18 Mai 2018
A obra é uma transcrição de uma conferência do filósofo protestante de 1967 sobre o sentido e a função de uma comunidade eclesial: é sempre necessária uma constante reinterpretação.
O comentário é de Marco Roncalli, publicado por Avvenire, 17-05-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Refletir sobre a função específica de uma comunidade eclesial, as suas aspirações e instâncias de sentido, a sua linguagem, o papel na Igreja e na sociedade, é o que Paul Ricoeur - como raramente encontramos nos filósofos - tenta fazer nessas páginas nascidas na véspera do Movimento de 1968, que já circularam como fotocópias nas apostilas dos alunos desse mestre da hermenêutica, mas nunca tinham chegado como edição para o grande público. Gravadas em janeiro de 1967 no Gerbe, um salão da paróquia protestante de Amiens, durante um encontro teológico de dois dias, as palavras dessa longa conferência de Ricoeur - dividida em três partes, com interlocutores católicos, protestantes e comunistas e transcritas pelo pastor Ennio Floris - foram publicadas no ano seguinte nos "Cahiers d'Etudes du centre protestante de recherche et de rencontres du nord" com o título Sentido e função de uma comunidade eclesial, que a editora Claudiana preferiu modificar agora para Per un’utopia ecclesiale (Para uma utopia eclesial, 100 páginas, € 12,50). A obra chega às livrarias com a curadoria de Claudio Paravati, Alberto Romele, Paolo Furia, e com um prefácio de Olivier Abel que considera esse trabalho "ao mesmo tempo, como um militante testemunho de um período de transição e como um teste, como laboratório de temas filosóficos, desenvolvidos, em outros lugares ou mais tarde, de forma independente", em que "vem à luz um aspecto do pensamento de Ricoeur muitas vezes negligenciado, no qual os leitores poderão perceber uma abordagem filosófica nova, radical." Abordagem em que - juntamente com muitas ideias desenvolvidas em obras sucessivas – entende-se o papel do filósofo na Igreja reformada francesa.
Com sua intervenção na "comunidade de confissão" Ricoeur detém-se na primeira parte sobre o tema "Ser protestantes hoje" (com grande atenção à linguagem); na segunda parte sobre a presença da Igreja no mundo (analisando os pontos de inserção, a capacidade de pressão, aspectos específicos da comunidade cristã); na terceira parte sobre o conflito "Fé e religião" reportando-se a Bonhoeffer, Ebeling, Fuchs, bem como à tradição da pregação primitiva e à exegese paulina. Portanto, páginas militantes de um Ricoeur então presidente do Movimento do Cristianismo Social e também da Federação Protestante, e dois anos mais tarde, reitor da Universidade de Nanterre. Páginas que retratam traços de uma Igreja contraponto de utopia dentro da sociedade, entre críticas externas da religião (Marx, Nietzsche, Freud) e desconstrução de várias pseudo-racionalizações (que escondem vívidos textos bíblicos). Não poucas passagens de grande interesse.
No âmbito da linguagem, por exemplo, sobre a palavra que não pode se tornar uma relíquia, sobrevivendo graças à constante reinterpretação: "Chamo de interpretação não só o que podemos fazer intelectualmente, mas também praticamente, socialmente, para tornar atual uma palavra que continua a ser palavra apenas se continuar a ser reconvertida em um evento, que torna a ser ele mesmo evento". No âmbito teológico, a resposta dada à pergunta "Podemos ainda pronunciar a palavra Deus?": "Não podemos mais construir teologias especulativas, sistemáticas, em que falamos de Deus como de uma causa primeira, um pensador supremo, um ser absoluto separado de todos os outros seres, mas temos que pensar sobre o que isso pode significar nas Escrituras o Deus de Jesus Cristo. Se Jesus Cristo é aquele que morre dando vida, é este ato de se esvaziar de Cristo por nós a ser o nosso único acesso a Deus". E assim "a comunidade cristã não tem nada mais a oferecer aos outros seres humanos que essa afirmação do Deus que se esvazia, da fragilidade absoluta de Deus para o ser humano, que permite o novo ser humano, e que abre uma esperança em que os seres humanos são responsáveis, cada um nos confrontos de todos". Por fim, vale assinalar aqui a passagem em que Ricoeur se pergunta sobre aquela que lhe parece ser "a função insubstituível" de uma comunidade de confissão em um tipo de sociedade como a nossa, a saber: da previsão, da decisão racional, da invasão da técnica na vida cotidiana em todos os níveis. Escreve o filósofo: "Parece-me que a razão de ser das igrejas consista em colocar permanentemente a pergunta sobre os fins, da ‘perspectiva’, em uma sociedade do ‘planejamento’.
O ‘bem-estar’? Com que objetivo? Tal pergunta atinge as razões profundas do ser humano na sociedade da produção, do consumo e do tempo livre. Esta é caracterizada por um controle crescente do ser humano sobre os meios e por um cancelamento dos seus fins, como se a racionalidade crescente dos meios revelasse progressivamente a ausência de sentido. Isto é especialmente verdadeiro nas sociedades capitalistas [...]. Deste modo torna-se manifesto o primeiro elemento da sociedade de produção: o desejo sem fim". Mas há outro sonho vão que anima o ser humano da sociedade de consumo: ou seja, "o aumento do seu poder", explica Ricoeur. E acrescenta: "Gostaríamos de anular o tempo, o espaço, o destino do nascimento e da morte, mas em um projeto semelhante tudo se torna instrumento, utensílio, no reino universal do manipulável e do descartável. É esse projeto que desemboca no vazio total de não-senso. É assim que a nossa "modernidade vive simultaneamente da racionalidade crescente da sociedade e do absurdo crescente do destino."
Uma reconfirmação da ausência de justiça entre os homens, mas ainda mais da falta de amor e de significado. E eis então que os problemas que se destacam diante de nós no sinal da “insignificância”': aquela do trabalho, do tempo livre, da sexualidade. Diante a deles a tarefa não é recriminar ou lamentar, mas testemunhar. Como? Apelando para a utopia, responde Ricoeur, que chama utopia "essa perspectiva da uma humanidade realizada, ao mesmo tempo como totalidade dos seres humanos e como destino individual de cada pessoa." É a perspectiva que pode oferecer um sentido: querer que a humanidade seja uma só, querer que ela se realize em cada pessoa. Na responsabilidade de pensar sempre um duplo destino.
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Ricoeur. "Que a palavra não seja relíquia” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU