21 Setembro 2022
Roger Chartier é um dos intelectuais mais relevantes do nosso tempo. E isso porque a matéria com que trabalha é aquela com que foi construída a civilização: a palavra, o texto, os livros; interessam-lhe a cultura, a sociologia, a filologia, a filosofia, a bibliografia, a antropologia... Nascido em Lyon, França, em 1945, é professor emérito do Collège de France, diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS e Doutor Honoris Causa pela Universidade Carlos III de Madri.
Chartier adverte: “A palavra oral não é a mesma coisa que a escrita; quando falamos há frases que não escrevemos. A expressão oral introduz acordos, desacordos, frases suspensas... Quando escrevemos há constância”. Nas nossas conversas há cumplicidade e sinto que teríamos de quebrar as barreiras da escrita impressa, do tempo e do espaço em papel para recolher toda a sabedoria que esbanja.
A entrevista é de Juan M. Zafra, publicada originalmente em The Conversation e reproduzida por Infobae, 17-09-2022. A tradução é do Cepat.
O que é escrever hoje?
A ideia mais difundida é que com o mundo digital a escrita, o texto, vai se perdendo. É uma concepção absolutamente errada. No mundo digital você precisa ler, intercambiar, escrever; é um mundo saturado pela escrita. É uma escrita que precisa de outros suportes, outros códigos e tem outros efeitos. Parece-me fundamental reconhecer essa proliferação da escrita no século XXI, no mundo digital; a ponto de se poder interpretar que hoje existem muitas formas de comunicação, mas o que se consome a todo momento nas telas é a escrita.
Escrevemos mais do que nunca, mas de forma desagregada, fragmentada. Talvez irreconhecível do ponto de vista histórico. Revolucionária?
Sim. Aliás, fazemos isso de uma forma muito diferente no mundo digital e tem a ver com a relação entre quem escreve e quem lê. Escreve-se para ler e lê-se para escrever. É o fenômeno das redes sociais, como paradigma. Há uma relação que antes não existia porque antes os objetos destinados à leitura – os livros – e os destinados à escrita – os cadernos, por exemplo – eram diferentes. Um leitor podia escrever no livro – essa foi uma boa notícia para os historiadores da escrita porque podíamos acessar as anotações dos leitores –, mas ler e escrever eram dois acontecimentos separados. Inclusive até o século XIX, as pessoas aprendiam a ler e, mais tarde, algumas eram ensinadas a escrever. Hoje, no mundo digital, as duas práticas são realizadas no mesmo suporte.
Com o desenvolvimento dos novos suportes digitais, as ações da leitura e da escrita parecem quase inseparáveis. Pelo menos para algumas gerações. Podemos nos referir, a esse respeito, a nativos digitais?
Estamos diante de uma profunda revolução relacionada à integração das práticas da leitura e da escrita em uma única ação. Essa nova relação escrita/leitura tornou-se evidente em inglês com a palavra wreaders (de write and read, escrever e ler), que significa a alternância entre ler e escrever e escrever e ler. Os nativos digitais já são wreaders, o que significa que são hábeis no uso das redes sociais, fundamentalmente; para aqueles que não pertencem a esta nova realidade, há uma distinção fundamental no suporte: por um lado, há o objeto lido – o livro – e, por outro, os suportes sobre nos quais se deve escrever, como a carta, o caderno, o diário pessoal.
De alguma forma, o escritor perdeu a autoridade de que gozava antes que a internet e as tecnologias de informação e comunicação abrissem essa dualidade leitura-escrita.
A pergunta contém a ambiguidade da palavra escritor, que era definida no campo da produção literária, filosófica, científica... Não temos uma palavra para definir os intercâmbios relacionados à sociedade digital. São pessoas que escrevem, mas as pessoas que escrevem são escritoras? Temos que referenciá-las a conteúdos literários, científicos ou filosóficos ainda hoje? Temos que nos basear na frequência com que praticam a escrita? Não sei qual é a palavra que definiria o ato de escrever sem ter a consagração de escritor. Há novas formas de escrita que nada têm a ver com comunicação imediata – que poderíamos associar às práticas digitais e às redes sociais –, mas podem ser consideradas uma evolução da cultura do ambiente digital.
A cultura digital liberta-se das imposições da cultura impressa com novos formatos multimídia, por exemplo. O som, a imagem, a escrita, a música são combinados no mundo digital de tal forma que constituem uma prática cultural nova, estética. Mas na vida cotidiana o que importa é a circulação de ideias, conhecimentos, opiniões, informações verdadeiras ou falsas. O tecido cultural na sociedade digital exige leitura e escrita, mas a palavra escritor ainda evoca a produção intelectual, estética, científica. E é aí que se evidenciam as contradições do momento que vivemos.
Na sua opinião, o quão distópica é essa realidade em que já vivemos com máquinas capazes de orientar, talvez direcionar, nossa relação com o livro e inclusive com nossos concidadãos?
Essa é uma pergunta diferente. Refere-se ao papel desempenhado pelos algoritmos e à ideia de que hábitos e gostos podem ser produzidos ou reproduzidos a partir da transformação de indivíduos em bancos de dados. É a lógica que domina este mundo, que não é o mundo da artificialidade da produção, totalmente separada da produção humana, mas que é um mundo em que os gostos e as práticas do comprador podem ser reproduzidos para lhe oferecer exatamente o que ele vai querer.
Esta lógica algorítmica opõe-se ao encontro, à surpresa, ao desejo original… que até agora era aplicada pelas instituições da cultura impressa – a livraria, o livro, a biblioteca… O algoritmo é o contrário do desejo e sua substituição pelo já desejado; é o contrário da leitura – nos livros e também nos jornais – como viagem, como aventura, como descoberta que convida a deter-se em um determinado momento diante da surpresa. Se quisermos resistir à lógica que transforma os indivíduos em bancos de dados, é fundamental evitar as práticas e os locais que possibilitem uma alternativa a essa ideia de surpresa diante do inesperado.
Eu adorava olhar as prateleiras mais baixas das livrarias para descobrir textos ricos, desconhecidos, para me surpreender. Com a tela digital a experiência é diferente, mas também faço descobertas, embora tenham me ajudado para isso.
Em 2019, em uma de suas últimas entrevistas, o historiador Antonio Rodríguez de las Heras insistia na crise dos lugares, na crise da corporalidade, e insistia em que diante desse mundo digital inovador deveríamos manter a cultura dos lugares; o que significa manter o livro, porque o livro é um lugar. No espanhol do Século de Ouro, “corpo” significava tanto “livro” quanto “humano”, o que nos leva à ideia de uma relação entre o livro, como corpo, e o ser humano não apenas como alma, mas como corpo.
Se temos que procurar uma palavra em espanhol para definir esse novo leitor-escritor, parece que também teremos que procurar outra palavra para livro. É o desafio da digitalização.
O que está em questão é a própria noção de livro. O livro, não como objeto material, mas como forma discursiva. O livro é uma arquitetura em que cada elemento desempenha um papel em seu lugar. Cada fragmento dessa arquitetura ganha sentido porque faz parte de um todo, é o fragmento de algo. A novidade radical é que, na realidade digital, os discursos são peças que podem ser compostas, associadas, distribuídas separadamente pelo leitor-escritor. De las Heras comparava essas partes do discurso digital com as peças de um Lego, que podem ser montadas em várias formações.
No final de tudo, o que está em questão é a consideração, o valor, do livro – cuja autoria sempre se conhecia, era uma arquitetura construída por alguém identificado – e da própria escrita. A miniaturização dos objetos é uma realidade fundamental, não apenas material, mas também cultural. A redução do tamanho dos objetos foi transferida para o espaço, e a possibilidade de que esses novos dispositivos nos acompanhem em todos os momentos e em todos os lugares nos lança vários desafios. Por exemplo, no campo da transmissão de conhecimento.
Você acha que, nesse sentido, a digitalização e a miniaturização levam à precariedade cultural e afetam a auctoritas do escritor tradicional?
Na sociedade digital há barulho, confusão, leitores-escritores e escritores-leitores... Desenvolvem-se novas formas de textualidade e de escrita cujo paradigma é a velocidade, a desatenção e, por isso, também perderam a capacidade crítica. Não existe uma autoavaliação nessa nova relação leitor-escritor e isso dá origem à geração das teorias mais absurdas e das manipulações mais óbvias, particularmente no controverso campo da política.
Não devemos esquecer que as tecnologias são o que os humanos fazem delas, e não fazem isso de forma inconsciente, mas no contexto de tensões e conflitos. Petrucci falava de “poder sobre a escrita” e de “poder da escrita”. O primeiro refere-se às empresas, à propaganda; o poder da escrita tem a ver com o novo mundo digital, que abre novos limites para um universo – a escrita – que parecia ultrapassado.
Que valor atribui ao desenvolvimento das tecnologias de voz? Ao fato de que a cada dia as máquinas nos entendem melhor e podemos ditar mensagens que elas entendem, processam e até nos respondem com suas próprias vozes.
Estamos em um novo momento na relação entre a voz e o texto. Há um retorno da voz ao mundo dos textos. Na Idade Média e até o século XIX, alguém lia para que outros ouvissem e foram criados espaços para que isso se viabilizasse. Com o desenvolvimento de novas tecnologias, recuperamos a voz como forma de transmissão do texto. Quando pensamos na relação entre oralidade e textualidade, não devemos esquecer a diferença que existe em termos de fixação do conhecimento: no caso da oralidade não há separação entre a enunciação e o enunciado – o que está enunciado desaparece quando a enunciação termina; a fixação escrita era uma forma de dar objetividade, permanência, aos enunciados. Essa diferença não significa que a comunicação oral não seja relevante, mas quero enfatizar que, quando se trata de transferir conhecimento, na educação ou na informação, nada pode substituir a palavra escrita em um suporte, seja qual for.
Isso me leva às mudanças que estão ocorrendo na educação em todos os níveis. E em que medida a transferência de conhecimento é condicionada pela crise dos lugares, pelo desenvolvimento tecnológico e pela mudança cultural que deriva dessa crise associada à escrita.
O ensino on-line tem sido uma possibilidade para manter a atividade educativa durante a pandemia; antes conhecíamos o desenvolvimento dos cursos on-line, que permitem reduzir ou eliminar os custos do ensino presencial. A questão é saber se esta forma pode ser estabelecida universalmente. Tem a ver com a crise dos lugares, entendidos como espaços de encontro entre os seres humanos como um todo. A corporeidade desempenha um papel que ainda não foi substituído por nenhuma tecnologia digital. Creio que o desafio é manter a cultura do lugar ao mesmo tempo que se desenvolvem as tecnologias digitais e uma nova forma de comunicação.
O que é relevante, na minha opinião, é não acreditar na ideia da equivalência: cada uma dessas formas de transmitir o conhecimento ou a beleza tem sua própria lógica. A partir dessa lógica própria alguns efeitos são alcançados. Se tomarmos como ponto de partida essa ideia da não equivalência, entenderemos que é possível manter a presencialidade nas salas de aula – onde os livros são encontrados como corpos e não apenas como textos – ou na livraria. Não há equivalência entre o livro físico e a tela; não há diferença entre a lógica algorítmica e a lógica topográfica.
Por que então continuamos instalados na equivalência? Por que não começamos a descrever essa nova realidade em novos termos? O que nos impede de fazer isso?
A tela não é uma página. Não é possível uma identificação. Por conseguinte, devemos tratar o texto de forma diferente. Assumir isso vai nos abrir um universo de possibilidades para a criação, para novos formatos de escrita. Até agora, a publicação digital esteve circunscrita aos limites da cultura impressa – cópia privada, propriedade intelectual… Uma cultura digital consciente de seus próprios limites e de suas possibilidades pode nos ajudar também a considerar o livro como uma arquitetura que pode ser mantida como um dos veículos para a transmissão da criação intelectual.
O momento atual exige que tomemos consciência das possibilidades mais amplas oferecidas pelo universo digital, para além dos constrangimentos que existiam na cultura impressa ou manuscrita: propriedade intelectual, paginação... É um desafio para a imaginação. Não se trata apenas de superar os limites da cultura impressa, mas de enfrentar os desafios ou perigos da cultura digital, atender aos efeitos das redes sociais e outros formatos de transferência de conhecimento ao nosso alcance.
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“O algoritmo é o contrário do desejo”. Entrevista com Roger Chartier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU