28 Outubro 2023
O psicanalista fala sobre o psiquiatra francês num livro. “Ele foi o justo sucessor de Freud, retomou o fogo original, gerando algo novo”.
Ser herdeiros significa tornar-se sucessores, mas também órfãos, isto é, livres no sentido mais elevado. Uma liberdade é plena apenas se incluir a humildade do sentido do limite. Algo que pode ser ajudado pelo reconhecimento da figura do mestre, da consciência de que sempre há algo para aprender e que alguém veio antes de nós e outros virão depois. A coleção Eredi da Feltrinelli, editada pelo psicanalista Massimo Recalcati, dedica uma série de livros a diversas figuras de referência e ele mesmo conta em um ensaio o seu Jacques Lacan.
A entrevista é de Francesco Rigatelli, publicada por La Stampa, 24-10-2023.
Quando você ouviu falar dele pela primeira vez?
Encontrei o texto de Lacan depois de defender minha tese de Filosofia na Universidade de Milão. Era um verão quente e em vez de sair de férias mergulhei nos Escritos. Sem entender muito, para ser honesto. Um muro contra um muro. Só mais tarde descobri que uma maneira com que Lacan nomeava o amor era o neologismo “amur, amuro”. No encontro com o que não se entende, com o que escapa ao nosso alcance, que se revela não apropriável, temos a experiência do amor como amur... Foi o que aconteceu entre mim e Lacan naquele verão de 1985.
Qual é a sua lição para você?
Se tivesse que resumir em poucas palavras, eu diria que é não recuar, não trair, não ceder ao próprio desejo. Não pensar de forma moralista que o desejo está em oposição ao dever, mas pensar no desejo como a forma mais radical de dever. Efetivamente é a tarefa que Lacan atribui à experiência da análise: garantir que para um sujeito o seu desejo assuma a dignidade de um dever ético.
Na série Eredi que você organiza para a Feltrinelli encontra espaço também Sigmund Freud, que dívida tem para com ele e por que “prefere” Lacan?
A meu ver, Lacan foi o justo herdeiro de Freud. Isso significa conceber a herança não como uma aquisição passiva do que nossos pais nos deixaram, mas como uma retomada gerativa, criativa, como uma reconquista. É exatamente isso que Lacan faz com Freud: retoma o seu passo original, o fogo do qual surgiu a psicanálise.
A sua leitura antiescolástica de Lacan é de alguma forma mais freudiana?
Creio que não, simplesmente não é dogmática, porque não é uma leitura eclesial, religiosa do texto de Lacan. Portanto, não apenas mostra suas contradições sem suavizá-las, mas insiste em dizer que é precisamente nessas contradições, por exemplo aquelas que atravessam a diferença entre desejo e prazer, que reside a maior força do seu pensamento.
Estudar o pensamento de um mestre significa também defender o seu pensamento da opinião comum ou das manipulações?
Um mestre é alguém que abre portas. Para mim Lacan foi um muro, mas também uma porta. E eu, por minha vez, tenho sido para muitos uma porta para o texto lacaniano. A opinião comum também pode ser, no caso de Lacan, o esoterismo que se torna maneirismo, linguagem de seita, código elitista, necrologia... Meu esforço é transmitir um Lacan eficaz, compreensível, legível e vivo, o que, no entanto, não significa urbanizá-lo, isto é, reduzir a sua complexidade ou as arestas mais duras do seu pensamento. Deve-se sempre distinguir a banalização, que consiste em esquecer o essencial, da simplificação que consiste em tentar dizer o mais essencial.
Quem são seus outros mestres?
A leitura de Sartre foi decisiva para mim, pelo menos tanto quanto aquela de Freud. Mas também Agostinho, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Nancy no que diz respeito à filosofia. Em psicanálise o encontro com Elvio Fachinelli foi muito relevante para mim desde jovem. Meu mestre em carne e ossos, porém, foi Franco Fergnani, professor de filosofia moral na Universidade de Milão. Dele aprendi a disciplina e o rigor do estudo, como dar uma aula e o que significa tentar ensinar. Ele foi uma figura decisiva na minha formação que abençoo todos os dias.
Os mestres devem ser conhecidos pessoalmente ou é melhor parar na sua obra?
Conheci poucos psicanalistas que me impressionaram pelas suas qualidades humanas e intelectuais. Em sua maioria, foram profundas decepções. Excepcionais foram Franco Fornari quando eu era jovem, Maurizio Balsamo com quem trabalho há anos na nossa revista Frontiere di psicanálise, Aldo Becce, psicanalista de Trieste de origem argentina.
Procurar mestres é de alguma forma desejar outros pais?
Um mestre não é um pai. Ele não tem responsabilidade ilimitada sobre seus alunos. Nem mesmo é obrigado a cuidar de sua educação. Mestre é alguém que ama quem aprende e testemunha que o conhecimento não pode ser separado da verdade, que pode existir um desejo erótico voltado para o conhecimento. Nosso tempo é o da evaporação dos pais e dos mestres. São duas figuras em perigo de extinção, porque preferimos a relação simétrica, horizontal, falsamente igual comparada à verticalidade da palavra de um pai ou de um mestre. Penso, em vez disso, que o encontro com um mestre pode realmente mudar a vida. Um mestre vale por um reino.
O livro é dedicado a seu pai Enrico, floricultor. O que ele lhe ensinou?
A dedicação e paixão pelo trabalho, ler a dor nas folhas das suas plantas e das suas flores, o amor pela Inter de Milão.
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“Lacan me ensinou que o desejo é um dever. Mestre é alguém que abre portas”. Entrevista com Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU