"A pretensão de uma 'doutrina de sempre' em matéria matrimonial e sexual é uma reconstrução abstrata, que esquece a história. No momento em que o sexo se transforma em sexualidade, perde, em grande medida, a sua natureza de mera “função para o outro” e assume uma relevância direta para o sujeito, a doutrina deve encontrar novos recursos de argumentação e de orientação".
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo leigo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 17-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“A sociedade moderna se distingue das formações sociais anteriores por um duplo incremento: uma maior possibilidade de relações impessoais e relações pessoais mais intensas.”
(Niklas Luhmann, “Amor como paixão”)
Em uma entrevista de 2015, Matthew Fox, com olhar aguçado, disse que “a questão da sexualidade é o caso Galileu do nosso tempo”. Creio que essa frase sabe nos dar o pano de fundo certo para entender a dimensão do “responsum” com que o órgão doutrinal da Igreja Católica tentou negar à Igreja o poder de abençoar os “casais homossexuais”.
Não devemos nos deixar distrair pelo tema “escabroso”: o problema não diz respeito principalmente à “homo-sexualidade”, mas sim à “sexualidade” como tal, como cifra do mundo tardo-moderno, que a Igreja Católica, pelo menos em algumas das suas instituições, custa a conhecer e a reconhecer.
Gostaria de tentar dizer, em palavras simples, como é grande o desafio que se esconde por trás da pequena página de argumentação do “responsum”.
Estamos diante de um conflito de interpretações e de uma reformulação do saber tradicional que tem muitos aspectos de absoluta importância. Por isso, parece-me que o tema da homossexualidade implica um “escopo” muito mais amplo do que podemos, em média, reconhecer. Tento resumi-lo em poucas questões que se implicam em cascata.
A questão sistemática que me parece decisiva é a seguinte: é possível ou mesmo necessário considerar a homossexualidade sob a categoria das “ofensas à castidade”? Mas, bem antes disso, por trás da questão da homossexualidade, está uma questão maior, ou seja, a questão geral da sexualidade.
Em outras palavras, o verdadeiro problema não é a variante “homo” da sexualidade, mas sim a sexualidade tout-court. A homossexualidade pode parecer “desordenada” porque a heterossexualidade é pensada como “ordenada” apenas quando referida à geração. Mas esta é uma visão totalmente aceitável?
Obviamente, não afirmo que isso não tenha fundamento, mas me pergunto se isso é realmente tão exclusivo. Para ir ainda mais longe, pergunto-me: o fato de o exercício da sexualidade não ser “pecado” apenas dentro do matrimônio é realmente a resposta evangélica à descoberta da sexualidade, diferente do simples “sexo”? Não há, em tudo isso, uma indevida sobreposição entre natureza, cultura e evangelho?
Tento elaborar essas diversas questões de forma inicial, como simples impulsos à reflexão, tentando mostrar a exigência de uma acurada elaboração de novas categorias, sem as quais a doutrina católica corre o risco de ser apenas uma “defesa” de princípios sacrossantos, mas com instrumentos teóricos e operacionais não mais adequados.
Para defender a tradição, de fato, os “talentos” não podem ser “enterrados no chão”, mas devem ser empregados com coragem e com paciência, no diálogo cultural de hoje, não mais apenas na cultura de Agostinho, de São Tomás de Aquino, de Lutero ou o cardeal Gasparri.
Se, por muitos séculos, a Igreja Católica definiu o “contrato de matrimônio” como um exercício do “ius in corpus”, ou seja, o direito exclusivo, em relação a cada um dos cônjuges, sobre o sexo do outro para fins de geração, é evidente que ela não se encontrou equipada, conceitualmente, para enfrentar a “transformação da intimidade” e o “nascimento da sexualidade” em uma sociedade aberta.
Quando o sexo se torna sexualidade, isto é, quando, de instrumento, ele começa a participar também da lógica do fim, não só o pecado está em jogo, mas também se torna central nele a definição (autodefinição e heterodefinição) do sujeito.
