04 Janeiro 2017
“O Papa Francisco completa oitenta anos, e está muito bem, tanto física como espiritualmente. Ele viaja constantemente para o mundo todo e para as paróquias romanas. Bispo de Roma, título que reivindica frequentemente, porque lhe permite definir-se como "primus inter pares", com consciência do quanto este título é útil para uma Igreja missionária como ele está realizando. Eu, pessoalmente, tive a sorte de tornar-me seu amigo, embora não seja um crente. Papa Francisco precisava de um não-crente que aprovasse a pregação daquele que ele chama Jesus Cristo, e que eu chamo Jesus de Nazaré, filho de Maria e José da tribo de Davi, isto é, filho de homem, e não de Deus”, escreve Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, em artigo publicado por La Repubblica, 17-12-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
Mas, sobre esse modo de olhar para Cristo, o Papa Francisco está de acordo: o Filho de Deus, quando decide encarnar-se, torna-se verdadeiramente um homem, com todas as paixões, fraquezas, virtudes de um homem.
Francisco narra frequentemente a semana da Paixão que inicia com a entrada quase triunfal de Jesus em Jerusalém, seguido por muitos dos seus fiéis e, claro, por seus apóstolos. Mas, em Jerusalém, encontra também aqueles que o temem e o odeiam. Sobretudo a hierarquia judaica do Templo, que se sente ameaçado em seus privilégios. Naquela época, Israel estava sob a "proteção" do Império de Roma, e o imperador era Tibério, que nada sabia do que acontecia nas províncias muito distantes. Papa Francisco lembra os últimos dias daquela que depois seria chamada de "Via Crucis", a última Ceia e, em seguida, o que aconteceu no Jardim do Getsêmani. Os apóstolos, naquela ceia, eram treze, mas um deles, Judas Iscariotes, já o havia traído, e quando Jesus começou a falar, abandonou a mesa e saiu. Ficaram em doze, e foi ali que Jesus compartilhou pão e vinho, identificando-os com seu corpo e seu sangue. O Senhor já tinha sido batizado por João, nas águas do Jordão, e, batismo e a Eucaristia eram os únicos dois sacramentos; os outros vieram depois. A natureza humana de Cristo se encontra nos relatos dos Evangelhos, no Getsêmani, e, depois, na Cruz. No jardim, onde será preso pelos soldados romanos liderados pelo Iscariotes, Jesus entra em contato com o Pai e diz: "Se podes, afasta de mim este cálice amargo, mas se não queres eu vou bebê-lo até o fim". Na Cruz, nos últimos momentos, antes de sua morte, disse: "Pai, por que me abandonaste?”. Por isso, foi um homem, a encarnação foi real. Papa Francisco é fascinado por esses relatos. Perguntei-me e lhe perguntei por que o fascínio que exercem sobre ele, e a resposta foi que, no mistério trinitário, Cristo representa o amor em todas as suas manifestações. O amor a Deus, que se transforma em amor ao próximo. "Ama o teu próximo como a ti mesmo" é uma legitimação do amor ao indivíduo e à comunidade, em círculos concêntricos: a família, o lugar onde se vive e, sobretudo, à espécie a qual se pertence. Francisco indica os pobres, os necessitados, os enfermos, os migrantes. Francisco sabe o que a Bíblia diz: "Os ricos e poderosos têm que passar pelo buraco de uma agulha para ganhar o paraíso". É necessário, portanto, que os povos se integrem com outros povos. Caminha-se em direção a uma miscigenação universal, que será um benefício, aproximará os costumes, as religiões. O Deus único será finalmente uma realidade. Isto é o que Francisco espera. "É óbvio que é único, mas até agora não foi assim. Cada um tem seu Deus, e isso alimenta o fundamentalismo, as guerras, o terrorismo. Até mesmo os cristãos são diferenciados, os ortodoxos são diferentes dos luteranos, os protestantes estão divididos em milhares de diferentes confissões, os cismas aumentaram essas divisões. De resto, nós católicos, fomos invadidos pelo temporalismo, começando pelas Cruzadas e pelas guerras religiosas que ensanguentaram a Europa e a América do Norte e do Sul. O fenômeno da escravidão e do tráfico de escravos, vendê-los em leilões. Esta foi a realidade que deturpou a história do mundo". Quando o papa Francisco participou na celebração de Martinho Lutero e da sua Reforma, colheu a "essência das teses Luteranas: a identificação dos fiéis com Deus não tem necessidade da intermediação do clero, mas ocorre diretamente. Isso nos conduz ao Deus único, e atribui ao sacerdócio um papel secundário. Assim foi nos primeiros séculos do cristianismo, quando os sacramentos eram celebrados diretamente pelos fiéis, e os presbíteros só faziam o serviço. Francisco está de acordo com estas teses Luteranas, que coincidem com o que aconteceu nos primeiros séculos.
Mas quais são os santos que o nosso Papa prefere? Perguntei-lhe, e ele me respondeu o seguinte: "O primeiro é, naturalmente, Paulo. Foi ele quem construiu a nossa religião. A Comunidade de Jerusalém, liderada pelo próprio Pedro, definia-se como judaico-cristã, mas Paulo aconselhou que era necessário abandonar o hebraísmo e dedicar-se à difusão do cristianismo entre os gentios, isto é, entre os pagãos. Pedro o seguiu nesta concepção, mesmo que Paulo nunca tivesse visto Jesus. Ele não era um apóstolo, mas se considerava tal e Pedro o reconheceu. O segundo é São João Evangelista, que escreveu o quarto Evangelho, a mais belo de todos. O terceiro é Gregório, expoente dos Padres da Igreja e da liturgia. O quarto é Agostinho, bispo de Hipona, educado adequadamente por Ambrósio, bispo de Milão. Agostinho falou da Graça, que toca todas as almas e as predispõe ao bem compativelmente com o livre arbítrio. A liberdade aumenta o valor do bem e condiciona seu eventual abandono. Pois bem, pode ser que eu exagere, mas estou firmemente convencido: depois de Agostinho vem o Papa Francisco. O intervalo temporal é enorme, mas a substância é esta. Eu o defini, quando o encontrei, revolucionário e profético, mas também moderno. Em um de nossos encontros, perguntei-lhe se pensava em convocar um novo Concílio, e ele me respondeu: "Um Concílio não: o Vaticano II, ocorrido cinquenta anos atrás, deixou um preceito que foi amplamente aplicado por João Paulo II, por Paulo VI e Bento XVI. Mas tem um ponto que não progrediu, e é aquele que diz respeito ao confronto com a modernidade. Cabe a mim preencher esta lacuna. A Igreja deve modernizar-se profundamente em suas estruturas e também na sua cultura". Santidade - argumentei – a modernidade não acredita no Absoluto. Não existe a verdade absoluta. O senhor terá, portanto, de confrontar-se com o relativismo. "De fato. Para mim existe o Absoluto, nossa fé nos leva a crer em um Deus transcendente, criador do Universo. No entanto, cada um de nós tem um relativismo pessoal, os clones não existem. Cada um de nós tem sua própria visão do Absoluto e, a partir deste ponto de vista, o relativismo existe e se coloca ao lado da nossa fé". Bons oitenta anos, querido Francisco. Eu continuo pensando que depois de Agostinho é o senhor. É um tesouro espiritual para todos, crentes e não crentes.
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Francisco, nas pegadas de Santo Agostinho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU