08 Junho 2024
"Guerras entre humanos e guerra contra a natureza são as duas faces interligadas do desastre planetário em curso, com suas vítimas cada vez mais numerosas.", escreve Luiz Marques, professor aposentado e colaborador do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Atualmente é professor sênior da Ilum Escola de Ciência do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM). Pela Editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, vida de Michelangelo (1568) (2011), e Capitalismo e colapso ambiental (2018, 3ª edição). É membro dos coletivos 660, Ecovirada e Rupturas. O artigo foi publicado pelo Jornal UNICAMP e reproduzido por EcoDebate, 07-06-2024.
A evidência do desastre planetário em curso e a negação dessa evidência, ou ao menos a recusa em admiti-la plenamente, são os dois traços definidores do nosso tempo. De onde a posição central em nossos dias do problema do negacionismo, fomentado pela desinformação e pelo autoengano. Negacionismo é um termo polissêmico, que apresenta diversas facetas e gradações, desde a mais tosca e pueril, típica da extrema-direita, à mais douta e universitária, camuflada na ficção do “crescimento sustentável”. Ao contrário da acepção original do termo negacionismo, que tentava relativizar ou negar a existência dos campos de extermínio criados pelo Terceiro Reich, o negacionismo contemporâneo tem por foco descreditar o consenso científico. Ele deve ser definido como a recusa cega e irracional em aceitar os alertas científicos sobre as causas das catástrofes locais e regionais já observadas cotidianamente, sendo que tal recusa implica escolher a própria ruína. Essa escolha é motivada em geral por interesse econômico, mas também pela ideologia do desenvolvimentismo, por um investimento na própria ignorância, por fanatismo religioso e, mais frequentemente, por um misto de todas essas motivações.
No quadro geral desse desastre planetário, a emergência climática e a aniquilação da biodiversidade são as crises mais sistêmicas. O clima é a condição de possibilidade das florestas, e as florestas são, por sua vez, a condição de possibilidade da estabilidade do clima. Sem um clima minimamente estável e sem florestas, não há agricultura, estabilidade dos ciclos hidrológicos e, sobretudo, possibilidade de regulação térmica dos organismos. Não podemos – nós e as demais espécies – sobreviver fora de nosso nicho climático.[1] Trata-se de uma impossibilidade biológica, indiferente às pretensas balas de prata da tecnologia. Mas há muito mais a nos confrontar do que a emergência climática e a biodiversidade. O adensamento (intensificação e maior frequência) de inúmeras crises sistêmicas, agindo em sinergia e reforçando-se reciprocamente, indicam de modo cada vez mais inequívoco a iminência de um desastre coletivo.
Esbocemos um quadro geral das mais importantes dessas crises:
Embora de tipos e naturezas muito diversas, essas crises representam facetas interligadas de uma única crise planetária da civilização a que se dá o nome de capitalismo globalizado (aí incluídas, obviamente, a Rússia e a China). Essa crise planetária pode ser melhor caracterizada como a crise de nossa civilização termo-fóssil, uma civilização baseada na queima de carbono, na destruição da biosfera, na acumulação e na concentração de capital por megacorporações, na dissociação homem-natureza, na ilusão da potenciação energética ilimitada e na ideologia de que não há outro mundo possível.
No quadro geral desse elenco de crises, a emergência climática, a aniquilação da biodiversidade, a intoxicação planetária e as guerras (com risco agora extremo de uma guerra nuclear entre a Rússia e a OTAN) têm potencial, mesmo consideradas isoladamente, para ameaçar existencialmente as civilizações humanas e a sobrevivência de milhões de espécies, a nossa incluída. Mas elas estão associadas entre si e agem em sinergia com as demais crises acima enunciadas, de modo que o caos irreversível que elas estão em vias de engendrar torna-se uma quase certeza. Ocorre que há um bloqueio cognitivo, ideológico, emocional e psicológico das sociedades em aceitar e compreender essa quase certeza. E esse bloqueio, vale dizer, o negacionismo contemporâneo em todas as suas facetas e gradações, é, ele próprio, o fator decisivo na passagem da quase certeza para a certeza. O negacionismo contemporâneo torna-se, assim, o fator decisivo a nos precipitar nesse caos. Ele é o maior responsável pela baixa reatividade das sociedades face à ruína que já começa a se abater sobre a vida na Terra. Se não houver uma revolta política das sociedades à altura da extrema gravidade dessa poliédrica crise planetária, a condenação ao pior num futuro cada vez mais próximo é inapelável.
