Um olhar sobre o aceleracionismo. Artigo de Mark Fisher

Imagem criada pelo Dall.E

15 Junho 2024

Se o capital desenvolver ao máximo sua potência destrutiva, irá se esgotar e, supostamente, sucumbir sob insurreição? Exame de um pensamento que produziu polêmica por sua radicalidade antimelancólica, porém talvez ultratecnicista. 

O artigo é de Mark Fisher, com introdução de Leonardo Foletto e Victor Wolfenbüttel, publicado por BaixaCultura e reproduzido por Outras Palavras, 05-06-2024. 

A tradução do original de Mark Fisher é de Victor Wolfenbüttel e Leonardo Foletto. O texto foi e originalmente publicado no e-flux #46, junho de 2013.

Mark Fisher, morto em 2017, foi escritor, crítico, teórico cultural, filósofo e professor no Departamento de Culturas Visuais em Goldsmiths, Universidade de Londres. Tornou-se primeiro conhecido por seu blog, k-punk, muito conhecido no início dos anos 2000, e por seu pensamento radical sobre política, música e cultura popular.

Eis o artigo. 

Os interrompidos sonhos aceleracionistas da cultura popular

A proliferação da inteligência artificial generativa tem nos feito, nos últimos meses, redobrar o interesse por um conjunto de ideias agrupadas em torno do nome aceleracionismo. O termo tem lastro na teoria e filosofia política há pelo menos uma década. Nos últimos anos, tem ganhado repercussão também a partir da busca recente de empresas de IA generativa, como a Open IA, por uma “Inteligência Artificial Geral” que vá substituir ou superar a capacidade humana de pensar. Isso implica também na popularidade de ideias semelhantes como a singularidade, popularizada por Ray Kurzweil, que relaciona o crescimento tecnológico desenfreado da “super inteligência artificial” à mudanças irreversíveis ​​na civilização humana.

Usado a partir de “The persistence of Negative”, artigo de Benjamin Noys de 2010, o aceleracionismo tem como premissa a aceleração das forças do capital como meio de desterritorializar o sistema capitalista. É uma heresia política: “a insistência de que a única resposta política radical ao capitalismo não é protestar, agitar, criticar, nem tão pouco esperar seu colapso nas mãos de suas próprias contradições, mas sim acelerar suas tendências ao desenraizamento, à alienação, à decodificação, à abstração”, na definição de Armen Avanessian e Mauro Reis na introdução do ótimo “Aceleracionismo: estrategias para una transición hacia el postcapitalismo

O livro, publicado pela editora argentina Caja Negra em 2017, compila vários textos ainda não muito conhecidos no Brasil, como o “Manifesto por uma Política Aceleracionista”, de Nick Srnicek e Alex Willians, “Meltdow” e “Crítica do Miserabilismo Transcendental” de Nick Land, “Reflexões sobre o Manifesto por uma política aceleracionista” de Antonio Negri , “O Aceleracionismo questionado desde o ponto de vista do corpo” de Bifo Berardi, “Red Stack Attack! Algoritmos, capital e a automatização do comum” de Tiziana Terranova, “O labor do inumano” de Reza Negarestani, entre outros, inclusive o texto apresentado logo abaixo, de Mark Fisher.

Duas visões disputam o aceleracionismo. A primeira é a apocalíptica, elaborada principalmente por Nick Land, filósofo cocriador (ao lado de Sadie Plant) do CCRU (Cybernetic Culture Research Unit) – herético grupo de pesquisa/coletivo teórico criado em 1995 na Universidade de Warwick, do qual Mark Fisher fez parte. Mais tarde, Land se tornaria um dos principais ideólogos da extrema direita mundial, apoiador de Trump e até mesmo de Bolsonaro, mentor de gente como Mencius Moldbug e Peter Thiel, reza a lenda que auto-exilado em Shangai já há alguns anos – uma parte de seus textos entre 1987 e 2007 estão compilados no livro “Fanged Noumena”, de 2011.

Figura excêntrica, Land falava já em 1993 (no texto “Meltdown”) que os humanos são apenas “meat puppets” (fantoches de carne) do capital, um obstáculo a ser superado para que o capitalismo alcance seus objetivos transhumanistas de adquirir agência própria a partir da aceleração descontrolada das finanças e da Inteligência Artificial, rumo ao caos e a destruição do planeta. Esta visão anti-humanista e monstruosa, que parece sair de um filme de terror gore, nasce de “uma crítica ao tom celebratório às tendências desterritorializantes do capitalismo”, como afirmam Victor Marques e Rodrigo Gonsalves no posfácio à edição brasileira de “Realismo Capitalista”, de Mark Fisher, lançada em 2020 pela Autonomia Literária. Ela dobra a aposta em orientação a um futuro onde a humanidade se tornaria um entrave ao desenvolvimento do tecno-capital, uma ideia que, por mais estranha e grotesca que possa parecer, serve de pano de fundo hoje para gente como Elon Musk e sua obsessão com a colonização de outros planetas, e também para o “anarcocapitalismo” de Javier Milei, na Argentina. Land considera o tecno-capital como o verdadeiro sujeito da história, sendo a humanidade o seu hospedeiro e não seu mestre – um tipo de frase que poderia sair da boca do presidente argentino num programa ruim de TV transmitido por streaming, com Milei vociferando ferozmente ladeado por seus quatro cachorros clonados pela empresa PerPETuate a partir do DNA do Conan, seu enorme mastim inglês morto em 2017.

A outra visão em disputa do aceleracionismo seria aquela mais à esquerda, adotada por Fisher a partir de 2010, onde ela afirma que ser aceleracionista é, seguindo a máxima de Bertold Brecht, “não começar das coisas boas e velhas, mas das coisas novas e ruins”. Um “recuar para a frente”, mesmo que “através da merda do capital”, para adotar uma postura não contrária à tecnologia ou neoludista, como às vezes ecoa em certa parte da esquerda, mas sim uma que possa avaliar “que tipo de inovações técnicas podem ser apropriadas a serviço da emancipação humana”, como afirmam Marques e Gonsales no posfácio à Realismo Capitalista. Nessa visão, é forte a presença do imaginário do fim do trabalho, de longa tradição teórica (remetendo inclusive ao primeiro livro escrito pelo já citado Bifo, “Contra Il lavoro”, publicado em 1970) em que a inteligência artificial, por exemplo, poderia estar à serviço da humanidade, reduzindo o trabalho repetitivo e deixando as pessoas com mais tempo para o lazer, os cuidados e o prazer. Este imaginário utópico-otimista está presente em obras como “Pós-Capitalismo: um guia para o nosso futuro”, de Paul Mason (2017), publicado (e fora de catálogo) no Brasil pela Cia das Letras, e “Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado”, de Aaron Bastani, lançado em 2022 pela Autonomia Literária.

O texto “Manifesto por uma política aceleracionista”, de Nick Srnicek e Alex Willians, é central nessa visão, pois sintetiza uma disputa de imaginário de futuro à esquerda, pós-capitalista, para também desnaturalizar a ideia do realismo capitalista de Mark Fisher em que o capitalismo virou o “padrão” com o qual nenhuma outra forma política estrangeira pode disputar. Como escrevem Srnicek e Willians, “o que o aceleracionismo promove é um futuro mais moderno; uma modernidade alternativa que o neoliberalismo é intrinsecamente incapaz de gerar”. Ainda que esse futuro pós-capitalista seja uma incógnita, é necessário tentar imaginá-lo para que se consiga mobilizar coletivamente uma renovação política, econômica e social na esfera do desejo. Algo que, hoje, a extrema-direita consegue fazer muito bem ao se apropriar do discurso “antissistemaultraliberal e neorreacionário, idealizado por figuras como Land.

Aqui entra o conceito elaborado pelo CCRU de hiperstição, que fala da necessidade de inventar futuros ficcionais para que eles possam se tornar reais. Para Fisher, seria necessário pensar uma prática hipersticional comunista que, por sua vez, tivesse algo de pragmático, para que não caia na utopia vazia que nos deixa na posição cômoda de estar com as mãos limpas, mas inúteis – e derrotadas. No campo da disputa de imaginários tecnológicos, ainda que não associados ao aceleracionismo, o resgate da história do Cybersin, por Evgeny Morozov em “The Santiago Boys”, entraria nessa linha, ao relembrar os erros da tentativa de construção de um sistema técnico que ligasse dezenas de fábricas no Chile de Salvador Allende nos anos 1970 [a principal referência aqui é “Cybernetic Revolutionaries: Technology and Politics in Allende’s Chile”, de Éden Medina]. Poderíamos incluir aqui também o Cooperativismo de Plataforma e a sua potente ideia da posse das plataformas ser distribuída de forma coletiva entre seus cooperados, e também o “Oráculo de Tecnologias Transfeministas”, criado pela Coding Rights (por Joana Varon e Sasha Constanza-Chok, com ilustrações de Clarote), um projeto que fornece ferramentas para permitir um brainstorming coletivo sobre imaginários alternativos, mais inclusivos e diversos, em torno das tecnologias.

O texto abaixo, produzido em 2013 (quatro anos antes da morte de Fisher), se apresenta não como um programa de ações do aceleracionismo, tal qual o já citado “Manifesto por uma política aceleracionista”, mas como uma análise política da cultura – a cultura musical, como Fisher costumava gostar de trazer, mas também a comportamental. A partir da crítica musical e cultural de Ellen Wilis, Fisher analisa como a direita neoliberal individualizou os desejos coletivos que a contracultura abriu nos anos 1960 para, então, reivindicar esse novo terreno – e a partir daí, cooptar a contracultura e reduzir seus ideias libertários a “relíquias estéticas” destituídas de sua radicalidade política inicial.

Nesse ponto, a esquerda dos final da década de 1990 e do início dos 2000, algo perdida após o altermundismo e a proliferação massiva da internet e das tecnologias digitais, passa a ser até mesmo anti-aceleracionista: “é reduzida a defender, sem competência, relíquias na forma de compromissos antigos (a socialdemocracia, o New Deal) ou a extrair um gozo tíbio de seu próprio fracasso em superar o capitalismo”, como Fisher escreve. Citando Wendy Brown, ele afirma que esta esquerda passa a buscar refúgio no familiar e no tradicional sem qualquer impulso para a frente ou orientação própria, um tipo de melancolia que contribui para o fracasso da cultura popular em gerar sonhos – inclusive estéticos – novos, que avancem radicalmente na direção de um “outro” ainda não existente.

Daí vem a sugestão do aceleracionismo de Fisher em reforçar a necessidade também de um imaginário aceleracionista para a cultura. Ele, porém, não chega a apontar diretamente elementos desse imaginário, embora critique em outro texto (“Fantasmas da Minha Vida”, lançado no Brasil em 2022) o “modo nostalgia”, expressão criada por Fredric Jameson nos anos 1980 para se referir aos cada vez mais comuns pastiches pós-modernos dos anos 1980 que se apegam à forma e as técnicas do passado. O “modo nostalgia” reverbera a sensação, compartilhada também por Bifo em “Depois do Futuro” (lançado no Brasil em 2019 e já comentado por aqui), de um “lento cancelamento do futuro”, ou da dificuldade de imaginar futuros na arte decorrente também do afogamento pela superoferta de informação libertada na rede.

Fisher provavelmente não tinha conhecimento dos avanços transfeministas, indígenas e afro futuristas das ações autônomas tecnológicas na América Latina, na África e na Ásia. Possivelmente também não conhecia o kuduro angolano ou o funk brasileiro, ritmos e estéticas musicais que, na nossa visão, apontam para o futuro – um futuro algo precário, muito remixador e globo periférico [como já falávamos em 2010!]. Um futuro que, mesmo olhando para o passado, traz elementos novos, talvez ainda não compreendidos o suficiente por uma classe intelectual política de esquerda. Ainda assim, a análise de Fisher é importante como diagnóstico e organização de caminhos possíveis para novos imaginários também tecnológicos – aceleracionistas ou não.

Leonardo Foletto e Victor Wolfenbüttel

“Uma revolução social e psíquica de magnitude quase inconcebível”: os interrompidos sonhos aceleracionistas da cultura popular

Por Mark Fisher

Vivemos um momento de profunda desaceleração cultural. As primeiras duas décadas deste século têm sido marcadas até agora por um senso extraordinário de inércia, repetição e retrospecção, estranhamente alinhado com as análises proféticas da cultura pós-moderna que Fredric Jameson começou a desenvolver na década de 1980. Sintonize o rádio em uma estação que toque as músicas mais contemporâneas, e você não encontrará nada que não pudesse ter ouvido na década de 1990. A afirmação de Jameson de que o pós-modernismo era a lógica cultural do capitalismo tardio representa agora um presságio ameaçador do (não) futuro da produção cultural capitalista: tanto política como esteticamente, parece que agora só podemos esperar mais do mesmo, para sempre.