Assim, a representação de uma sexualidade legitimamente exercida apenas no marco da relação matrimonial é uma forma exasperada de substituir do “cumprimento” pela realidade complexa da existência. Na existência humana, faz-se experiência da sexualidade não apenas no matrimônio: este é um dado que emerge “in natura” e na sociedade aberta, que não censura previamente os comportamentos.
Desse modo, inevitavelmente, tudo o que cai “fora” do matrimônio (antes ou ao lado, para os noivos ou para os celibatários-solteiros) é irremediavelmente compreendido apenas com a categoria do pecado e, portanto, é mal compreendido.
Sem querer redimensionar a seriedade dos discursos sobre a continência e sobre a castidade – que continuam qualificando a vida propriamente humana – é óbvio que eles pressupõem um horizonte de experiência comum – no nível pessoal e social – que muito mudou nos últimos dois séculos. Mas aqui, evidentemente, nas reações, o risco de um maximalismo moral se desposa continuamente com uma organização sistemática das coisas abstrata demais. Um reequilíbrio entre os “bens” do matrimônio implica necessariamente outra repartição entre bem e mal, mais matizada e menos drástica. Que impõe uma redefinição da sexualidade em ordem não só à geração, mas também à relação e ao “bonum coniugum” e até ao “bonum sui”, em um matrimônio pensado não mais principalmente como “ato”, mas como “percurso” e como “processo”.
O fato de a sexualidade estar, no processo, só no fim é uma conjectura abstrata, que não repousa na experiência real. Se pensarmos bem, isso sempre foi verdade apenas para algumas mulheres, mas quase nunca para os homens. A nostalgia pelo “mundo ordenado” de antigamente é também a nostalgia por um contexto em que todos os rapazes, como “militares”, descobriam o sexo rigorosamente “fora do matrimônio” e muitas vezes, infelizmente, nas “casas de prazer”. O que não assegurava uma grande partida como iniciação à vida sexual e matrimonial.
Se permanecermos na percepção “pecaminosa” da questão sexual, porém, devemos reconhecer que o “sistema dos pecados” nem sempre foi o mesmo. A estrutura “clássica” de meditação e elaboração cristã sobre o pecado não foi construída sobre o “decálogo”, mas sobre os “sete pecados capitais”.
Essa organização tinha um ordenamento dos pecados como o de Dante: soberba, inveja, ira, avareza, preguiça, gula, luxúria. O último nível era o menos severo. Com o Concílio de Trento, o esquema eclesial enraizou no decálogo a estrutura dos pecados. Mas o “de sexto” estende-se aos “atos impuros” e assume um relevo que fará do pecado sexual, na era burguesa, o pecado “por antonomásia”.
Essa desproporção faz parte da nossa herança. Por isso, a percepção da dimensão “de pecado” da homossexualidade interfere emocional e afetivamente na questão, distorcendo o olhar e a razão. Pode parecer surpreendente, mas, no inferno de Dante, o vício da “sodomia” está próximo da usura e da blasfêmia. É pecado da sociedade antes que da intimidade. A história, mesmo a mais distante de nós, também pode nos dizer algo de útil para “recontextualizar” o fenômeno e não entendê-lo mal.
Se a referência à “natureza” certamente pode ser de destaque, é necessário atentar acuradamente para as mil formas de “inculturação do natural” que inevitavelmente acompanham o discurso sobre o homem e sobre a mulher. Que são animais “nunca apenas naturais”.
A palavra e a mão mudam a natureza e a transformam. Sempre. Por isso, os argumentos que se fundamental em um “dado natural” devem se acautelar para não projetar sobre a natureza a ordem social, o medo afetivo ou a desconfiança do caráter.
Não há dúvida de que a grande distinção entre “secondo natura” e “contro natura” pode funcionar bastante bem no mundo antigo, medieval e no início da modernidade. Em particular, um “abuso” da referência “contro natura” ocorreu precisamente em consideração à aceleração científica e tecnológica dos séculos XIX e XX. Assim, um padre de bicicleta, uma mulher que pratica esportes ou um paciente cardíaco cujo coração foi transplantado foram, nos 60 anos antes do Vaticano II, casos clássicos de “escândalos contro natura”.
Portanto, a partir da modernidade tardia, é preciso vigiar com cuidado sobre um uso da referência à “natureza” que pressupõe grandes mediações culturais, às quais devem ser cuidadosamente dedicadas considerações e distinções preciosíssimas. É evidente que a natureza impede que uma relação homossexual tenha diversas experiências, que podemos considerar decisivas. Mas definir uma relação “contro natura” apenas a partir de algumas diferenças fisiológicas e biológicas corre o risco de exasperar apenas alguns aspectos dela e de perder a consideração do fato em si.
Eu diria, portanto, que neste caso a distinção, embora necessária, entre pecado e pecador não é suficiente. É a compreensão do pecado e da sua relação com o bem que exige um suplemento de intelecto e de coração.
Não há dúvida de que a “libertação da questão do pecado” é um ponto que deve ser considerado. Aceitar a homossexualidade “sem problemas” não é uma solução. Se a orientação homoafetiva não considera a ausência de geração como um problema seu, ela não elabora corretamente a sua própria experiência.
Mas a centralidade da relação com o pecado do ser humano e com a sua superação em Deus não pode ser o horizonte primeiro para a compreensão da homossexualidade. Ou, melhor, não deveria sê-lo da sexualidade, porque não o é de todo o restante da experiência. E isso precisamente porque, se o pecado é original, mais original é a graça.
Aqui ainda fazemos a experiência, difícil e dura, de um “primado do pecado” na autoconsciência cristã e católica, que muitas vezes se torna “culpabilização de toda a diversidade”. Se tentarmos aduzir “argumentos naturais” – como a objetiva “não diferença” entre dois homens ou entre duas mulheres, que exclui uma “compenetração” – devemos também reconhecer que a sua gestão cultural influencia definitivamente na própria percepção natural. E a própria fecundidade que a natureza exclui, a cultura não exclui.
Sobre isso, creio eu, uma reflexão que não se polarize imediatamente sobre as “patologias pessoais ou sociais”, mas considere o bem real que os sujeitos podem viver para si mesmos e para o próximo impõe uma revisão das categorias de fundo. Caso contrário, repetimos evidências que não correspondem à realidade. Assim como acontece com o início e o fim da vida, a natureza e a cultura não se deixam distinguir como evidências imediatas. Isso também vale para a sexualidade.
Há, depois, um aspecto decisivo da passagem do sexo à sexualidade que coloca a Igreja diante de uma “questão copernicana” decisiva. Ou seja, a reconsideração da “competência” eclesial sobre a “matéria matrimonial e sexual”. Para entender o “tom” do responsum e também a sua ingenuidade, devemos voltar a 1563 e à invenção da “forma canônica” do matrimônio. Ou seja, a uma grande virada em toda a cultura ocidental, que transferiu para a Igreja Católica, para as dioceses e para as paróquias o “catálogo dos matrimônios”.
Pense-se que é a partir daí que nasce a possibilidade de definir árvores genealógicas ou de usar os sobrenomes, que são justamente o fruto das decisões tridentinas. A Igreja assumiu naquele momento a competência sobre o matrimônio, isto é, sobre o contrato assim como sobre a bênção. Nos 1.563 anos anteriores, nunca havia sido assim. As pessoas se casavam não importa onde, e na Igreja havia o espaço para a bênção das núpcias.
É claro que hoje nos constrangemos com a bênção que os casais do mesmo sexo também pedem: acostumamo-nos a pensar em uma “competência integral” e custamos a recuperar competências parciais. Mas esse foi um trauma do qual já nos demos conta há 140 anos, a partir da Arcanum Divinae Sapientiae, de Leão XIII, em 1880, com a “pretensão” de uma competência exclusiva da Igreja Católica sobre o matrimônio, a ser oposta às pretensões consideradas absurdas do Estado liberal: este era o grito de uma Igreja cercada e pressionada.
Mas temos uma tradição mais longa do que 1563. Temos até uma tradição que fez da “laicidade do matrimônio” o seu “bolim”. Por acaso esquecemos que São Tomás dizia que a “geração” ocorre de muitas maneiras: somos gerados pela natureza, pela cidade e pela Igreja?
Com efeito, o modelo tridentino de competência eclesial sobre o matrimônio entrou em crise no século XIX e, com a Familiaris consortio, encontrou um ponto de não retorno. No momento em que se diz que os “divorciados recasados” não perdem a comunhão eclesial, o modelo oitocentista não funciona mais. A Amoris laetitia saiu dele definitivamente, embora o responsum do dia 15 de março finja que pode ficar dentro dele, mas às custas de interromper a relação com a realidade, observando-a por um olho mágico muito estreito e obscuro.
A pretensão de uma “doutrina de sempre” em matéria matrimonial e sexual é uma reconstrução abstrata, que esquece a história. No momento em que o sexo se transforma em sexualidade, perde, em grande medida, a sua natureza de mera “função para o outro” e assume uma relevância direta para o sujeito, a doutrina deve encontrar novos recursos de argumentação e de orientação.
Para fazer isso, ela deve ouvir o Evangelho e a experiência dos homens e mulheres. Muitas vezes, esquecemos que a questão sexual e a questão de gênero estão intimamente ligadas, não apenas terminologicamente. O exercício da sexualidade muda no momento em que se descobre, científica, cultural e socialmente, que a mulher não é “a parte passiva na geração” e, portanto, é ativa no gerar, no exercício da sexualidade e no papel social.
Quando há apenas uma cabeça no matrimônio, ou seja, o marido, ou há duas, as coisas já não são mais as mesmas. Estes são fatos irreversíveis que mudam a doutrina eclesial do matrimônio, goste-se ou não. E a Igreja, quanto antes se der conta disso, antes responderá adequadamente às “perguntas” que recebe, ou que talvez faça por conta própria a si mesma.
Assim como no “caso Galileu”, a questão sexual (e homossexual) suscita reações viscerais. Como a Igreja pode dizer que o “bem de Deus” é para todos os homens e mulheres, até mesmo para os não batizados? Se o anúncio diz respeito a sujeitos individuais ou a relações com as coisas, não há problema: você pode abençoar o veleiro Luna Rossa ou um tanque, uma boiada inteira ou uma associação de pesquisa sobre os flamingos. Mas, se tiver relação com o exercício da sexualidade, primeiro você pede o atestado de boa conduta, a conformidade com a natureza, a ausência de segundas intenções, e depois, eventualmente, você se põe em jogo.
Essa atitude é o fruto de uma história cheia de paixões, de julgamentos e de preconceitos. Mas a tradição eclesial é mais antiga do que o decreto Tametsi. E tem os recursos para responder “afirmativamente”, até mesmo no nível estritamente canônico. Contanto que, em Roma, ou na Alemanha ou nos EUA, autoridades ou teólogos decidam não vestir a sua peruca e não proclamem, como verdade de sempre, o concentrado de representações antimodernas com o qual a Igreja Católica tentou resistir, como podia, à geada do século XIX.
Temos a cultura e a força para estar à altura da realidade. Se nos trancarmos nas Salas do Santo Ofício, se dermos a palavra apenas a quem está disposto a vestir a peruca e a se camuflar de um homem de 200 anos atrás para ainda sermos católicos, nos tornaremos dignos de não sermos levados a sério.
A questão da bênção dos casais homossexuais é muito mais séria do que parece no texto do “responsum”: tentemos dar à oficialidade eclesial um perfil mais nobre e menos provinciano. Senão, um novo “caso Galileu” se tornará ingovernável e acabará nos obrigando a nos envergonharmos e a pedirmos perdão daqui a 50, 100 ou 300 anos.