08 Março 2022
"O desprezo de Putin pela democracia, que encontra a sua representação plástica em sua mesa anormal, é, de fato, (inconsciente ou conscientemente?) partilhada por todos aqueles que entre nós, europeus, em plena guerra, insistem em atribuir ao Ocidente democrático as responsabilidades do drama que está revolvendo o mundo", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Stampa, 07-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Estamos vendo as imagens brutais da guerra na Ucrânia. É a barbárie que acompanha toda guerra: mortos, feridos, cidades devastadas. Mas ao lado dessas imagens também vimos a mesa de Putin. Apesar de ser expressão de poder, essas imagens, ao contrário daquelas da guerra, parecem frias, austeras, quase assépticas. A imponente mesa de Putin aparece em uma sala sem janelas, em um espaço desproporcional, vazio, estéril, como uma enorme sala operatória de hospital. É uma mesa que derruba todo critério de convívio. Putin aparece em seu centro, mantendo seus interlocutores estritamente à distância. Enquanto sentar-se ao redor da mesa costuma revelar a disponibilidade ao diálogo e ao compartilhamento - em nossa língua dizemos, de fato, "vamos sentar à mesa" como sinônimo de vontade de trocar opiniões -, a mesa de Putin é feita para preservar a superioridade e, ao mesmo tempo, o isolamento do líder. É feita para distanciar e não para se aproximar. Mas o distanciamento quando aparece, como neste caso, superdimensionado é, na realidade, o sinal mais evidente da percepção de uma ameaça iminente. O perigo se insinua em todos os lugares, inclusive na própria fortaleza.
A mesa de Putin revela um ditador que para defender seu poder pessoal se concede apenas à distância. Mas o distanciamento como defesa inevitavelmente também implica em isolamento. Esta mesa sinaliza a separação de seu dono do resto do mundo. Não só do Ocidente, da OTAN, etc., mas também daqueles que deveriam estar mais próximos dele. A distância que ele coloca entre si e os outros é o índice inequívoco de um solipsismo autocrático que quer sinalizar uma diferença de estado. O ditador não se mistura, não entra em contato com ninguém, não estabelece relações, sua palavra rejeita o diálogo, a intimidade não apenas da amizade, mas também da colaboração. Ele observa o mundo de seu bunker psíquico como se o mundo fosse um enxame disforme e detestável da vida que não pode penetrar nas salas sem janelas de seu poder.
Encontro de Putin e Macron (Foto: Wikimedia Commons)
Não é por acaso que pertence à psicologia de todos os ditadores estabelecer-se como uma exceção absoluta que não encontra limites nem mesmo nas leis do Estado, pois sua própria existência coincide com aquela do Estado. É a total alienação da autocracia putiniana de toda forma de democracia.
A dialética da representação dá lugar ao culto da personalidade, à força inigualável de um pai-patrão ordálico que, em vez de representar a Lei, se coloca como sua encarnação.
No entanto, mesmo o olhar de Nero, como Kierkegaard mostrou sutilmente, é sempre atravessado por uma estranha melancolia. O narcisismo maligno dos ditadores cria um vazio em torno deles.
Não coincide apenas com a afirmação absoluta do próprio Eu e com a destruição sistemática de toda forma de dissenso, mas revela um impulso autodestrutivo igualmente maligno. O incêndio de Roma pode ser tomado como um símbolo do triste destino de todo tirano. Dar o passo em falso que denuncia a obra de morte que prende os fios de sua exaltação megalomaníaca, agindo para afirmar seu império, trazendo em seu inconsciente o impulso para realizar sua própria autodestruição. É essa duplicidade dramática que também caracteriza clinicamente o narcisismo mais maligno: a afirmação vigorosa e ilimitada de si mesmo traz sempre consigo a inclinação ao próprio aniquilamento. Não é por acaso que a mesa de Putin reflete, ao mesmo tempo, uma impressão de poder combinada com uma impressão de miséria e solidão. Viver separados do mundo, fechados em salas sem janelas, barricados nas próprias fronteiras, assediados por perigos constantes. Uma paranoia política que se evidencia de modo desconcertante mesmo naqueles que entre nós, europeus, veem e aplaudem Putin como o fustigador implacável das democracias liberais do Ocidente, de sua injustiça social e sua corrupção subjacente. Putin é, de fato, capaz de levantar a nostalgia (inconsciente? consciente?) de um poder que em nome ideológico do Povo rejeita as democracias ocidentais e sua indignidade moral.
É o fascínio sombrio do homem que teimosamente não se curva diante do poder Ocidente. O desprezo de Putin pela democracia, que encontra a sua representação plástica em sua mesa anormal, é, de fato, (inconsciente ou conscientemente?) partilhada por todos aqueles que entre nós, europeus, em plena guerra, insistem em atribuir ao Ocidente democrático as responsabilidades do drama que está revolvendo o mundo. Aos seus olhos, Putin não encarna o agressor, mas o pecado inenarrável da impotência e da natureza corrupta da democracia.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Na mesa, os medos do czar. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU