"Vencer o capitalismo inclui travar uma luta ética e estética – e propor luxos opostos à ostentação. Viver sem medo da pobreza. Criar e produzir de forma autônoma. Fruir a beleza, a sensorialidade e a arte, libertando-as do mercado e de privilégios", escreve Frédéric Lordon, economista e filósofo francês, diretor de pesquisa do CNRS no Centro Europeu de Sociologia e Ciência Política em Paris, em artigo publicado por OutrasPalavras, 14-12-2021. A tradução é de Antonio Martins.
A proposta comunista teria poucas chances de sucesso se fosse apenas um discurso de necessidades e restrições. É preciso lembrar que o objetivo da política é melhorar a vida, é viver bem. E ideias como a proteção econômica geral (ou seja, um “salário para a vida”, que garanta contra as incertezas e o sofrimento material), a autonomia dos produtores associados (para abolir as relações econômicas de pura subordinação) e o direito ao tempo livre (como parte da dissolução do imperativo de produtividade), entre outras medidas, tornariam a vida incomparavelmente melhor do é que sob o capitalismo.
Mas talvez seja preciso dizer mais, para remover as associações negativas com as quais o fim do capitalismo, ou a própria palavra “comunismo”, foram rotuladas: habitação coletiva, dieta de batatas e salsichas, carros, roupas, muros e cidades cinzentas.
Em nossa imaginação, o capitalismo tem o monopólio da cor, da luz e da própria vida. É preciso questionar esta imagem, pois o sistema está destruindo absolutamente tudo: o planeta, o direito à moradia (exceto o dos os ricos), a saúde física (exceto a dos ricos), a saúde mental (a dos ricos também, embora de uma maneira diferente). Para que o comunismo seja viável, conceitual e politicamente, ele deve recuperar tudo isso. Precisa inclusive reivindicar o luxo – já que o lux é luz. E é disso que se trata: luz nas nossas vidas.
Entre as muitas usurpações grotescas praticadas pelos publicitários, está a tentativa de se apropriar, depois de “conceito” e “criatividade” (para desgosto de “criativos”…), da palavra “cidade”, de suas “luzes” e suas “cores”. “A publicidade torna a cidade mais bonita” – eis o tipo de ideia que uns tipos barbudos e de óculos grossos comprazem-se em vender. “Retire a publicidade”, dizem eles, “e voltaremos para Tirana, ou Berlim Oriental, antes da queda do Muro”.
A realidade é muito diferente: se derrubarmos as placas de publicitárias e oferecermos nossas cidades a designers gráficos, artistas de rua e mesmo à população em geral, veremos uma explosão de formas, cores, ideias e slogans. Poderemos realizar concursos para decorar as lonas gigantescas que cobrem os edifícios em construção, com a certeza de ver algo mais do que fotos de relógios, perfumes ou celulares ampliados para tamanhos gigantes. Mas talvez não devamos culpar os anunciantes. Zumbis, perdidos num mundo falso de imagens comerciais, como eles poderiam detectar a diferença entre os vivos e os mortos? Sabemos, de qualquer forma, que seriam impedidos de causar danos: obviamente, a publicidade atual estaria no topo da lista de coisas a serem abolidas. Eliminar a indústria publicitária seria um exemplo de novas prioridades na divisão do trabalho.
Entre os enganos da publicidade, versão concentrada dos enganos do capitalismo, está o de ter confundido o desejo de bens materiais com o próprio desejo; e em seguida concluir que, sem esses bens, o desejo desapareceria do mundo – e, com ele, a cor e a luz. Uma breve retrospecção basta para identificar um golpe de magnitude chocante. Tudo hoje contradiz esta grande mentira, e aponta um aumento do nosso desejo de fazer, pintar, desenhar, escrever, construir, criar – mas agora, a sério. Ou seja, fora do conceito de valores monetários e das exigências do capital. Seria até possível afirmar que a premissa da bem fundamentada e quase antropológica proposta de Bernard Friot [1] significa exatamente isso: as pessoas desejam usar suas habilidades. Pode parecer bobagem, mas é verdade profunda: os seres humanos querem fazer coisas.
A configuração das estruturas sociais em cada época este impulso de fazer a se enquadrar em relações preestabelecidas, e as potências humanas a se exercerem de uma determinada forma – na maioria das vezes, a que serve aos interesses dos grupos hegemônicos. Mas liberte as capacidades individuais desta armadilha, e elas serão muito mais usadas. Esta é a justificação última do salário permanente proposto por Friot: as pessoas farão coisas, e essas coisas contribuirão para a vida social.
É claro que não basta as pessoas “fazerem coisas” por si mesmas para gerar uma divisão de trabalho que satisfaça todas as necessidades da vida material coletiva. Algo ainda estará sujeito a coerção. Mas que parte? Muitos empregados sabem como, e gostam, de fazer coisas que se encaixam na divisão do trabalho. Mas são obrigados a fazê-las em condições degradadas pelo capitalismo, pelas exigências de concorrência, pela pressão dos acionistas por lucros crescentes. É precisamente destas degradações que o sistema de salário por toda a vida liberta os trabalhadores, deixando intacta uma divisão do trabalho plenamente funcional e a possibilidade de fazer as coisas bem.
Quando não constrangido por condições violentas, o desejo de fazer as coisas equivale ao desejo de fazê-las da melhor maneira possível. Porque nos implicamos nelas, quando as fazemos de forma autônoma. Em muitos casos, fazê-las bem equivale fazê-las belas. Este é o começo do luxo.
Já é possível enxergar mais claramente, agora, o que pode ser o “luxo”, e especialmente o que não pode ser: certamente, não os bidês de ouro sólido dos que enriqueceram com o neoliberalismo ou o acúmulo de propriedades. Além de explorar os seres humanos, a lógica da quantidade – a do valor capitalista – está destruindo o planeta. É estranho – na verdade, absurdo – que a palavra “comunismo” esteja presente no Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado de Aaron Bastani. Trata-se de uma espécie de profecia tecnologista baseada em impressoras 3D, células fotovoltaicas onipresentes e a conquista do espaço, prometendo soluções para as crises climáticas e energéticas e “abundância” para todos. Essa é mais ou menos a perspectiva de uma visão capitalista mal reconstruída.
Não: o número de objetos que nos rodeiam e sua taxa de renovação cairá. A ideia de comunismo luxuoso significa rejeitar a crença em que essa redução significaria perda de beleza em nossa vida material. Para ser mais preciso, o objetivo será multiplicar a beleza do mínimo de objetos que precisaremos possuir.
A estética dos objetos, fora da quantidade e do frenesi de tê-los, é a primeira diferença entre o luxo comunista e o capitalista. A segunda é a forma como eles são acessados. O luxo capitalista reserva as coisas mais belas para os ricos. Mas o luxo comunista pode emergir de condições totalmente diferentes do poder monetário de compra: da liberdade dos produtores para fazer as coisas de acordo com seus desejos – que na maioria dos casos será torná-las boas e belas. Em outras palavras, a liberdade de todas as restrições da produção capitalista, que hoje levam os produtores a fazer as coisas mal.
É que os atuais constrangimentos expressam uma lógica de ferro: o capital tenta sempre remunerar cada vez pior o trabalho. Em consequência, ele estrutura uma demanda achatada, o que leva a produzir bens de preço baixo, para os que têm pouco dinheiro. Isso significa bens fabricados, ou serviços oferecidos em condições de produtividade que implicam em baixa qualidade e baixos salários – e então, o ciclo se completa. Apenas os mais ricos entre ricos escapam deste ciclo de sucata. Os muito poucos que concentram a maior parte da riqueza encontram então uma oferta que substitui o binômio “má qualidade/produtividade” dos mercados de massa por uma fórmula de “boa qualidade/preço elevado”.
O sistema de salários para toda a vida quebra o ciclo do lixo, ao desacoplar as atividades da remuneração. Quando as pessoas são protegidas por um salário vitalício e podem se dedicar a uma atividade e fazer coisas sem que isso tenha impacto na sua remuneração, fazem-no em condições completamente diferentes: de acordo com o seu desejo, o que equivale a dizer bem. Também aqui, devemos derrubar o axioma capitalista segundo o qual, deixadas à sua sorte e libertas do “impulso saudável de ter de ganhar a vida”, as pessoas não farão nada – pois são essencialmente preguiçosas. O contrário é verdade: “deixadas à sua própria sorte”, ou seja, libertas da violência de trabalhar sob o capitalismo, as pessoas fazem coisas, nunca param de fazê-las, e até as tornam cada vez melhores – pois são seres de desejo e ação.
Por exemplo: um agricultor pode cultivar pela satisfação de produzir bem, fornecendo produtos saudáveis e de boa qualidade, quando já não está amarrado pela camisa-de-força dos supermercados e suas exigências de preço e, portanto, de produtividade – o que significa utilizar venenos químicos. Ou quando se liberta da dívida contraída ao investir na mecanização, imposta pela lógica de altos rendimentos e baixos preços – que ele pode romper com um salário para toda a vida. Ele provavelmente as produzirá em quantidades menores, mas muito mais pessoas quererão entrar na agricultura se ela for satisfatória, desacoplada das exigências capitalistas e liberada da incerteza econômica.
Num sistema capitalista, cabe aos fabricantes fora do mercado de massas fornecer refeições gourmet, a preços muito elevados. Eles próprios são, por sua vez, apanhados numa armadilha de dívidas, quando montam suas instalações e sua rede de fornecedores de qualidade (móveis, louça, etc.), o que significa preços elevados. Segundo o adágio capitalista, “você tem que pagar pela qualidade”. Mas isto não é verdade: a qualidade não tem de “vir a um preço”. O capitalismo difundiu a ideia de que a qualidade está sempre ligada a um volume de dinheiro – caso contrário, teremos acesso apenas ao lixo. Isto é uma mentira. A qualidade advém de oferecer, aos produtores, condições que lhes permitam produzir como querem, ou seja, sem depender disso para sua sobrevivência. A qualidade é o corolário imediato desta liberdade, e sempre pela mesma razão: as pessoas fazem algo bem; fazem o melhor que podem, quando agem com autonomia e para apresentar seu trabalho ao reconhecimento social – desde que isso não assuma a forma de um preço monetário, da qual a sua reprodução material será dependente. É possível, portanto, reunir condições para produzir o melhor sem exigir, em contrapartida, pilhas de dinheiro.
Se o comunismo for uma ideia cinzenta, ele perderá a batalha pelo imaginário. Mas este não é um destino obrigatório – muito pelo contrário. Não há contradição em argumentar que o comunismo pode, e deve, ser luxuoso. Ou seja, difundir por toda parte a luz das coisas belas e bem feitas, porque a todos terão oferecidas condições para isso. Aqui vemos como é criticamente importante garantir a maior liberdade de expressão possível para os criadores privados. A divisão do trabalho é necessária em alguns casos, e já se disse o suficiente sobre isso. Mas a divisão do trabalho não contradiz a ideia de que os objetos necessários que dela saem sejam bons e bonitos. Para que isso aconteça, a sua produção precisa ser libertada da tirania do valor capitalista, ou de um planejamento burocrático imposto de cima para baixo.
Nestas condições, os produtores autônomos associados darão o seu melhor, porque estarão fazendo o que amam. Nesta forma comunista, as iniciativas privadas nos oferecerão boa comida e belos móveis, perfumes e roupas – em suma, coisas belas, que fazem uma vida agradável. O design não será mais a captura da estética pelo capitalismo, como hoje – porque, desde as linhas do horizonte das metrópoles ao brilho metálico dos celulares e ao estilo dos carros, tudo é calculado hoje para nos curvar ao poder material do capitalismo. Para nos fazer acreditar, muitas vezes inconscientemente, na ligação inquebrável entre a “beleza” dos objetos e o sistema capitalista de objetos. Para nos fazer temer: “Lembrem-se da Alemanha Oriental e da União Soviética, como eram feios; como as coisas aqui são bonitas e refinadas! Bem, isso é capitalismo”.
O comunismo perderá a batalha pela imaginação, e em seguida a batalha política, se se fechar na austeridade dos intelectuais críticos – em seu e no desapego ostentatório, em seu desprezo pelos objetos e pela vida dos sentidos, a começar pela vida doméstica. “Pensemos antes de tudo no desenvolvimento intelectual”. “Sejamos indiferentes aos objetos”. “Estejamos acima das necessidades materiais”. “Estas coisas não são importantes”. Que erro!
Em uma passagem surpreendente, embora perfeitamente lógica, Spinoza – que não pode ser considerado um ator intelectual menor – recomenda a seus leitores envolverem-se “com comida e bebida agradável, com aromas, com a beleza das plantas, com decoração, música, esportes, teatro, e outras coisas do gênero, que qualquer um pode usar sem ferir a outro” [Ética IV, 45]. A estética deve ser aplicada em todos os aspectos da vida, desde seu significado etimológico (de apelo aos nossos sentidos) até as práticas elevadas em que estimular os sentidos pode levar aos estados meditativos mais profundos. É o que discutem a poeta Ryoko Sekiguchi e o chefe de cozinha Pierre Gagnaire, em uma conversa sobre as artes culinárias, as artes de perfumes e arranjos florais e a cerimônia japonesa do chá.
Na sociedade atual, as maiores realizações são também as mais raras – por isso apenas um número limitado de pessoas terá acesso a elas. O critério capitalista de seleção é bem conhecido: o dinheiro. Uma visita ao site de Pierre Gagnaire mostra que um jantar para dois em seu restaurante custa um salário mínimo [francês]… Em nossa hipótese, o critério do dinheiro já não se aplicará. Mas será preciso colocar outro em seu lugar, pois a promessa de ter “as coisas mais raras ao alcance de todos” é falsa – ao menos, quando se trata do tipo de bens que os economistas chamam de “rivais”. Apelaremos para algum tipo de loteria? Já seria um avanço…
Na realidade, o mais importante não se encontra nestas experiências muito excepcionais. Por “luxo”, devemos entender não tanto as coisas mais raras, reservadas a poucos, mas sim as coisas belas, bem feitas, universalizadas e colocadas ao alcance de muitos. O luxo é também a presença de menos coisas, mas mais belas, na vida quotidiana – como hábito e como educação. É o que acaba por nos preparar para as experiências mais elevadas. E o desejo de ver os produtores livres é que faz o comunismo luxuoso.
1 - Sociólogo francês conhecido por defender a ideia de um salário incondicional permanente. Para ele, esta proposta contrapõe-se à da renda básica, e é “a melhor resposta subversiva às quatro principais instituições do capitalismo: propriedade lucrativa, dívida pública (já que os Estados não precisam tomar dinheiro emprestado para financiar suas ações), mercado de trabalho (que produz a chantagem do risco de desemprego) e a relação entre valor econômico e duração do trabalho.