09 Abril 2024
Matt Colquhoun (Reino Unido, 1991) está entre os que receberam o impacto sem abrandamento. Fazia parte da comunidade de Goldsmiths, na Universidade de Londres, quando soube do suicídio de seu professor e mentor, Mark Fisher, no final do recesso de inverno de 2017. As implicações deste fato traumático, com seus significados e consequências estão refletidas em Egreso: sobre comunidad, duelo e Mark Fisher (Caja Negra, 2021), uma obra comprometida com a liderança disruptiva de Fisher.
A assimilação da perda foi comunitária e complexa, e incluiu revisar as intensidades do autor de Realismo capitalista: o seu interesse pelo de Fora, o estranho e as formas como a cultura trafega ideias desestabilizantes para a opressão cinzenta do mundo. Colquhoun se empenhou, então, na transcrição e edição do último curso de Fisher, no qual se interessava pela relação entre desejo e capitalismo, e que abre um novo campo em seu pensamento, deixado agora para o trabalho intelectual daqueles que sobreviveram.
Na troca de e-mails que teve com a revista Ñ, Colquhoun – que também é fotógrafo e blogueiro – abordou o legado de Fisher e seu potencial em continuar intervindo nas ideias do presente, refletidas em Desejo pós-capitalista.
A entrevista é de Luciano Lahiteau, publicada por Clarín-Revista Ñ, 05-04-2024. A tradução é do Cepat.
Em ‘Egreso’, você aborda o luto coletivo após a morte de Fisher. Como a publicação dessas aulas se encaixa nesse contexto?
Quando Egreso foi publicado, sua recepção foi mista. Muitas pessoas não reconheceram a versão de Mark Fisher sobre a qual eu estava falando. Estavam mais familiarizadas com textos como Realismo capitalista e Fantasmas da minha vida. Contudo, para nós, que conhecemos Mark pessoalmente, estava claro que o seu pensamento, desde então, tinha avançado de várias maneiras.
A dor que experimentamos coletivamente deveu-se, em parte, ao fato de que muitas pessoas não conheceriam a versão de Mark que amávamos. Uma semana após a publicação original de Egreso, o Reino Unido entrou em quarentena. Preso em casa, decidi que o melhor registro que tínhamos desta mudança no pensamento de Mark – além da introdução inacabada de Comunismo ácido – eram as gravações de suas aulas.
De repente, tive tempo para transcrevê-las e reunir outros materiais importantes. São uma tentativa consciente de compartilhar mais do pensamento de Mark daquela época, que só era conhecido por um grupo seleto, com uma audiência muito maior.
Considerando que Fisher era um escritor muito bom, que aspectos dele você considera que essas aulas revelam?
Em Egreso, escrevi sobre a “Função Fisher”. É um jogo de palavras que Michel Foucault chamou de a “função de autor”. Foucault pensava que, ao publicar suas obras, todos os escritores experimentavam uma espécie de morte simbólica. A função de autor requer que façamos as pazes com a diferença entre a obra escrita e a pessoa que a escreve. Fisher estava muito interessado neste processo. Muitas vezes, falava sobre como o ato de escrever era uma forma de canalizar forças externas a ele ou forças inconscientes que atuavam em seu interior.
Portanto, Mark Fisher, o escritor, é muito diferente de Mark Fisher pessoa, e Mark desfrutou desse processo de despersonalização. Nessas aulas, testemunhamos Mark no processo de pensar, em vez de simplesmente consumir um livro como produto final do autor. É Mark o conferencista, que não deixa de fazer parte da “Função Fisher”, mas é um Mark que comunica suas ideias de formas muito diferentes.
Destaca-se, de modo especial, o seu senso de humor, mas também a sua generosidade e a sua paixão pelo ensino. Para Mark, ensinar é um processo muito mais ativo de tomada de consciência. Não se limita a apresentar um texto. Está construindo coletivamente um argumento, fazendo perguntas e sugerindo respostas, em colaboração com aqueles que estão com ele. Nós o presenciamos demonstrando os processos político-comunicativos que foram tão importantes para ele.
Nessas aulas, Fisher retoma pensadores como Freud e Marcuse e ousa submetê-los a novas visões. Como você diria que Fisher era como leitor?
Mark era um leitor apaixonado e, em consequência, um verdadeiro filósofo. Era alguém que amava o conhecimento e o processo de pensar. Mark Fisher é frequentemente descrito como um pensador “pessimista”, em linha com a ideia de Freud e Marcuse de que existe uma mente mundial que está afetada por uma doença. Contudo, ele preferiria chamar a si mesmo de pensador “negativo”.
Nosso pessimismo (a sugestão de que outro mundo não é possível, por exemplo) já faz parte dessa doença, então, ao ler ou produzir diagnósticos de nossas condições atuais, ele espera poder argumentar para negar esse pessimismo e pensar de modo diferente. Podemos resumir o pensamento de Fisher assim: o Realismo capitalista é um diagnóstico do presente; Fantasmas da minha vida explora a sintomatologia desta condição. O estranho e o insólito e essas aulas sobre o desejo pós-capitalista são sobre como podemos superar tal condição e viver de outra maneira.
Essa tarefa final, por estar inacabada, requer ser concluída por todos nós, o que revela por que o papel de Fisher como professor foi tão importante. A tarefa que nos cabe é coletiva. Mark, como indivíduo, claramente não tem todas as respostas. Isto é mais estimulante do que deprimente. Implora que sejamos bons estudantes e respondamos às perguntas que nos colocamos.
Fisher está preocupado com algo muito claro na realidade política atual: o descentramento entre classe e consciência de classe. Qual era a importância que conferia a este problema?
Talvez seja mais fácil olhar para o problema a partir das “políticas de identidade”, que são comumente ridicularizadas. Fisher escreveu repetidamente contra elas no blog k-punk. Originalmente cunhadas nos anos 1970 por feministas e socialistas negras, foram produto de um processo de tomada de consciência: uma comunidade debate a sua própria alienação, vivida por sua classificação social e, ao falar dessas experiências, percebe que muitas delas são compartilhadas.
Até aí, tudo bem. No entanto, nos anos mais recentes, a “política de identidade” perdeu a sua inclinação coletivista, passando para algo muito mais individualista. Fomentamos a autoidentificação com categorias sociais e nos orgulhamos da nossa posição sobre uma base individualista, privatizante. A situação na Palestina é um bom exemplo: o Estado israelense define a si através da categoria identitária “judaísmo” e declara sua propriedade sobre um pedaço de terra. Porém, nesta base, aniquila a diferença.
Para Fisher, isso era um problema. Acreditava que, em parte, essa mudança se dava por causa das redes sociais. Exploro esta tensão entre individualidade e coletividade no meu último livro Narcissus in Bloom, de modo que penso que há mais matizes do que Fisher costumava dar. O problema com isto, conforme ele escreveu em 2006, é o seguinte: “A política de identidade busca o respeito e o reconhecimento da classe dominante. “A política da desidentidade busca a dissolução do próprio aparato classificatório”.
Isto vai ao cerne da sua questão: classe como dominação versus classe como consciência. O primeiro ponto é compreendido de forma privada e usado como uma insígnia, o que exacerba o sentido de propriedade. O outro é considerado uma base material para a ação coletiva. O retorno de Fisher aos anos 1960 e 1970 e o seu interesse pela experiência psicodélica está relacionado a tudo isso. Afinal, os psicodélicos não estão associados ao encorajamento do eu e do ego (como pode acontecer com a cocaína), mas, ao contrário, com a dissolução do eu.
A questão para Fisher não era colocar as máscaras de identificação social que nos foram dadas pelo Estado (ou pelos estabelecimentos médicos e psiquiátricos), mas, ao contrário, descobrir as bases materiais para estas formas de categorização e atuar sobre as injustiças que geram.
Para muitos, o interesse de Fisher pela experiência revolucionária dos anos 1960 e 1970 foi uma surpresa. Por que considera que se dedicou a uma época tão ligada à nostalgia?