Essa revolta política contra o caos tem por condição primeira de possibilidade a revalorização da política e a recusa de sua substituição pela guerra. Clausewitz está errado quando afirma que a guerra é a continuação da política por outros meios.[2] Essa tese é repetida ad nauseam pelos que lucram com a guerra ou, mais amplamente, pelos que a consideram inevitável, pois que resultante da agressividade de nossa espécie. Ninguém ignora que nossa espécie é extremamente agressiva e que a guerra é parte constitutiva da história humana. Mas justamente por isso a política é a mais importante invenção de nossa espécie, pois sua finalidade é dupla. Antes de mais nada, a política permite conter e controlar essa agressividade, sublimá-la e canalizá-la para o jogo de enfrentamentos extremos, mas civis e pacíficos, entre grupos sociais, entre alianças partidárias, parlamentares e eleitorais. É justa a inversão da fórmula de Clausewitz proposta por Michel Foucault, quando afirma em 1976 que “a política é a guerra continuada por outros meios”.[3]
Mas se a política é uma forma de guerra pela qual se pode evitar a guerra, ela é também a invenção pela qual é possível fortalecer o outro componente constitutivo de nossa espécie e de nossa história: a cooperação. A política permite imaginar outras formas de civilização nas quais a linguagem, a lógica, o conhecimento da experiência histórica, os padrões de causalidade, a argumentação, o direito e as aspirações à justiça têm melhores condições de prevalecer sobre nossa agressividade. Política e linguagem são duas faces da mesma moeda. Ambas constituem em geral o domínio do simbólico e do imaginário, e é delas que se faz a substância do melhor de qualquer civilização. A guerra, ao contrário, é a negação do poder da linguagem e, portanto, a desistência do projeto humano. Além de negar esse projeto, a guerra funciona, hoje, como: (1) uma poderosa alça de retroalimentação de todas as crises acima enunciadas e (2) um obstáculo fundamental a qualquer esforço de concertação entres as sociedades para atenuar os impactos atuais e vindouros das crises planetárias, de modo a torná-los menos adversos às sociedades e à vida pluricelular em geral. Hoje, mais que nunca, a guerra deve ser evitada, se temos, de fato, alguma intenção de sobreviver.
As torres gêmeas de 2001, a guerra do Afeganistão (2001-2020), os massacres da OTAN no Kosovo e sua expansão em direção ao leste europeu (1999-2009) e, sobretudo, a invasão do Iraque em 2003 pelos EUA, que engendrou as guerras sucessivas do autodenominado Estado Islâmico (2004-2019), encerraram de vez o período em que o capitalismo globalizado podia gerar ao menos a ilusão de que algum consenso político era possível. Nesse contexto de guerras, o triênio 2006-2008 vê a conjunção de três grandes crises intimamente interligadas:
(1) A ultrapassagem do pico da curva ascendente de oferta do petróleo convencional em 2006. Como afirma a Agência Internacional de Petróleo (AIE) em seu relatório de 2010: “a oferta de petróleo cru atinge um platô ondulante entre 68 e 69 milhões de barris por dia (mb/d) até 2020, mas nunca mais ultrapassa seu pico de 70 mb/d atingido em 2006, enquanto a produção de gás natural líquido (NGLs) e de petróleo não convencional cresce fortemente”.[4] A ultrapassagem desse pico da curva de oferta de petróleo convencional representa o fim da era do petróleo barato e facilmente acessível, com duas implicações: (a) um EROI (Energy Returned on Investement, ou seja, a taxa de energia recuperada por energia investida) cada vez mais desfavorável e (b) crescentes emissões de gases de efeito estufa por cada barril de petróleo não convencional extraído. Entre outros fatores mais conjunturais, a percepção do fim dessa era do petróleo barato e facilmente acessível causou um salto sem precedentes dos preços do barril do Brent (US$ 146,00 em julho de 2008). A crise financeira de 2008, em parte causada por esses preços estratosféricos, precipitou uma queda não menos brutal desses preços e, sucessivamente, uma crônica instabilidade nesse mercado, como mostra a Figura 1.
(2) A crise dos “subprimes” nos EUA foi o estopim de um colapso financeiro mundial e possivelmente de uma desestabilização irreversível da ordem financeira global, assim como um ponto de não retorno no processo de concentração de capital e renda. Nos EUA, desde 2008, como bem salienta Victoria Finkle:[5]
“O fosso entre os ricos e todos os outros também aumentou. O 1% mais rico dos americanos controla agora [em 2018] quase 40% da riqueza do país, enquanto os próximos 9% controlam quase a mesma quantidade. A grande maioria dos americanos, entretanto, viu a sua quota cair desde a crise – os 90% mais pobres detinham pouco mais de 20% da riqueza total em 2016, abaixo dos cerca de 30% no início da década de 2000.”
Outro efeito dessa crise foi a maior polarização política na sociedade norte-americana, com seus reflexos nos estados satélites da Europa. A incapacidade das sociedades de vislumbrar uma alternativa sistêmica e radical ao capitalismo causou o paradoxo maior dessa crise no âmbito político e ideológico: os protagonistas do neoliberalismo mais predatório assumiram aos olhos de segmentos importantes da sociedade a imagem salvífica de políticos “anti-sistema”. Em alguma medida, Trump, o Tea Party e a extrema-direita europeia e latino-americana (Bolsonaro, Milei etc.) são o resultado último da crise de 2008 ou, mais precisamente, do rancor das sociedades em face de um capitalismo financeiro globalizado incapaz de atender às suas mínimas expectativas de segurança econômica. Neste terceiro decênio, cresce entre os analistas do sistema financeiro internacional o temor de uma próxima crise financeira de magnitude igual ou superior à de 2008.[6]
(3) Em 2007-2008, registra-se um primeiro surto nos preços dos alimentos, repetido em 2011, decorrente de secas exacerbadas pela emergência climática, de especulação financeira sobre as “commodities” agropecuárias e de cartelização dos insumos agrícolas por megacorporações agroquímicas, surto este que gerou as revoltas da fome em mais de 40 países e a chamada primavera árabe. A Figura 2 mostra esses dois saltos (2008 e 2011) nos preços dos alimentos.
Em parte como resultado desses três fatores, rebentam a partir de 2011 as guerras ainda em curso na Síria, na Líbia (com o massacre da população civil por 7 mil incursões de bombardeio da OTAN em 2011), no Iêmen (a partir de 2014) e em diversos países da África subsaariana. Segundo a FAO, após decênios de progressos contínuos na diminuição da insegurança alimentar, inverte-se após 2014 essa tendência com maior generalização da fome, intensificada por governos neoliberais e, mais recentemente, pela pandemia, pela guerra da Ucrânia e demais guerras. A partir do terceiro decênio, guerras e conflitos armados internos ou entre dois ou mais estados nacionais alastram-se ainda mais pela África, pela Ásia e pela Europa. Alguns exemplos disso são as guerras que eclodiram entre 2021 e 2023 em Mianmar, Ucrânia, Sudão e Etiópia, bem como o genocídio do povo palestino pelo Estado de Israel com armas e apoio dos EUA e da Europa e com a mais completa indiferença dos países árabes (2023-2024). Essas guerras e as tensões crescentes entre Israel e o Irã adicionam ainda mais instabilidade à segurança energética e alimentar. O Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) inventariou 56 Estados nacionais em conflito armado em 2022, cinco a mais do que em 2021.[7] O relatório de 2024 do SIPRI registra despesas militares globais de mais de US$ 2,4 trilhões em 2023, um aumento de 6,8% em termos reais em relação a 2022 e o maior aumento desde 2009. As despesas em “defesa” dos EUA montam a US$ 916 bilhões em 2023 (US$ 778 bilhões em 2020), e dos 31 países da OTAN, a mais de US$ 1,3 trilhão ou 55% das despesas militares globais. E uma vez que armas pedem guerras, a Figura 3 mostra o alastramento global de conflitos armados a partir do segundo decênio.
Guerras entre humanos e guerra contra a natureza são as duas faces interligadas do desastre planetário em curso, com suas vítimas cada vez mais numerosas. O Internal Displacement Monitoring Centre (IDMC), de Genebra, contabiliza apenas em 2023 deslocamentos internos de 75,9 milhões de pessoas no mundo todo, o que representa um novo recorde mundial, sendo que, desse total, 68,3 milhões perderam seus locais de residência por causa de guerras e conflitos armados, e 7,7 milhões em decorrência de desastres, a maior parte deles causados ou exacerbados pela emergência climática e pelo desmatamento. O número de deslocados internos cresceu 50% nos últimos cinco anos.[8] De seu lado, o Global Report on Food Crises 2024 contabiliza 90,2 milhões de pessoas desalojadas em 2023, sendo 64,3 milhões em deslocados internamente em 38 países ou territórios e 26 milhões de refugiados em busca de abrigo em outros países, um aumento ininterrupto de vítimas desde 2013, conforme mostra a Figura 4.
