17 Março 2021
"O que no responsum mais chama atenção é precisamente o fato de que, devido a uma sistemática teológica e a uma sistemática jurídica velha de mais de um século, o texto da Congregação erra o objeto da discussão. Ou seja, não consegue se apropriar da questão e a resolve referindo-se a conceitos e normas que a desfiguram. Aqui há trabalho para teólogos que queiram servir a Igreja, e ajudá-la a reconhecer os caminhos fechados e a traçar novos percursos para sair da mata, numa passagem muito complexa, mas por isso mesmo, totalmente maravilhosa", escreve Andrea Grillo, teólogo leigo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 16-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Desde as primeiras reações de ontem ao responsum da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o caráter ilícito da bênção dos casais homossexuais, destaquei o "defeito sistemático" do pronunciamento, hoje gostaria de esclarecer melhor do que estamos falando quando usamos o adjetivo "sistemático" em um discurso teológico. Às vezes, as palavras "difíceis" são usadas apenas para lançar fumaça nos olhos de quem vê e atordoar os ouvidos de quem ouve. Mas como a questão sistemática é, em minha opinião, decisiva para entender o caso concreto, vou tentar esclarecer em que sentido o perfil sistemático merece atenção.
Vamos começar pelo sal. Sim, o sal. Na cozinha tem o seu lugar entre os temperos e deve ser colocado num local de fácil acesso, para ser facilmente encontrado. Mas quando usamos o sal, o que pensamos? Com que "propósito" usamos o sal? Os propósitos são mais do que um:
Um problema "sistemático", no uso do sal, é como combinar esses três propósitos, que podem ter soluções muito diferentes. O prazer da mesa, a forma atlética ou a saúde de ferro são ideais que criam, como se sabe, conflitos bem significativos. O sal entra "sistematicamente" na nossa vida, se assumirmos conscientemente todos estes "propósitos" e gerimos com sabedoria e equilíbrio os conflitos entre o prazer da gula, a beleza da forma e a saúde do corpo.
O mesmo mecanismo também opera na vida cristã e na teologia. Obviamente, os sistemas com os quais “resolvemos os conflitos” são diferentes e mudam historicamente. Estudar os grandes sistemas que a história nos oferece é sempre instrutivo, mesmo quando não podemos mais compartilhá-los. Aliás, eu gostaria de dizer que aprendemos um saber sistemático, principalmente de sistemas que não são mais os nossos. Ler com interesse o "De ecclesiasticis officiis" de Isidoro de Sevilha, um dos primeiros "sistemas" sobre a liturgia cristã, é muito útil para compreender como “se arranjavam” as coisas no século VII, com tantas luzes e tantas sombras. O mesmo é verdade para o sistema com o qual Santo Tomás de Aquino organiza o saber teológico como um todo. Enquanto isso, é sempre útil lembrar que Santo Tomás tem mais de um sistema. Na Summa Theologiae e na Summa Contra Gentiles existem organizações do material da tradição operadas de acordo com lógicas muito diferentes e com objetivos diferenciados. Mas aqui estou interessado em entender, especificamente, como Tomás usa o material da tradição para resolver uma questão concreta.
Por exemplo, como Tomás considera o "sexo feminino" no campo do ministério eclesial? Tomás usa a referência ao "sexo feminino" como o primeiro "item" na lista de impedimentos à ordenação. Para Tomás, que aqui exprime uma visão cultural e social muito clara, o sexo feminino é colocado em "primeira posição" numa lista que não pode deixar de provocar curiosidade, quase 800 anos depois: ser mulher, ser incapaz, ser escravo, ser culpado de graves delitos, ser filho natural e ser portador de deficiência. Essas condições são "sem poder" - seja por necessidade "natural" ou por contingência histórica - e, portanto, não podem ser investidas de papéis de poder, nem mesmo na Igreja.
