspectiva sobre si mesmos e sobre o mundo. O filósofo protestante Paul Ricoeur valorizava o empenho como o ato pelo qual as pessoas constroem e descobrem a si mesmas, muito longe de uma visão do empenho reduzida ao ativismo ingênuo, à militância restrita e à promoção simplista de ideias concebidas antes de qualquer ação.
"O empenho não é uma propriedade da pessoa, mas um critério da pessoa", analisou Ricoeur com elegância: ao me forçar a tomar uma posição, a crise me transforma de espectador fugitivo ou desinteressado em um homem convicto que descobre criando e cria descobrindo".
Consequentemente, o empenho pode trazer alegria. Uma alegria que, paradoxalmente, nasce da ausência de domínio. "Como Mounier e Péguy nos lembram, a insegurança do empenho cria uma liberdade que revela a alegria no seu âmago", aponta o ensaísta Yves Roullière. "Essa perspectiva contrasta com a maneira como agimos hoje, muitas vezes, infelizmente, apenas para evitar o pior.
A alegria, por outro lado, nasce do sabor da liberdade".
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Recursos cristãos para manter a democracia viva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU