Bauman, o Holocausto e o nexo entre horror e modernidade. Artigo de Donatella Di Cesare

Imagem: Holocausto - Wikipédia

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11 Janeiro 2017

Zygmunt Bauman fez da Shoá o caleidoscópio através do qual é possível olhar para o abismo desumano de uma modernidade que não manteve as suas promessas. Justamente aquilo que aconteceu em Auschwitz nos ensina que a ética é indispensável, e que a responsabilidade é sempre absolutamente individual. O mal não é onipotente – é possível, é necessário resistir.”

A opinião é da filósofa italiana Donatella Di Cesare, professora da Universidade de Roma “La Sapienza”, em artigo publicado por Corriere della Sera, 10-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Quando Zygmunt Bauman publicou, em 1989, o seu livro “Modernidade e Holocausto” (Ed. Zahar), ainda poucos, além das testemunhas, tinham ousado fazer reflexões ou hipóteses interpretativas. Por muito tempo, tinha se estendido uma afasia, devida não só à remoção, inconsciente ou intencional, mas também à dificuldade de pensar sobre o que tinha acontecido. O seu livro rompeu o silêncio com uma coragem intelectual sem precedentes. E, desde então, permaneceu como um marco.

“O regime nazista acabou há muito tempo, mas a sua venenosa herança está longe de estar morta”: assim advertia Bauman. Judeu polonês que sobreviveu à invasão nazista em 1939, ele pedia muito mais do que a punição do crime. Se se tratasse disso – escrevia – se poderia “confiá-lo ao estudo dos historiadores”. Mas a questão ia além dos executores, além até mesmo das vítimas. “Hoje, mais do que nunca, o Holocausto não é uma experiência que pertence aos sujeitos privados (admitindo-se que sempre foi assim): não aos seus executores, para que sejam punidos; não às suas vítimas diretas, para que gozem de simpatia, favores ou indulgências particulares em nome dos seus sofrimentos passados; nem às suas testemunhas, em busca de redenção ou de certificados de inocência. O significado atual do Holocausto é dado pela lição que ele contém para a humanidade inteira.”

Bauman foi o primeiro a levantar a exigência de considerar a Shoá como um capítulo da história humana, a terrível e extrema do século XX. Sem torná-lo um evento único, fora da história e fora da razão, mas também sem ignorar aquelas características que o Holocausto não compartilha com nenhum dos casos de genocídio anteriores.

Certamente, o homicídio em massa não é uma invenção recente. A história é pontilhada por violências, massacres, extermínios. Mas a industrialização da morte nos escritórios de Hitler impõe uma reflexão peculiar. O extermínio parece ser para Bauman o epílogo da civilização industrial e tecnológica, daquela organização burocrática do mundo em que vem se perfilando o domínio totalitário. Por isso, Bauman aponta o dedo contra a modernidade.

Não se pode deixar de pode ver o papel ativo da civilização moderna no desencadeamento e na execução do Holocausto. E, sobretudo, não se pode deixar de reconhecer o fracasso da modernidade. Auschwitz não é um capítulo fechado, concluído. Porque continuamos a viver naquela mesma modernidade que permitiu a “solução final”, voltada a aniquilar os judeus da Europa.

Sobre o tema da culpa, Bauman não se deixa levar por especulações metafísicas ou por ou imponderáveis teodiceias. Que sentido pode ter tido o sofrimento dos inocentes? Isso tudo não confirmaria um mundo sem Deus? Mesmo que a incomensurabilidade dos crimes perpetrados pareça ir além de toda justiça, a responsabilidade é totalmente humana. O mal não é um princípio da mística pelo qual Deus deveria responder. É uma ofensa pela qual o homem deve responder.

A grande pergunta que Bauman se fez, desde a sua reflexão sobre a Shoá, foi sobre a responsabilidade. Pode-se dizer que o seu livro “Os desafios da ética”, publicado poucos anos depois, em 1993, é em grande parte um precipitado daqueles seus estudos. Deslegitimada, ridicularizada, a ética parece estar fora de moda, destinada à lata de lixo da história. Como se a modernidade tivesse decretado uma emancipação da ética.

Bauman denuncia a ilusão e o perigo desse modo de pensar excessivamente comum. Justamente aquilo que aconteceu em Auschwitz nos ensina que a ética é indispensável, e que a responsabilidade é sempre absolutamente individual. O mal não é onipotente – é possível, é necessário resistir. “Não importa quantas pessoas preferiram o dever moral à racionalidade da autoconservação. O que importa é que alguém o fez.”

Zygmunt Bauman fez da Shoá o caleidoscópio através do qual é possível olhar para o abismo desumano de uma modernidade que não manteve as suas promessas. Condensa-se aqui, talvez, a tarefa última da sua intensa e incansável pesquisa, uma tarefa que esse grande diagnóstico do mundo moderno nunca desatendeu.

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