Essa compreensão sistemática, como é evidente, não tem uma origem "teológica", mas sim "cultural" e "sociológica". Não tem nada "revelado", mas é um instrumento para a resolução de conflitos. Ao fazer isso, no entanto, assume como normativo o que hoje em grande parte não podemos mais aceitar. Hoje estamos projetando “cidades sem barreiras arquitetônicas”, enquanto no mundo de Tomás o portador de deficiência era forçado, inclusive moralmente, a ficar em casa, escondido.
Gostaria de me deter por um momento na quinta condição problemática desta lista: ser "filho natural". O título de “filho natural” era, na sociedade tradicional, o sinal de uma marginalização devida à “desordem” da qual provinha o filho. Nascer "fora do casamento" era percebido como uma ameaça à ordem social e à honra dos indivíduos. A gestão dos conflitos era garantida pela "exclusão" do filho natural. Visto que o sexo era pensado como "meio para a geração no casamento", qualquer exercício do sexo fora do casamento era, de fato, excomungado primeiro socialmente e depois também pela via eclesial. Cada tradição cristã teve suas formas de excomunhão. Tanto os decretos dos bispos ou dos párocos, quanto os bancos da igreja marcados com as palavras “meretrizes” sinalizavam a “desordem”, que era imediatamente relevante para a ordem pública.
Esse "sistema" resistiu até as grandes convulsões do início de 1800. Quando nasceu não apenas o "estado liberal", mas também a "sexualidade", que poderíamos definir uma nova percepção do sexo, não apenas em termos funcionais. A sexualidade é uma visão, uma experiência e um uso do sexo como parte da identidade do sujeito e como expressão de sua humanidade e de suas relações. Essa mudança modifica profundamente o "sistema" com o qual pensamos a vida do ser humano no mundo e diante de Deus.
A Igreja Católica viveu essa mudança "sistemática" como um trauma, como o começo do fim, como o colapso de toda ordem de valores e como uma perda de poder. Mas também reagiu "modificando o sistema". Um dos pontos sistemáticos mais interessantes é a modificação do "sistema dos bens" do casamento. Havia sido inventado, em outro mundo, por aquele gênio chamado Santo Agostinho, que com uma síntese admirável sancionou que havia três bens no casamento: os filhos, a fidelidade e o sacramento (entendido como indissolubilidade). Essa síntese norteou o pensamento por quase um milênio e meio e ainda hoje é bastante útil. Mas não é mais suficiente. Porque no casamento, há 60 anos, oficialmente, existe também o "bonum coniugum", isto é, o "bem dos cônjuges" que é uma nova categoria sistemática, que muda radicalmente o sistema de Agostinho. O assunto adquire um novo significado e por isso também "gerar filhos" pode ser "responsável", isto é, subordinado a condições diversas e significativas.
Essas considerações sistemáticas - que espero sejam úteis - também podem ter uma grande influência na maneira como a Igreja fala dos comportamentos homossexuais e das identidades homossexuais. Se utilizarmos o conceito de "ato desordenado" - categoria que diz respeito a todas as formas de "uso do sexo" fora do casamento e/ou não orientado para a geração - projetamos sobre os sujeitos envolvidos a luz de um farol que os ilumina apenas em um mundo que não existe mais. Porque lê sua sexualidade apenas como "o instrumento para a geração". Aqui está o ponto sistemático inadequado e irremediavelmente distorcido. Mas atenção, a distorção não está na tematização da geração, que continua digna de consideração, mas em assumi-la como o único perfil decisivo para avaliar um comportamento, para se relacionar com as pessoas e para tomar uma decisão.
Gostaria de acrescentar outro pequeno exemplo que sempre considerei altamente instrutivo. O episódio remonta há alguns anos atrás, durante o “Governo Letta”, quando o então Primeiro-Ministro - lembro bem - deu a notícia numa conferência de imprensa de que também a Itália havia se adaptado finalmente aos novos padrões europeus e finalmente havia equiparado totalmente a posição jurídica do “filho natural” com aquela do “filho legítimo”. A "desordem" em que havia nascido o filho já não pesava mais em sua posição jurídica no ordenamento do Estado. Lembro que eu estava em Roma conversando com um canonista sobre essa notícia. E percebi que havia certa resistência nele.