O único denominador comum em meio às guerras, ao imenso sofrimento e à destruição ambiental imperante é o negacionismo, ou seja, a incompreensão de que o que está em jogo, aqui e agora, é nossa sobrevivência como sociedades organizadas e a de grande parte das espécies (das quais, de resto, dependemos existencialmente). Dito em outras palavras, as guerras e a energia dispendida em acusações mútuas e em retóricas nacionalistas de confronto relegam às calendas gregas a aplicação dos acordos globais para cessar a queima de combustíveis fósseis e a destruição da biosfera pelo agronegócio e pela mineração. A brutalidade das guerras e a estupidez das ideologias nacionalistas ocultam tragicamente a percepção do essencial: a destruição vertiginosa das bases físico-químicas e biológicas planetárias que viabilizam qualquer projeto social.
Contra essa engrenagem, que nada tem de inevitável, é preciso reagir. É preciso revoltar-se contra o negacionismo dos governantes e das corporações.
É preciso afirmar que somos capazes, como sociedades, de pôr um ponto final na procrastinação política e nesse estado de guerra permanente. Essa revolta é uma aposta numa aliança renovada entre princípios herdados da história e a imaginação de um planeta futuro habitável para os jovens de hoje e para as gerações vindouras. Ela pode se expressar em cinco pontos programáticos:
(a) a democracia, entendida como soberania popular participativa e como controle efetivo dos governantes pelos governados, tem o poder de vencer as oligarquias, sejam estas exercidas por regimes ditatoriais ou pelas engrenagens corporativas e financeiras. A política e a democracia são a única negação válida e possível da injustiça, da anomia e da guerra;
(b) as sociedades têm a faculdade de compreender seus próprios desafios, por mais complexos que sejam, e essa compreensão é um passo fundamental no processo de seu enfrentamento. Decisões coletivas racionais podem prevalecer sobre as pulsões agressivas de nossa espécie;
(c) a questão social e a questão ecológica são indissociáveis. No século XXI, elas se tornaram uma única e mesma questão, ainda pouco assimilada por setores hegemônicos das esquerdas. Em outras palavras, todo problema social só pode ser considerado resolvido se redundar em diminuição do impacto antrópico sobre o sistema Terra e se redundar também em diminuição das desigualdades entre os humanos e entre estes e as demais espécies;
(d) resolver problemas da magnitude dos que hoje nos confrontam supõe abandonar gradualismos e aceitar o desafio de empreender uma mutação civilizacional, a qual requer rupturas institucionais, com seus riscos altos e inevitáveis, dada a natureza inerentemente conflituosa do processo histórico. Essas rupturas, contudo, só serão possíveis e efetivas se forem políticas, isto é, sem intervenção de militares, setor primitivo e parasitário (US$ 2,4 trilhões em 2023) da sociedade, que pode e deve, enfim, se extinguir no curso dessa mutação civilizacional.
(e) os que consideram essa mutação civilizacional irrealista devem entender que não tentar realizá-la é ainda mais irrealista, pois a trajetória atual, com suas mudanças cosméticas e a passo de lesma, nos condena com certeza a um planeta inabitável no horizonte dos próximos decênios.
[1] Cf. Chi Xu et al., “Future of the Human Climate Niche”, PNAS, 117, 21, p. 11350-5, 26/V/2020.
[2] Cf. K. von Clausewitz, De la guerre [1832], D. Naville (trad.), Paris, 1955, p. 67.
[3] Cf. Michel Foucault, “Il faut défendre la société”. Cours au Collège de France, 1975-1976, Paris, 1997, pp. 15-16, citado por Audrey Hérisson, “Clausewitz versus Foucault : regards croisés sur la guerre”. Cahiers de philosophie de l’Université de Caens, 55, 2018, pp. 143-162: “Le pouvoir, c’est la guerre, c’est la guerre continuée par d’autres moyens. Et à ce moment-là, on retournerait la proposition de Clausewitz et on dirait que la politique, c’est la guerre continuée par d’autres moyens”.
[4] Cf. AIE, World Energy Outlook, 2010, p. 48. Disponível aqui.
[5] Cf. Victoria Finkle, “The crisis isn’t over”, American Banker, 2018. Disponível aqui.
[6] Cf. A. Leparmentier, “Aux États-Unis, les nuages d’une crise financière s’amoncellent à l’horizon”. Le Monde, 1/VI/2024.
[7] Cf. Stockholm International Peace Research Institute, SIPRI Yearbook 2023. Armaments, Disarmament and International Security, SIPRI, 2023. Disponível aqui.
[8] Cf. “Conflicts drive new record of 75.9 million people living in internal displacement”. IDMC, 14/V/2024.
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Negacionismo: a escolha da ignorância ante o colapso planetário. Artigo de Luiz Marques - Instituto Humanitas Unisinos - IHU