Nenhuma outra época sofreu uma neutralização libidinal como a dos anos 1960 e 1970. Hoje, é associada ao movimento hippie, ao flower power, aos Beatles. Não há nada de perigo aí. Os hippies são inofensivos. E todo mundo ama os Beatles! É um sonho fabricado. Sob esta imagem simplificada, temos vários movimentos revolucionários que ganhavam impulso real naquele momento. Movimentos que foram minados ou destruídos à força. Travou-se uma guerra cruel contra uma diversificada gama de facções que estavam comprometidas na produção imaginativa de formas de vida alternativas.
Fisher talvez tenha reconhecido que ele também havia sucumbido a uma amnésia popular nesse período. Como pós-punk britânico, nascido em 1968, muitos desses movimentos já tinham acabado quando se deu conta deles. No entanto, sob a influência de seus contemporâneos, como o escritor Jeremy Gilbert, reconsiderou o potencial dos anos 1960 e 1970 e viu que tinha muita coisa que podíamos salvar daquele período: não um sentimento de otimismo ingênuo, mas de resistência ativa. Era isto que Fisher esperava gerar em Realismo capitalista, e talvez tenha conseguido compreender que a sua tarefa e a de seus antecessores não eram, afinal, tão diferentes.
Fisher critica a esquerda e propõe levar a sério o desejo dos capitalizados, inclusive de celebrá-lo. Qual a repercussão disto naqueles que o rodearam, após a sua morte?
O desejo capitalista nos rodeia. E está no profundo de nós. As nossas aspirações são informadas pelo capitalismo em um nível fundamental. Quando acordo, meu primeiro pensamento pode ser o café, então, vou a Starbucks. Pode ser que eu me sinta atraído pelo último iPhone, por facilitar a comunicação com meus entes queridos. Talvez eu queira comprar minha própria casa e por isso vou trabalhar na esperança de poupar.
É um erro moralizar contra qualquer um desses desejos. Todos nós desfrutamos das comodidades da vida moderna e, para Fisher, não é necessário repudiar os nossos desejos pelas coisas que o capitalismo nos promete. O problema é que o capitalismo limita as formas como estes desejos podem ser satisfeitos e que o seu desenvolvimento desencadeia novos desejos que não pode conter adequadamente. O capitalismo não é o único sistema capaz de satisfazer esses desejos, nem é um sistema plenamente capaz de satisfazer os desejos que produz.
O problema, então, não é o desejo em si, mas a monopolização por parte do capitalismo da realização potencial de qualquer desejo. Quando Mark morreu, ficamos traumatizados com a sugestão de que tinha perdido a esperança em um mundo pós-capitalista. Contudo, as suas aulas de Desejo pós-capitalista contradizem isto. É claro que nunca esteve tão entusiasmado com a ideia de que muitas pessoas, especialmente os jovens, estavam se tornando mais críticas em relação ao mundo.
Em um momento em que nos é dito que temos pouco a esperar para além de uma catástrofe planetária, há maior insistência em que o futuro pode – deve – ser vivido de outra maneira. E como o próprio Fisher argumentou repetidamente, é o capitalismo que produz a depressão, justamente porque restringe a nossa imaginação e a nossa capacidade de viver como queremos. Por isso, muitos de nós, que éramos próximos a Mark no final de sua vida, ficamos ainda mais entusiasmados ao argumentar que essa grande liberdade já estava disponível para nós, que inclusive era essencial.
Decidi ajudar a difundir o pensamento dele por todas as partes, muitas vezes, à custa de uma vida cômoda. Continuo empobrecido, com excesso de trabalho e cansado, mas se as suas ideias podem inspirar a outros, animando-os a acreditar que outro mundo é possível, então, pode ficar melhor para todos. Poderíamos adquirir esta grande liberdade muito antes de que o próprio capitalismo nos faça acreditar que é possível.
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As últimas palavras de Mark Fisher. Entrevista com Matt Colquhoun - Instituto Humanitas Unisinos - IHU