26 Agosto 2016
"Celebrar a liturgia na idade secular significa viver, compreender e acompanhar as profundas transformações do nosso tempo, cujos resultados ainda são bastante imprevisíveis".
A reflexão é de Goffredo Boselli, monge de Bose e especialista em liturgia, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 19-08-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
É preciso reconhecer que o modo de viver e acreditar cristão, numa sociedade secular, onde Deus está ausente, é muito diferente do viver e acreditar em condição de plena cristandade, com a religião estruturando a vida e definindo os comportamentos, onde Deus era uma evidência e adorá-lo, uma prática. Ao contrário, os cristãos pertencentes à sociedade secularizada precisam saber, hoje, a diferença entre as escolhas de vida baseada na fé e os comportamentos comuns, entre os valores do Evangelho e do ethos comum dominante. Crer, então, num tempo de indiferença religiosa, significa fazer uma escolha totalmente livre, mas totalmente sem um contexto social que a sustente, de um ambiente que a partilhe e de uma comunidade civil que a represente. Portanto, a condição dos cristãos, hoje, nas sociedades ocidentais está tornando-se cada vez mais paradoxal: viver a presença de Deus em sua ausência social.
Aqui está a principal tarefa da liturgia na idade secular: render Deus presente numa sociedade sem Deus, ser sua epifania entre os homens. Se no passado os sinais da presença de Deus podiam ser vistos por toda parte, tanto no rei como na lei, na cultura e na arte, hoje, o sinal de mais eloquente, e em determinadas situações até mesmo o único, da presença de Deus num lugar é a comunidade reunida em oração, no dia do Senhor. São, em particular, aquelas pequenas e pobres comunidades cristãs, que vivem isoladas nas periferias, às vezes, até mesmo, sem pastor. Na idade secular, a presença e visibilidade de Deus no mundo são a comunidade que o celebra e confessa. "Vós sois minhas testemunhas - Palavra do Senhor - e eu sou vosso Deus" (Isaías 43,12), o Midrash Sifre Rabá é incrivelmente denso deste versículo de Isaías: "Ou seja, se vós sois minhas testemunhas, Eu sou Deus, e se vós não sois minhas testemunhas, eu, por assim dizer, não sou Deus". Em outros lugares a tradição rabínica foi assim interpretada: "Se vós não me confessardes, diz o Senhor, eu não existo". A tradição judaica colocou este modo de conceber a condição da existência de Deus na história, em relação à revelação do nome de Deus: "Eu sou quem eu sou" (Êxodo 3,14). Deus revela que ele é, mas a sua existência, isto é, o seu ser no mundo, depende da confissão que Israel irá fazer do seu santo nome.
Pode-se dizer, portanto, que a idade secular recorda à comunidade cristã que a primeira tarefa da liturgia é invocar a presença de Deus no mundo. Lembra que a liturgia tem a tarefa de conscientizar crentes e não-crentes de que o Deus de Jesus Cristo não impõe sua presença, ao contrário, sua existência no mundo depende da confissão dos que têm fé nele. É um Deus que não quer ser decisivo na história, mas se oferece à decisão dos que creem nele para história do mundo. Deus, desde o início, desistiu de ser necessário para o homem, forçando-o à relação com ele, mas é o Deus de quem quiser, de quem invoca o seu nome. É preciso recordar que o Deus de Israel vem libertar o seu povo escravizado no Egito, porque os filhos de Israel clamaram, e "Deus ouviu os seus gemidos, e lembrou-se Deus da sua aliança com Abraão, Isaac e Jacó. Deus olhou para os filhos de Israel, Deus se preocupou" (Êxodo, 3,24). Sua participação na história de seu povo ocorreu por meio da invocação da sua comunidade. Isso faz dele um Deus que entra na história pela oração de seu povo.
Sim, a idade secular lembra especialmente que o Deus dos cristãos quer vir e estar presente na história da humanidade de modo precário.
Lembremos da relação entre prex (oração), precari (rezar) e precarius (precário), que literalmente significa aquilo que é obtido através da prece. A presença de Deus no mundo é precária porque é o resultado das “preces” (precari) da Igreja.
Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), que juntamente com Friedrich Gogarten (1887-1967) foi o principal expoente da teologia da secularização, na carta da prisão de Tegel, de 16 de Julho 1944, escreve: "Deus deixa-se expulsar do mundo sobre a cruz, Deus é impotente e fraco no mundo, pois, na verdade, é a única maneira de estar do nosso lado e nos ajudar. É absolutamente evidente, em Mateus 8,17, que Cristo não ajuda em virtude de sua onipotência, mas em virtude de sua fraqueza". Para Bonhoeffer "a maior parte do mundo", que chamamos de idade secular, é o resultado de uma lógica interna da fé que se livra de toda falsa imagem de Deus. É uma capacidade que lhe vem do próprio Deus, graças a qual, "o homem aprendeu a ser autossuficiente em todas as questões importantes, sem a ajuda da hipótese de trabalho Deus", graças à ciência, à técnica e à medicina. Deus não é mais nem necessário nem indispensável para o homem e a mulher contemporâneos, e esta é a verdadeira imagem cristã de Deus, sua fraqueza, sua fragilidade.
Na idade secular o homem sabe o verdadeiro nome de Deus, revelado em Jesus Cristo, como servo sofredor: sua kenosis revelou sua divindade. Assumir a fraqueza e o sofrimento de Deus no mundo, ou seja, a autonomia do mundo, é a condição e, ao mesmo tempo, a vocação do cristão hoje. Desta forma, a idade secular liberta o cristão "de uma falsa imagem de Deus, abre o olhar para o Deus da Bíblia, que obtém potência e espaço no mundo, graças à sua impotência".
Na sociedade secularizada a liturgia confessa que o Deus cristão não está presente na história através do braço político de um reino, não graças à proteção dos poderosos deste mundo, a uma legislação civil e, muito menos, graças a um projeto cultural, mas apenas e só graças à fé de sua comunidade que confessa sua presença na história. Na idade secular a liturgia anuncia o Evangelho da presença de Deus na história. O teólogo dominicano Claude Geffré observou astutamente que o futuro do cristianismo no Ocidente vai depender essencialmente da capacidade que a Igreja terá, nas próximas décadas, de mostrar, aos homens e mulheres, o cristianismo como a religião do Evangelho. Só assim poderá emergir claramente a cumplicidade entre o humano autêntico e o humanismo evangélico. Na verdade, o cristianismo será a religião do futuro, e não apenas do passado, precisamente porque há uma profunda harmonia entre o Cristianismo como religião do Evangelho e o verdadeiro humanum mencionado na Gaudium et Spes. Esta é, na minha opinião, a grande intuição que perpassa a Evangelii Gaudium. A plena humanização do humano é a salvação que Cristo oferece e que o Evangelho da Alegria anuncia. Esta bonita imagem de uma Igreja que na sociedade secularizada assegura um serviço evangélico ao humano é certamente paradoxal, mas profundamente evangélica. Neste contexto, a idade secular parece atestar cada vez mais claramente que, a própria liturgia, mais ainda do que qualquer outra ação da Igreja, para ser realidade evangelizante e, ao mesmo tempo, realidade humanizante, é chamada, também ela, a tornar-se transparência do Evangelho. Só uma sempre maior qualidade evangélica poderá, na verdade, fazer da liturgia uma realidade verdadeiramente evangelizante, na consciência de que só o Evangelho evangeliza. Na idade secular apenas o Evangelho nu evangeliza. Como já tive modo de dizer e escrever, a exigência da qualidade evangélica da liturgia depende do estatuto absolutamente singular que o rito tem no cristianismo. Como recorda Louis-Marie Chauvet, "a boa saúde da fé cristã está ligada não a uma rejeição do rito, mas a sua gestão crítica, e isso implica que ele seja constantemente evangelizado. É decisivo, na minha opinião, a este respeito, lembrar que o coração da liturgia e dos sacramentos cristãos não é o rito, mas a palavra de Deus: é sempre esta palavra que ocorre neles, mas ocorre sob a forma ritual".
Às vezes tem-se a impressão de que de tanto falar do rito acaba-se esquecendo que a ritualidade só é cristã porque a Palavra de Deus é ali proclamada eficazmente.
O rito cristão é nada mais do que a visibilidade efetiva da palavra do Evangelho. Agostinho define o sacramento quase Verbum visível. Neste sentido, parece-me compreender que a secularização está passando no crivo todos os ritos litúrgicos e, sobretudo, algumas imagens de Deus que os ritos carregam, herdados de séculos de cristandade. Os próprios cristãos hoje, pastores e leigos, os mais preparados e dispostos a um confronto com a cultura contemporânea, dizem: ritos, sim, mas à condição de que sejam de Cristo. Deve-se perguntar: Que memória de Cristo eles realizam? Para que a liturgia seja, a todos os efeitos, evangelização em ato, parece cada vez mais impor-se como urgente a difícil tarefa de iniciar o discernimento, sem ideologias, mas também sem complexos, tais como aspectos da liturgia podem ser um obstáculo para a evangelização na sociedade secularizada.
É necessário, antes de tudo, reconhecer que o primeiro obstáculo para grande parte das pessoas que participam da liturgia é representada pela linguagem litúrgica. Alguns textos litúrgicos, que a tradição nos transmitiu, parecem agora grandes pinturas de rara beleza, que reproduzem o núcleo da fé cristã, mas que, aos olhos e ouvidos de muitos dos que participam das liturgias, são impenetráveis e, por vezes, indecifráveis. Cada vez que estes textos são rezados na liturgia, temos a impressão de que uma imensa riqueza é, na sua maior parte, perdida, escorrendo embora como água derramada. Hoje, todos nós estamos mais conscientes do fosso sempre mais profundo que existe entre a linguagem litúrgica e a língua dominante na nossa sociedade que, em alguns Países europeus, tornou-se até mesmo uma linguagem pós-cristã e pós-religiosa.
Devemos, pelo menos, fazer a pergunta: os textos litúrgicos são para os cristãos de hoje eloquência do Evangelho? São um lugar de conhecimento do mistério de Cristo e instrumento de confissão consciente da fé? Se queremos evangelizar com a liturgia, tudo nela deve ser eloquente para o crente de hoje, acima de tudo os textos, isto é, as orações, de outra maneira a liturgia nunca irá plasmar a fé senão exclusivamente por meio das leituras bíblicas. Com relação a real compreensão do conteúdo dos textos litúrgicos pelos crentes, não me parece, em minha opinião, haver suficiente vigilância espiritual e pastoral, nem a consciência do empobrecimento que isto representa para fé. Se, de fato, normalmente, a interiorização da oração litúrgica da Igreja não acontece, arrisca-se reduzir a liturgia dominical unicamente a escuta da Palavra de Deus, sem que o crente se una e adira espiritualmente à fé da Igreja. A fé que, num só tempo, os textos litúrgicos contem, expressam e transmitem, a fim de facilitar a assimilação pelo crente. Tem-se, por vezes, a impressão de uma difusa resignação acerca da irrelevância dos textos litúrgicos na vida de fé dos cristãos, mesmo dos mais maduros, por causa de sua linguagem impenetrável. Por esta razão, nada nos impede de confiar que aquela explicitação do Estatuto das Conferências Episcopais, solicitado pelo Papa Francisco, no número 36 da Evangelii Gaudium, Estatuto que “os conceba como sujeitos de atribuições concretas, incluindo até mesmo alguma autoridade doutrinária", também vai incluir a possibilidade, especialmente para as Igrejas locais europeias, imersas num contexto secularizado, de procurar formas inéditas de uma nova linguagem litúrgica, expressões novas para dizer fé hoje, adaptadas à cultura, à sensibilidade, à linguagem e ao modo de exprimir-se do homem e da mulher contemporâneos.
Para ser realidade evangelizante, o Deus da liturgia não pode ser outro senão o Deus do Evangelho, caso contrário, será um obstáculo para a evangelização. Portanto, não podemos dispensar-nos de perguntar se não representam hoje um obstáculo à evangelização aquelas imagens de Deus, ainda presentes na liturgia, ligadas à teologia da satisfação, da expiação, da aplacação. Um Deus a quem peço um olhar propício, para aceitar com benevolência e acolher gentilmente os sacrifícios, portanto, um Deus para apaziguar e satisfazer com a imolação e a oferta do sacrifício. Imagens sacrificiais de Deus que recorrem de modo extremamente predominante nas orações sobre os dons. Imagens não mais credíveis do divino, herdeiras de séculos de cristandade, mais devedoras de uma religião sacrificial (principalmente pagã), do que da revelação da face de Deus Pai feita por Jesus Cristo. Como não recordar que para René Girard a secularização é a efetiva realização do cristianismo como religião não sacrificial.
Celebrar a liturgia na idade secular significa viver, compreender e acompanhar as profundas transformações do nosso tempo, cujos resultados ainda são bastante imprevisíveis. Para o que concerne a vida litúrgica e a pastoral sacramental das comunidades cristãs de hoje e das próximas décadas, será demasiado determinante a atitude que a Igreja no Ocidente tomar nos confrontos da sociedade secular, ou seja, sua postura diante da concreta humanidade de hoje. Permanece marcadamente decisiva a positiva recepção do Vaticano II como "evento" ainda destinado a gerar novidades na liturgia, na convicção de que, como agora, a recepção do Concílio continua fortemente ligada ao juízo que nós, como Igreja, formulamos sobre a sociedade contemporânea. O tipo de liturgia que queremos está fortemente vinculado à maneira de entender o papel e a missão da Igreja e dos cristãos no mundo de hoje. O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, nos indicou os traços essenciais, especialmente urgentes e indispensáveis. E, embora, como é usual observar, na Evangelii Gaudium fala-se só por aceno da liturgia como realidade evangelizante, pessoalmente estou convencido de que tudo o que o Papa Francisco, nesta Exortação Apostólica, pede à Igreja, chama diretamente em causa a liturgia da Igreja. Porque a liturgia revela o que é a Igreja e, ao mesmo tempo, diz o que a Igreja está chamada a ser.
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