Pelo menos por enquanto, parece que a crise financeira de 2008 fortaleceu o poder do capital. Os programas de austeridade implementados com tanta agilidade na sequência da crise viram uma intensificação – em vez de um desaparecimento ou diluição – do neoliberalismo. A crise pode ter retirado a legitimidade do neoliberalismo, mas isso serviu apenas para mostrar que, na falta de qualquer força contrária eficaz, o poder capitalista pode agora prosseguir sem a necessidade de legitimidade. As ideias neoliberais são como a litania de uma religião cujo poder social sobreviveu à capacidade de ter fé dos crentes. O neoliberalismo está morto, mas continua. As explosões militantes de 2011 pouco fizeram para perturbar a sensação generalizada de que as únicas mudanças serão para pior.

Para entender o que pode estar em jogo no conceito de aceleracionismo estético, talvez valha a pena contrastar o estado de espírito dominante em nossos tempos com o tom afetivo de um período anterior. Em seu ensaio de 1979, “The Family: Love It or Leave It” (A família: ame-a ou deixe-a), a crítica musical e cultural Ellen Willis observou que o desejo da contracultura de substituir a família por um sistema de criação coletiva dos filhos implicaria “uma revolução social e psíquica de magnitude quase inconcebível [1]”. É muito difícil, em nossos tempos de esvaziamento, recriar a confiança da contracultura de que tal “revolução social e psíquica” não só poderia acontecer, como já estaria em processo de desenvolvimento. A vida de Willis, assim como a de muitos da sua geração, foi moldada pelo embalo dessas esperanças e por depois vê-las murchar gradualmente à medida que as forças de reação recuperavam o controle da história. Provavelmente, não há melhor relato do recuo da contracultura dos anos 60, da ambição prometeica para a autodestruição, a resignação e o pragmatismo, do que a coleção de ensaios de Willis, “Beginning To See The Light”. A contracultura dos anos 60 pode ter sido reduzida a uma série de relíquias estéticas “icônicas” – demasiado familiares, de circulação interminável, des-historicizadas –, despojadas de conteúdo político, mas o trabalho de Willis permanece como uma dolorosa lembrança do fracasso da esquerda. Como Willis deixa claro na introdução do livro, ela se via frequentemente em desacordo com o que considerava o autoritarismo e o estatismo do socialismo dominante. Embora a música que ela ouvisse na época falasse de liberdade, o socialismo parecia ter mais a ver com centralização e controle estatal. A história de como a contracultura foi cooptada pela direita neoliberal nos é familiar agora, mas o outro lado desta narrativa fala sobre a incapacidade da esquerda de se transformar face às novas formas de desejo às quais a contracultura deu voz.

A ideia de que os “anos 60 conduziram ao neoliberalismo” se complica se damos ênfase no desafio às estruturas familiares. Porque então fica claro que a direita não absorveu correntes e energias contraculturais sem deixar vestígios. A conversão da rebelião contracultural em prazeres de consumo capitalistas necessariamente ignora a ambição da contracultura de acabar com as instituições da sociedade burguesa. Uma ambição que, da perspectiva do novo “realismo” que a direita impôs com sucesso, parece ingênua e sem esperança.

A política da contracultura era anticapitalista, argumenta Willis, mas isso não implicava em uma rejeição direta de tudo o que era produzido no capitalismo. O prazer e o individualismo certamente foram importantes para o que Willis caracterizava como a sua “disputa com a esquerda [2]”. Contudo, o desejo de acabar com a família não poderia ser construído apenas nestes termos; tratava-se inevitavelmente também de formas novas e sem precedentes de organização coletiva (porém não estatistas). A polêmica de Willis “contra as noções correntes da esquerda sobre o capitalismo avançado” considerava, na melhor das hipóteses, apenas como parcialmente verdadeiras as ideias de que “a economia de consumo nos torna escravos das mercadorias, que a função dos meios de comunicação de massa é manipular as nossas fantasias, e que por isso atingiremos a satisfação pessoal com a compra de mercadorias do sistema [3]”. A cultura popular – e a música em particular – era um terreno de luta mais do que de domínio do capital. A relação entre formas estéticas e política era instável e incipiente – a cultura não apenas “expressava” posições políticas já existentes, mas também antecipava uma política por vir (que também foi, muitas vezes, uma política que nunca de fato chegou).

O papel da música como um dos motores da aceleração cultural do final dos anos 50 até o ano 2000 teve a ver com a sua capacidade de sintetizar diversas energias, tropos [4] e formas culturais, tanto quanto qualquer outra característica específica da própria música. A partir do final dos anos 50, a música tornou-se a zona onde as drogas, as novas tecnologias, as ficções (científicas) e os movimentos sociais podiam combinar-se para produzir sonhos – vislumbres sugestivos de mundos radicalmente diferentes da ordem social existente. (A ascensão do “realismode direita implicou não apenas a destruição de formas particulares de sonho, mas a própria supressão da função de sonhar na cultura popular.) Por um momento, bem no coração da música comercial, abriu-se um espaço de autonomia para os músicos explorarem e experimentarem. Neste período, a música popular foi definida por uma tensão entre os desejos e imperativos (geralmente) incompatíveis dos artistas, do público e do capital. Sua conversão em mercadoria não era o ponto em que esta tensão seria sempre e inevitavelmente resolvida em favor do capital; em vez disso, as próprias mercadorias poderiam ser os meios pelos quais correntes rebeldes poderiam se propagar: “Os meios de comunicação de massa ajudaram a espalhar a rebelião, e o sistema gentilmente comercializou produtos que a encorajaram, pela simples razão de que havia dinheiro a ser ganho com os rebeldes que também eram consumidores. Num certo nível, a revolta dos anos 60 foi uma ilustração impressionante da observação de Lênin de que “o capitalista te venderá a corda para enforcá-lo [5]”.

Isso agora parece bastante otimista, uma vez que, como todos nós sabemos, não foi o capitalista quem acabou enforcado. O marketing da rebelião acabou sendo mais sobre o triunfo do marketing do que da rebelião. O golpe da direita neoliberal consistiu em individualizar os desejos que a contracultura abriu, e, em seguida, reivindicar o novo terreno libidinal. A ascensão da nova direita foi baseada no repúdio à ideia de que a vida, o trabalho e a reprodução poderiam ser transformados coletivamente – agora, o capital seria o único agente de transformação. O recuo de qualquer contestação séria à família é um lembrete de que o clima de reação que cresceu a partir da década de 1980 não foi apenas sobre a restauração de algum poder econômico estritamente definido: foi também sobre o retorno – no nível da ideologia, não necessariamente do fato empírico – de instituições sociais e culturais que pareciam possíveis de serem eliminadas na década de 1960.

No seu ensaio de 1979, Willis insiste que o regresso do familiarismo foi central para a ascensão da nova direita, que estava prestes a ser confirmada, em grande estilo, com a eleição de Ronald Reagan nos EUA e de Margaret Thatcher no Reino Unido. “Se existe uma tendência cultural que definiu os anos 70”, escreve Willis, “foi o ressurgimento agressivo do chauvinismo familiar [6]”. Para Willis, talvez o sinal mais perturbador deste novo conservadorismo tenha sido a aceitação da família por partes da esquerda [7] – uma direção reforçada pela tendência dos antigos adeptos da contracultura (inclusive ela própria) de (re)tornar-se à família, devido a um misto de exaustão e derrotismo. “Lutei, fiz minha parte, cansei de ser marginal. Eu quero entrar!” [8]. A impaciência – o desejo de uma mudança súbita, total e irrevogável; do fim da família dentro do tempo de uma geração – deu lugar a uma resignação amarga quando isso (inevitavelmente) não aconteceu.

Agora podemos nos voltar para a controversa questão do aceleracionismo. Quero situar o aceleracionismo não como uma forma herética de marxismo, mas como uma tentativa de convergir, intensificar e politizar as dimensões mais desafiadoras e exploratórias da cultura popular. O desejo de Willis de “uma revolução social e psíquica de magnitude quase inconcebível” e a sua “disputa com a esquerda” sobre o desejo e a liberdade podem oferecer uma maneira diferente de pensar o que está em jogo neste conceito tão mal compreendido. Uma certa visão do aceleracionismo, talvez agora dominante, afirma que a posição equivale a uma torcida pela intensificação de qualquer processo capitalista, especialmente o “pior”, na esperança de que isso leve o sistema a um ponto de crise terminal. (Um exemplo disto seria a ideia de que votar em Reagan e Thatcher nos anos 80 foi a estratégia revolucionária mais eficaz, uma vez que suas políticas supostamente levariam à insurreição). No entanto, esta formulação é questionável, na medida em que assume aquilo que o aceleracionismo rejeita – a ideia de que tudo o que é produzido “sob” o capitalismo pertence integralmente ao capitalismo. Em contraste, o aceleracionismo sustenta que existem desejos e processos que o capitalismo dá origem e dos quais se alimenta, mas que não consegue conter. É a aceleração destes processos que empurrará o capitalismo para além dos seus limites. O aceleracionismo é também a convicção de que o mundo desejado pela esquerda é pós-capitalista – que não há possibilidade de retorno a um mundo pré-capitalista e que não há desejo sério de regressar a este mundo, mesmo que pudéssemos.

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A artimanha aceleracionista depende de uma certa compreensão do capitalismo, melhor articulada por Deleuze e Guattari em Anti-Édipo (um texto que, não por coincidência, surgiu na esteira da contracultura). Na famosa formulação do Anti-Édipo, o capitalismo é definido pela sua tendência a descodificar/desterritorializar ao mesmo tempo que recodifica/reterritorializa. Por um lado, o capitalismo desmantela todas as estruturas, normas e modelos sociais e culturais existentes do sagrado; por outro, revive inúmeras formações aparentemente atávicas (identidades tribais, religiões, poder dinástico…):

“A axiomática social das sociedades modernas está contida entre dois polos, e não para de oscilar de um polo a outro. Tais sociedades, nascidas da descodificação e da desterritorialização, sobre as ruínas da máquina despótica, estão contidas entre o Urstaat, que bem gostariam de ressuscitar como unidade sobrecodificante e reterritorializante, e os fluxos desencadeados que as levam em direção a um limiar absoluto. Elas recodificam com toda a força, a golpes de ditadura mundial, de ditadores locais e de polícia toda-poderosa, enquanto descodificam ou deixam descodificar as quantidades fluentes de seus capitais e de suas populações. Elas estão contidas entre duas direções: arcaísmo e futurismo, neoarcaísmo e ex-futurismo, paranoia e esquizofrenia [9]”.

Esta descrição capta estranhamente a forma como a cultura capitalista se desenvolveu a partir da década de 1970, com a desregulamentação neoliberal amoral almejando um projeto de dessacralização e mercantilização sem limites, complementada por um neoconservadorismo explicitamente moralizante, que procura reavivar e reforçar tradições e instituições mais antigas. No nível do conteúdo proposto, esses futurismos e neoarcaísmos se contradizem, mas e daí?

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Nunca uma discordância ou um disfuncionamento anunciaram a morte de uma máquina social que, ao contrário, se alimenta habitualmente das contradições que provoca, das crises que suscita, das angústias que engendra e das operações infernais que a revigoram: o capitalismo aprendeu isso e deixou de duvidar de si, e até os socialistas deixavam de acreditar na possibilidade da sua morte natural por desgaste. As contradições nunca mataram ninguém [10]”.

Se o capitalismo é definido como a tensão entre desterritorialização e reterritorialização, entende-se então que uma forma (talvez a única) de superar o capitalismo seja remover os amortecedores da reterritorialização. Daí a notória passagem do Anti-Édipo, que poderia servir de epígrafe ao aceleracionismo:

“Então, qual solução, qual via revolucionária? (…) Retirar-se do mercado mundial, como Samir Amin aconselha aos países do Terceiro Mundo, numa curiosa renovação da “solução econômica” fascista? Ou ir no sentido contrário, isto é, ir ainda mais longe no movimento do mercado, da descodificação e da desterritorialização? Pois talvez os fluxos ainda não estejam suficientemente desterritorializados e suficientemente descodificados, do ponto de vista de uma teoria e de uma prática dos fluxos com alto teor esquizofrênico. Não retirar-se do processo, mas ir mais longe, “acelerar o processo”, como dizia Nietzsche: na verdade, a esse respeito, nós ainda não vimos nada [11]”.

A passagem é enigmática e provocadora – o que Deleuze e Guattari querem dizer ao associar o “movimento do mercado” com “descodificação e desterritorialização”? Infelizmente eles não explicam, o que tornou fácil para os marxistas ortodoxos enquadrarem esta passagem como um exemplo clássico de como 1968 conduziu à hegemonia neoliberal – mais uma capitulação da esquerda à lógica da nova direita. Esta leitura foi facilitada pela utilização desta passagem na década de 1990 por Nick Land para fins explicitamente antimarxistas. Mas e se lermos esta seção do Anti-Édipo não como uma retratação do marxismo, mas como um novo modelo para o que o marxismo poderia ser? É possível que o que Deleuze e Guattari delineavam aqui fosse o tipo de política que Ellen Willis defendia: uma política que fosse hostil ao capital, mas viva ao desejo; uma política que rejeitasse todas as formas do velho mundo em favor de uma “nova terra”; isto é, uma política que exigisse “uma revolução social e psíquica de magnitude quase inconcebível”?

Um ponto de convergência entre Willis e Deleuze e Guattari foi a sua crença comum de que a família estava no centro da política de reação. Para Deleuze e Guattari, talvez seja a família, mais do que qualquer outra instituição, a principal agência da reterritorialização capitalista: a família como estrutura transcendental (“mamãe-papai-eu”) assegura provisoriamente a identidade em meio e contra as tendências líquidas do capital, sua propensão a dissolver todas as certezas preexistentes. É por esta razão, sem dúvida, que alguns esquerdistas recorrem à família como um antídoto e escape ao colapso capitalista – mas isto é ignorar a forma como o capitalismo depende da função reterritorializadora da família.

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Não é por acaso que a infame afirmação de Margaret Thatcher de que “não existe sociedade, apenas indivíduos” teve de ser complementada por “… e as suas famílias”. É também significativo que em Deleuze e Guattari, tal como noutros teóricos anti psiquiátricos como R. D. Laing e David Cooper, o ataque à família estivesse associado a um ataque às formas dominantes de psiquiatria e psicoterapia. A crítica de Deleuze e Guattari à psicanálise baseia-se na maneira como ela isola o indivíduo do campo social mais amplo, privatizando as origens do sofrimento no “teatro” edipiano das relações familiares. Eles argumentam que a psicanálise, em vez de analisar a forma como o capitalismo realiza esta privatização psíquica, apenas a repete. Também é notável que as lutas antipsiquiátricas retrocederam tanto quanto as lutas pela família: para que o sistema de realidade da nova direita fosse naturalizado, era necessário que essas lutas, indissociáveis da contracultura, fossem não apenas derrotadas, mas sim que desaparecessem.

Vale a pena parar aqui para refletir sobre o quão longe a esquerda está de defender com confiança o tipo de revolução que Deleuze e Guattari e Ellen Willis esperavam. A análise de Wendy Brown sobre a “melancolia de esquerda” no final da década de 1990 ainda capta dolorosamente (e de forma embaraçosa) os impasses libidinais e ideológicos em que a esquerda muitas vezes se vê presa. Na verdade, Brown descreve o que é uma esquerda anti-aceleracionista: uma esquerda que, sem qualquer impulso para a frente ou orientação própria, é reduzida a defender, sem competência, relíquias na forma de compromissos antigos (a socialdemocracia, o New Deal) ou a extrair um gozo tíbio de seu próprio fracasso em superar o capitalismo. Muito longe de estar do lado do inimaginável e do inédito, esta é uma esquerda que se refugia no familiar e no tradicional. “O que surge”, escreve Brown,

é uma esquerda que opera sem uma crítica profunda e radical do status quo ou sem uma alternativa convincente à ordem existente das coisas. Mas talvez ainda mais preocupante, é uma esquerda que se tornou mais apegada à sua impossibilidade do que à sua potencial fecundidade; uma esquerda que se sente mais à vontade vivendo não na esperança, mas na sua própria marginalidade e fracasso; uma esquerda que está presa em uma estrutura de apego melancólico a um certo nicho de seu próprio passado morto, cujo espírito é fantasmagórico, cuja estrutura de desejo é retrógrada e punitiva [12]”.

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Foi precisamente esta tendência esquerdista para o conservadorismo, a defensiva e a nostalgia que permitiram que Nick Land provocasse a esquerda dos anos 90 com o Anti-Édipo, argumentando que a “destruição criativa” do capital era muito mais revolucionária do que qualquer coisa que a esquerda fosse capaz de projetar agora.

Não há dúvidas de que esta melancolia persistente contribuiu para o fracasso da esquerda em tomar a iniciativa após a crise financeira de 2008. A crise e suas consequências até agora justificaram a visão de Deleuze e Guattari de que “as máquinas sociais têm o hábito de se alimentar… das crises que provocam.” O domínio contínuo do capital pode ter tanto a ver com o fracasso da cultura popular em gerar novos sonhos como com a qualidade inercial das posições e estratégias políticas oficiais. Onde a cultura popular de vanguarda do século XX permitiu todos os tipos de ensaios experimentais daquilo que Hardt e Negri chamam de “monstruoso, violento e traumático… processo revolucionário de abolição da identidade [13]”, os recursos culturais para este tipo de desmantelamento do eu estão agora um tanto desnudados. Michael Hardt disse que “o conteúdo positivo do comunismo, que corresponde à abolição da propriedade privada, é a produção autônoma da humanidade – uma nova visão, uma nova maneira de ouvir, pensar, amar [14]”. O tipo de reconstrução da subjetividade e das categorias cognitivas que o pós-capitalismo irá implicar é tanto um projeto estético como algo que pode ser entregue por qualquer tipo de agente parlamentar ou estatista. Hardt refere-se à discussão de Foucault sobre a frase de Marx “o homem produz o homem”. O programa que Foucault descreve na sua explicação sobre esta frase (abaixo) precisa ser recuperado pela cultura caso se almeje alguma esperança de alcançar a “revolução social e psíquica de magnitude quase inconcebível” com que a cultura popular uma vez sonhou:

O problema não é recuperar a nossa identidade 'perdida', libertar nossa natureza aprisionada, nossa verdade mais profunda; em vez disso, o problema é avançar em direção a algo radicalmente Outro. O centro da questão ainda parece estar na frase de Marx: o homem produz o homem… Para mim, o que deve ser produzido não é um homem idêntico a si mesmo, exatamente como a natureza o teria desenhado ou de acordo com a sua essência; pelo contrário, devemos produzir algo que ainda não existe e sobre o qual ainda não podemos saber como e nem o que será [15]”.

Notas

[1] Ellen Willis, Beginning To See The Light: Sex, Hope and Rock-and-Roll (Hannover and London: Wesleyan University Press, 1992), p. 158.

[2] No original, “quarrel with the left”. Ellen Willis, Beginning To See The Light: Sex, Hope and Rock-and-Roll (Hannover and London: Wesleyan University Press, 1992), p.16

[3] Ellen Willis, Beginning To See The Light: Sex, Hope and Rock-and-Roll. Hannover and London: Wesleyan University Press, 1992.

[4] No original, “tropes“, que significa literalmente tropo, mas que possui proximidade de sentido à metáfora.

[5] Ellen Willis, Beginning To See The Light: Sex, Hope and Rock-and-Roll. Hannover and London: Wesleyan University Press, 1992, p.16.

[6] Ibid., 150.

[7] “On the left, family chauvinism often takes the form of nostalgic declarations that the family, with its admitted faults, has been vitiated by modern capitalism, which is much worse (at least the family is based on personal relations rather than soulless cash, etc., etc.).” Ibid., 152.

[8] Ibid., 161.

[9] Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo; Editora 34, 2010. p.345.

[10] Ibid., p. 202.

[11] Ibid., p.318

[12] Wendy Brown, “Resisting Left Melancholy,” Boundary 2 26:3 (1999): 19–27.

[13] “Para muitas pessoas, de fato, a família é o principal se não exclusivo local de experiencia social coletiva, acordos de trabalho cooperativo, carinho e intimidade. Baseia-se nos commons, mas ao mesmo tempo o corrompe, impondo uma série de hierarquias, restrições, exclusões e distorções.” Tradução. de Clarice Pelotas. Antonio Negri e Michael Hardt, Commonwealth. Cambridge, MA: Belknap Press, 2009. p 339.

[14] Michel Hardt, “The Common in Communism,” in eds. Costas Douzinas and Slavoj Žižek, The Idea of Communism. New York: Verso, 2010. p.141.

[15] Michel Foucault, Observações sobre Marx (Nova York: Semiotext(e), 1991), 121.

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