19 Outubro 2021
“O corpo é, por natureza, problemático”, escreve Mabel Moraña em seu último livro Pensar el cuerpo: Historia, materialidad y símbolo (Herder). Nele analisa, com um enfoque interdisciplinar, a corporalidade a partir de diversos eixos como a história, a arte, a representação, o gênero, a política, a tecnologia e a violência.
Formada em Literatura e Filosofia, é uruguaia, radicou-se na Venezuela, durante a ditadura em seu país de origem, e depois terminaria residindo definitivamente nos Estados Unidos, onde fez um doutorado na Universidade de Minnesota. Hoje, leciona na Universidade de Washington.
A entrevista é de Pablo Díaz Marenghi, publicada por Clarín-Revista Ñ, 18-10-2021. A tradução é do Cepat.
Por que decidiu escrever um livro que analisa o corpo?
Surgiu de reflexões anteriores. Vinha da publicação de dois livros importantes. O último a respeito do tema da migração (Líneas de fuga: ciudadanía, frontera y sujeto migrante), onde a questão do corpo aflorava constantemente. Ficou flutuando como o grande protagonista dos cenários da globalização. Antes, tinha acabado de publicar outro (El monstruo como máquina de guerra) sobre o tema filosófico e político da monstruosidade como uma metáfora da alteridade, do perigo social. Aí aparecia a anomalia corporal. Tudo isso foi sugerindo coisas.
São vinte capítulos que vão da história da arte e certas tradições da representação até o pós-humano e os avanços tecnológicos. Diferentes aspectos nos quais a cultura ocidental aborda o tema da corporalidade que tem a ver com a vulnerabilidade, a violência e a sexualidade.
Por que considera tão crucial a análise do corpo?
O corpo é o que nos sustenta na vida e é, ao mesmo tempo, o significado da morte. Quando o corpo falha, é uma má notícia porque a vida está ligada à sua perpetuidade. Pode ser tratado com banalidade ou com grande solenidade porque tem a ver com a morte, a transcendência, inclusive com a religião, a questão corpo/alma.
O corpo tem uma ambiguidade: pode ser pensado como algo individual/privado e, ao mesmo tempo, como algo público, inscrito no social.
Definitivamente. A noção de corpo é orgânica, mas também é simbólica. É um elemento de tanta força metafórica que aparece em tudo. Ninguém tem a sensação que cada um tem de si: o que dói, como se sente. Mas também é o corpo do outro que pode ser atraente ou repulsivo, pode inspirar desejo ou ódio. Embora saibamos que o corpo é algo que recobre o eu e a consciência. É a forma que temos para nos apresentar ao mundo e através da qual o mundo se apresenta a nós.
Ainda que não se deseje ser banal, a beleza do corpo impressiona para além de nossa vontade. Tudo isso tem a ver com o racismo, com a enorme quantidade de fenômenos sociais que têm uma plataforma no corpo, ainda que seja o que temos e não o tenhamos escolhido. É interessante no que diz respeito à alteridade, como vemos o semelhante.
Existem muitas pessoas demonizadas pelo modo como são vistas e a sociedade progride em muitíssimos sentidos, mas ainda parece ser uma coisa da pulsão. É estudado nos animais: quando se coloca um animal de outra espécie, os animais sentem a diferença e reagem. Há elementos que explicam e, ao mesmo tempo, não legitimam a rejeição do outro, sobretudo em nossa espécie.
Todos somos dependentes do corpo, ao mesmo tempo em que o consideramos frívolo em outros aspectos. Tem a ver com o modo como lidamos com a passagem do tempo sobre o corpo. Todos prestamos imensa atenção nisso, nos outros e em nós mesmos, porque a deterioração nos aproxima da morte. O corpo está no meio de todas essas construções sociais, psicológicas e de muitos afetos.
Muitos afetos estão ligados pela corporalidade. Por isso, vemos que os pequenos na adolescência são muito autoconscientes (Como me vejo? Sou aceito? Sou popular?). Existem modas de como o corpo deve ser visto. Há elementos onde ciência, mercado e moda convergem. O mercado gira basicamente em torno do corpo: roupa, maquiagem, comidas. O corpo é o sustento do capitalismo. Nesse sentido, falamos de “Biocapitalismo”.
Pensou o corpo na pandemia?
A pandemia entregou uma quantidade de aspectos que não tínhamos presentes. Como poderíamos imaginar esse trágico protagonismo do corpo em nível global. Se queríamos algum exemplo de globalização, temos aqui. Também nos serviu para ver como nossos governos atuam biopoliticamente em relação ao corpo.
Eu vivo nos Estados Unidos, onde se costuma ver que tudo é previsto e, no entanto, vimos que deixaram morrer muitas pessoas. É uma chamada de atenção de que a problemática do corpo ultrapassa completamente a previsibilidade das instituições. O Estado se importa muito pouco que se tenha politizado o tema do vírus.
Ao mesmo tempo, vemos como, ao final, sempre morrem os mesmos. Isso colocou sobre a mesa um terrível problema. Mil vezes falamos dos perigos de guerra bacteriológica e nenhum governo está preparado para nada. O corpo continua sendo a vítima de Estados insuficientemente preparados.
Logo farão as contas, mas morreram muito mais pessoas negras ou latino-americanas do que pessoas brancas/anglo-saxãs. Não são casualidades, mas tem a ver com a distribuição de recursos. Essa é a demonstração de que vivemos em um mundo essencialmente carente de justiça social.
É possível pensar que o corpo continua sendo um campo de disciplinamento?
Sim, e de tortura. Quando dizemos disciplinamento, parece que ainda lhe conferimos uma legitimidade de criar certa ordem, mas em muitos casos é o descaso total contra o corpo. O holocausto, a escravidão. São experiências políticas e sociais irrepresentáveis. A noção desses genocídios terríveis é difícil de abarcar, mas não estamos fora disso. Isso não pertence completamente à história passada.
É preciso pensar que a violência contra o corpo, próprio e alheio, não é desmotivada. Sempre há uma razão por trás. Por exemplo, para entender o mundo árabe, precisamos pensar o que aconteceu com ele no passado: as racializações, os oito séculos de luta na península ibérica. Não para legitimar qualquer ação violenta, mas para entender como se chega a isso.
Também há interesses políticos e econômicos. O corpo está no centro. Criamos uma guerra e para ela enviamos todas as minorias que temos para que se matem.
Também penso que estamos em uma época sem religião e as pessoas, de alguma maneira, precisam construir um pensamento ético. Se não passa pelo castigo divino, tem que passar pela responsabilidade humana e a perpetuação da vida. Também a questão do meio ambiente. E no meio está o corpo humano, que destrói e é destruído por essas dinâmicas.
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“O corpo é o sustento do capitalismo”. Entrevista com Mabel Moraña - Instituto Humanitas Unisinos - IHU