No final, ele explicou seu incômodo com uma frase que me impressionou muito: “Com essa lei, agora as pessoas não vão mais se casar nem mesmo para regularizar os filhos”. Achei a reação esclarecedora: o "sistema" ainda era pensado como aquele de um mundo em que as leis têm essencialmente uma função "pedagógica", ou seja, devem estabelecer deveres antes de reconhecer direitos. Mesmo ao custo de manter uma discriminação, desde que se salve o princípio. Creio que esta é a perspectiva sistemática que também influencia fortemente a decisão da Congregação: a ideia é que se deve evitar a bênção de casais homossexuais para obstaculizar toda pedagogia que incentive a desordem. Olha-se para o ordenamento, não para os indivíduos. Isso é tipicamente pré-moderno. Responde a um paradigma que não é mais o nosso.
Em suma, como tentei ilustrar através de uma pequena reflexão e alguns exemplos, as graves perplexidades diante do "responsum" dependem de dois problemas sistemáticos que influenciam fortemente a solução adotada:
a) uma sistemática teológica desatualizada não consegue sair de uma leitura do sexo que o reduz a "função de geração". Há 200 anos, pelo menos na Europa, isso não acontece mais: a experiência de homens e mulheres é diferente e as formas de vida seguem outras lógicas. Às quais não devem ser simplesmente acatadas, mas que devem ser consideradas no sistema em uma forma não acessória. O embaraço do responsum aparece com bastante clareza quando tenta "acrescentar" o respeito pelas pessoas, sem modificar um "sistema" que não pode absolutamente considerá-las. O efeito grotesco, ao mesmo tempo trágico e cômico, resulta precisamente desse "choque entre sistemas". Ou se trabalha no sistema ou se criam confusões cada vez maiores.
b) uma sistemática jurídica, parada numa leitura oitocentista da codificação e da lei universal e abstrata, aliada a uma visão “apenas pedagógica” da lei. Se for verdade que o mundo moderno só pode falar de direitos e não reconhece a função decisiva dos deveres, é igualmente verdade que uma Igreja que não consegue conceber o "direito do sujeito" de ser reconhecida pelo que é, e para o bem que pode viver e testemunhar, constitui um problema igualmente grave. Reconhecer o bem que existe - e também poder abençoá-lo - ao invés de focar apenas no bem máximo a ser imposto a todo custo, não é “relativismo”, mas princípio da realidade e primado do real sobre o ideal.
Um último ponto deve ser esclarecido e é fundamental. Muitas vezes acontece de ouvir objeções dirigidas aos teólogos, acusados de "complicar as coisas simples". Desse ponto de vista, são justamente os "sistemáticos" que estão na fila da frente nas acusações. Sem querer defender em abstrato toda uma categoria, que eventualmente tem seus defeitos, procuro apenas mostrar que uma sistemática adequada não é algo que se "acrescenta" à realidade, mas um elemento decisivo que a torna plenamente visível e perceptível. O que no responsum mais chama atenção é precisamente o fato de que, devido a uma sistemática teológica e a uma sistemática jurídica velha de mais de um século, o texto da Congregação erra o objeto da discussão. Ou seja, não consegue se apropriar da questão e a resolve referindo-se a conceitos e normas que a desfiguram. Aqui há trabalho para teólogos que queiram servir a Igreja, e ajudá-la a reconhecer os caminhos fechados e a traçar novos percursos para sair da mata, numa passagem muito complexa, mas por isso mesmo, totalmente maravilhosa.
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O que é um problema sistemático? Casais homossexuais e pedagogia da lei. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU