12 Agosto 2023
"O termo 'sagrado' nunca pode ser usado tomando-se como certo que ele signifique no contexto do discurso cristão algo fundamental ou, vice-versa, execrando", escreve Giovanni Salmeri, professor de História do Pensamento Teológico na Universidade de Roma Tor Vergata, em artigo publicado por Settimana News, 09-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O debate em curso sobre a compreensão católica do ministério teve uma virada inicial que, embora colateral na economia do discurso, toca em um ponto muito importante. Hans Zollner em sua entrevista sugeriu que o terreno de cultura dos abusos na Igreja consiste na atribuição a algumas pessoas de um "poder sagrado"; Fulvio Ferrario, colocando de lado a questão dos abusos, comentou que esse é exatamente o pivô da doutrina católica da Igreja; Giuseppe Lorizio replicou que a ideia de poder sagrado é, na realidade, aquela que precisa ser abandonada em favor do conceito de ministério sacramental; e Fulvio Ferrario rebateu que não tinha nada contra a substituição do adjetivo "sagrado" por "sacramental", mas que o problema do ponto de vista da teologia evangélica permanece intacto mesmo com essa nova formulação, que aliás mantém a mesma raiz lexical.
Mas o que é o sagrado? E qual é a relação do cristianismo com ele? À custa de enormes e questionáveis simplificações, gostaria de tentar esclarecer o problema.
Se o adjetivo “sagrado” é muito comum ao longo da história do léxico cristão, com um significado nuançado que indica uma certa afinidade com Deus e com as estruturas de vida da Igreja, o caráter controverso no debate contemporâneo é relativo ao seu uso substantivo, “o sagrado”, que é de uso recente e de origem não teológica, mas sim filosófico-religiosa.
A referência obrigatória é Rudolf Otto (teólogo e filósofo da religião luterano), que, em sua grande obra O sagrado, tenta delinear o motivo mais universal que está na base de todas as experiências religiosas: aquele que se pode justamente chamar “o sagrado” e que designa o lado pré-racional da experiência religiosa, que apreende “algo” como “absolutamente outro”, sobreposto em relação qualquer poder humano, ao mesmo tempo aterrorizante e atraente, arbitrário na sua potência e ainda assim vislumbrado como um lugar de possível bem-aventurança.
Para Otto, isso não significa de forma alguma que a experiência religiosa seja em si algo irremediavelmente (ou orgulhosamente) irracional: ao contrário, a sua purificação e elevação consistem justamente em uma racionalização que, ao mesmo tempo, é moralização. Assim, por exemplo, o caráter de terror e atração é interpretado como punição do mal e amor ao bem. Na história do judaísmo, e depois no cristianismo, "o sagrado" torna-se assim um "Deus santo" (e por fim culmina, o que para um teólogo cristão é óbvio, no encontro histórico com Jesus Cristo).
O que corre o risco de escapar de uma leitura incompleta ou impaciente é o arcabouço filosófico em que se insere essa interpretação dos fatos histórico-religiosos: segundo Otto, tudo isso é uma conclusão harmoniosa da filosofia de Kant. Estamos aqui, segundo ele, na presença de uma terceira forma de razão (além da teorética e da prática), mas exatamente como para a razão teorética trata-se de identificar qual seja a forma em que os humanos organizam e interpretam os dados empíricos. O "sagrado" é precisamente essa "categoria a priori”: isso significa que não é de forma alguma uma realidade fora do ser humano, mas a necessária configuração humana em que algumas experiências são recebidas.
Embora aparentemente abstrata, essa consideração não pode ser descartada como um lastro filosófico inútil. Para um crente cristão como Otto, a grande divisão é entre a realidade criada e Deus: não há vias de meio, não existe uma mística nuvem impessoal que paira entre os homens e Deus. Existem então apenas duas possibilidades. Ou o "sagrado" é um pseudônimo de Deus: mas assim Deus seria reduzido às experiências religiosas humanas, mutáveis e muitas vezes até imorais. Ou, o "sagrado" é uma forma unitária da sensibilidade do homem, aquela que faz com que exista a experiência religiosa, apesar de todas as suas enormes diferenças e ambiguidades, até chegar à revelação cristã. É uma ideia problemática, mas que, reinterpretada de várias maneiras (e muitas vezes colocada sob rótulos diferentes do "sagrado": por exemplo, "mistério" ou "transcendência") teve um sucesso considerável, tanto em formas mais refinadas quanto em outras mais populares.
Mas é certo que o cristianismo deve ser entendido de acordo com as experiências religiosas da humanidade?
É neste ponto que o grande teólogo calvinista Karl Barth, com a teologia dialética que ele iniciou, tomará um caminho inverso. Deus é o “absolutamente outro”? Claro, ele dirá, mas este é apenas o Deus revelado por e em Jesus Cristo, que entra na história humana não completando ou refinando uma experiência religiosa anterior, mas sim negando-a, denunciando-a como ímpia e idólatra, mesmo quando é destilada nas formas filosóficas de uma "teologia racional". Se por "sagrado" entende-se o âmbito da experiência do religioso, é exatamente disso que o cristianismo radicalmente toma as distâncias.
Além de seus méritos internos (sei por experiência que as apaixonadas e severas páginas de Barth conseguem como poucas outras encantar até millenials e zoomers), há também circunstâncias externas que favoreceram o sucesso da abordagem de Barth.
A primeira é o fato de ter desempenhado um papel importante ao reivindicar a independência da experiência da fé em relação à política, em anos em que o nacional-socialismo devastava a Europa e as suas interpretações teologizantes corriam o risco de cobrir de infâmia o cristianismo: Jesus Cristo é a única palavra de Deus!
A segunda (prevista por Dietrich Bonhoeffer e depois desenvolvida após a guerra nas correntes da teologia da secularização) é que ela liberava o discurso cristão da necessidade de ter um pressuposto religioso, aliás, invertia essa necessidade: um mundo secular seria basicamente mais próximo à fé cristã do que um mundo "religioso".
Finalmente, outras vozes muito ouvidas (sobretudo Emmanuel Levinas e René Girard) contribuíram para a má fama do "sagrado", ligando-o à autoafirmação ou à violência social.
Mas, em conclusão, como se coloca o cristianismo em relação ao sagrado? Qual das duas linhas é a correta?
Nos últimos meses, duas breves intervenções na Itália abordaram diretamente esse problema de uma maneira muito interessante.
A primeira foi um sermão de Raniero Cantalamessa: partia de uma ampla homenagem à concepção do sagrado de Rudolf Otto, e à sua capacidade de interpretar também os movimentos do mundo contemporâneo, que de alguma forma não pode prescindir do sagrado... exceto para concluir (quase à maneira barthiana) que o cristianismo é exatamente a negação dessa religiosidade, porque em Cristo não se manifesta mais um "mistério de majestade e poder", mas sim uma "infinita capacidade de ficar de lado"; a reforma litúrgica teria justamente o mérito de ter eliminado um sentido do sagrado não "justo e genuíno".
O outro texto foi um artigo de Enzo Bianchi que partia (à maneira barthiana) do “tema da libertação do sagrado que a nossa fé cristã exige”, não na linha da Torá mas da crítica profética ao culto... exceto para concluir no artigo seguinte que certas "condições antropológicas" da liturgia, de natureza ritual, são absolutamente necessárias: mas o leitor atento observa que, para Otto, o "sagrado" é justamente uma ineliminável condição antropológica!
Peço desculpas aos dois autores, cuja competência e inteligência são conhecidas, por ter sintetizado seus textos de forma a fazer com que ambos pareçam bastante contraditórios. Se assim o fiz, é porque penso que essa contradição latente marca grande parte do discurso cristão contemporâneo e deveria ser objeto de reflexão crítica.
O fato é que há um excelente motivo para ligar o cristianismo ao sagrado, talvez em formas simplificadas em relação àquelas analisadas por Otto: é a forma para estabelecer uma aliança entre as religiões, de colocar em foco o pano de fundo de humanidade que elas compartilham (ou deveriam compartilhar), e também para interceptar alguma espiritualidade vaga e difundida que, se não encontra escuta na Igreja, certamente tomará o rumo de um ashram do Nepal ou algum pós-moderno faça-você-mesmo.
E há também um excelente motivo para romper todo vínculo com o sagrado: é a forma de estabelecer uma aliança com o mundo ocidental contemporâneo, no qual o abandono vertiginoso da prática do cristianismo e da partilha do seu universo de pensamento parece acima de tudo significar a perda irremediável de um determinado pressuposto antropológico, e no qual, portanto, livros como Jesus für Atheisten de Milan Machovec, na época ousados experimentos de limite, cinquenta anos depois parecem quase um devoto pós-crisma.
E assim (se é permitido brincar um pouco) a autocompreensão do cristianismo ocidental contemporâneo às vezes parece assemelhar-se, mais que com a Carta a Diogneto, àquela do Partido Comunista de Palombella rossa: “Somos iguais aos outros, somos iguais a todos, somos diferentes, somos diferentes, somos iguais aos outros, mas somos diferentes, mas somos iguais aos outros, mas somos diferentes!”.
As excelentes razões a favor e contra refletem-se depois (lex orandi!) também no campo da celebração, que é o que move ambas as intervenções que mencionamos: um excelente motivo para vincular o cristianismo ao sagrado é, por exemplo, a inculturação da liturgia cristã por meio da introdução de elementos religiosos de tradições "ancestrais", ou o inevitável louvor ecumênico à liturgia oriental (releiam-se as considerações a respeito de Francisco em sua primeira coletiva de imprensa no voo de retorno); excelente motivo para romper todo vínculo com o sagrado, como vimos, é a reforma litúrgica desejada pelo Concílio Vaticano II (para ter essa ideia em estado praticamente puro, embora não se use explicitamente a palavra "sagrado", releia-se o influente e ousado artigo com o qual Hans Küng em 1963 imaginava a "missa do futuro").
O que fazer com essa contradição sempre à espreita? Ter evidenciado um problema pode ser um resultado satisfatório para um historiador, ou um observador; mas em todo caso não significa, infelizmente, tê-lo resolvido. Pelo menos uma primeira lição, porém, creio que se possa tirar: o termo "sagrado" nunca pode ser usado tomando-se como certo que ele signifique no contexto do discurso cristão algo fundamental ou, vice-versa, execrando. De fato, por detrás dessa pequena palavra esconde-se (numa labuta inteiramente interna à civilização ocidental!) a complexa questão da compreensão da fé cristã em relação à humanidade e a qualquer humanismo. Explicar exatamente, em cada oportunidade, o que se quer dizer pode ser um pouco tedioso, mas também pode contribuir para esclarecer as questões e, se não para a fé cristã, pelo menos justamente para a humanidade.
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Sagrado sim, sagrado não. Artigo de Giovanni Salmeri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU