17 Julho 2023
Por ocasião do centenário do nascimento de René Girard (1923-2015), Bernard Perret, socioeconomista, reflete sobre o pensamento complexo e o controverso legado do antropólogo católico, que considerava o sagrado e a cultura como criações destinadas a afastar a propensão humana à violência.
Violence des dieux, violence de l’homme. René Girard, notre contemporain, de Bernard Perret (Foto: Divulgação)
René Girard completaria 100 anos em 2023. Este 100º aniversário oferece uma oportunidade para refletir sobre a obra e o legado dessa importante figura intelectual do último meio século, falecido em 2015. E o filósofo Benoît Chantre lhe dedicará uma biografia de 1200 páginas (René Girard, a ser lançada em 13 de setembro, ed. Grasset), o engenheiro e socioeconomistas Bernard Perret completou Violence des dieux, violence de l’homme. René Girard, notre contemporain (ed. Seuil), ensaio em que este membro do comitê editorial da revista Esprit, já autor de Penser la foi chrétienne après René Girard (Ad Solem, 2018), nos entrega uma emocionante "síntese crítica" em uma obra ao mesmo tempo magistral e aberta à crítica.
Violence des dieux, violence de l’homme. René Girard, notre contemporain, de Bernard Perret (Foto: Divulgação)
A entrevista é de Youness Bousennaem, publicada por Le Monde, 09-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Oito anos após a sua morte, que lugar ocupa René Girard no panorama intelectual?
Sua influência é mundial, mesmo que seja ignorado na França. É lido e comentado em todos os continentes, em particular nos Estados Unidos, onde passou toda a sua carreira universitária [mudou-se a partir de 1947 para sua tese e lecionou na Universidade de Stanford desde 1981]. Existe uma rede de pesquisadores muito ativos nos diferentes âmbitos de sua obra, desde a psicologia mimética à antropologia religiosa, sem esquecer a etnologia e os estudos literários. Em relação a esse dinamismo, Girard ocupa um espaço limitado no cenário intelectual francês, onde um conhecimento superficial de sua obra o associa vagamente às noções de bode expiatório e de desejo mimético. Os intelectuais importantes que se referem ao seu pensamento – como Jean-Pierre Dupuys, Paul Dumouchel e Benoît Chantre – são raros, e poucas teses são dedicadas a ele.
Sua figura é levada em consideração nos ambientes intelectuais conservadores, o que se explica bastante bem por seu catolicismo informal e seu pessimismo apocalíptico, unido a temas próprios da direita, como o enfraquecimento das instituições e a perda das diferenças simbólicas.
Mas não havia nele nenhuma idealização do passado. E qualquer recuperação política de seu pensamento é um contrassenso.
Nem mesmo eu tento me reapropriar dele, ainda que uma das finalidades do meu livro seja recentrar discretamente a sua herança intelectual, mostrando por que e em que sentido ele seria essencial, mesmo para os “progressistas”.
Sua obra se articula em torno da análise do sagrado e da cultura, considerados como criações destinadas a afastar a propensão humana para a violência. O que lhe inspirou esse tipo de abordagem?
Esse gesto teórico decisivo se enraíza na sua biografia. René Girard, que tinha 20 anos durante a Segunda Guerra Mundial, reconhecia ter sido habitado desde a juventude por um sentimento apocalíptico. Esse prisma o orientará para uma visão desencantada do desejo e das miragens da modernidade e, mais ainda, rumo à hipótese inovadora de uma origem conjunta do sagrado e da cultura como resposta a um risco estrutural de autodestruição violenta dos primeiros grupos humanos.
É estudando literatura que René Girard construiu a primeira fase de sua obra. Qual é a importância de seu primeiro livro, "Mentira romântica e verdade romanesca" (1961), no qual lança as bases do seu pensamento sobre o desejo mimético?
Trabalhando sobre Cervantes, Dostoievski, Stendhal, Balzac, Proust e Flaubert, Girard percebe que esses autores compartilham a mesma visão do desejo, e da propensão do ser humano em fixá-lo em objetos indicados por um mediador (um anúncio, uma pessoa que se admira, um rival...).
Por exemplo, em Madame Bovary, de Flaubert (1857), a personagem Emma imita o comportamento das heroínas dos romances populares que devora; Julien Sorel, em O Vermelho e o Preto, de Stendhal (1830) é obcecado pela figura de Napoleão, cujo comportamento tenta imitar; Dom Quixote de Cervantes (1605) quer igualar os heróis da cavalaria. Assim, o desejo põe em jogo o triângulo formado pelo sujeito, o objeto e o mediador: o indivíduo não deseja o objeto porque é bom e desejável em si, mas porque é desejado por outro, o mediador.
Apesar do esquematismo com que chegou a formulá-lo, o pensamento de Girard sobre o desejo é complexo. O que deve se notar é que essas interferências miméticas exacerbam os apetites, os instintos e necessidades pré-existentes, e conferem ao desejo seu caráter especificamente humano, sua energia criativa e sua periculosidade.
O foco de Girard na violência o levou a enfatizar que o desejo se torna rivalidade quando o próprio mediador se torna um obstáculo e um concorrente. Tudo começa com a ideia que, em sociedades sem instituição judicial, as rivalidades miméticas são passíveis de se exacerbar até provocar uma explosão de violência contagiante, capaz de destruir qualquer comunidade.
Como ele desenvolverá mais tarde a sua teoria sobre a origem violenta do sagrado e sobre o sentido do "bode expiatório"?
A violência aparece apenas nas entrelinhas em Mentira romântica e verdade romanesca. Apenas onze anos depois, em A violência e o sagrado (1972), René Girard, nesse interim nutrido por uma vasta literatura etnológica e histórica, expõe sua hipótese central sobre a origem violenta do sagrado, que faz do sacrifício a primeira resposta dada pelos seres humanos ao problema da violência.
Os primeiros sacrifícios teriam sido originalmente a ritualização de um processo de resolução de uma crise de violência mímica. O esquema é o seguinte: um caos violento (todos contra todos) leva à polarização dessa violência sobre um determinado indivíduo (a “vítima emissária”), depois à condenação à morte dessa vítima. Segue-se um retorno à calma, seguido de um sentimento de unanimidade e às vezes de uma mitificação da vítima.
Um dos "tours de force" de Girard diz respeito à sua análise dos mitos. Iniciada em A Violência e no Sagrado, depois, em Coisas ocultas desde a fundação do mundo (1978), é retomada com uma argumentação mais densa em O Bode Expiatório (1982). Ele explícita uma interpretação dos mitos e de ritos que se opõe àquela de Claude Lévi-Strauss (1908-2009): ao contrário deste último, René Girard defende que eles não são construções arbitrárias do espírito humano, mas ecos distantes da violência fundadora.
René Girard nunca esclareceu suas bases metodológicas, nem alimentou sua antropologia com um trabalho de campo. Essas críticas que puderam ser formuladas contra ele são válidas em sua opinião?
Criticar a imprecisão epistemológica de Girard é justificado, pois em sua obra há "impensados" e escolhas que requerem ser explicitadas. A sua força, ou seja, a amplidão e a coerência de seu sistema, não deixa de ter contrapartidas: o fato de ter inserido uma teoria do desejo e da violência em uma teoria da origem da cultura revela-se, conforme o caso, frutífera ou portadora de sérias limitações. Isso leva a considerar em perspectivas muito particulares realidades humanas como conflitos, sexualidade, fenômenos de dominação e violência sistêmica, ou mesmo a vida espiritual, com o risco de apagar a sua complexidade.
Seu pensamento também se baseia em fundamentos controversos, como tornar a violência primitiva uma invariante antropológica ou postular a universalidade da noção de sagrado, que, no entanto, havia sido "provincializada" pela antropologia crítica das religiões como uma criação nascida somente da cultura cristã. A obra de René Girard não teria sido talvez "distorcida" por seu etnocentrismo?
René Girard assumia uma forma de etnocentrismo e até pretendia dar-lhe uma base racional: para ele, a nossa atitude para desconstruir os mitos procede de uma inovação cultural que foi produzida no Ocidente. É porque nós não acreditamos mais na culpa de nossos bodes expiatórios que nos tornamos capazes de encontrar e analisar os mecanismos persecutórios nas nossas sociedades. Para ele, o próprio fato de a expressão "bode expiatório" ter se tornado uma metáfora compreendida por todos atesta essa capacidade. Outro índice dessa exceção ocidental é o espaço dado ao cuidado das vítimas em nossos debates. Girard nunca deixou de apontar que se trata de um indicador das sociedades influenciadas pelo cristianismo.
Quanto ao sagrado, é justamente enfrentando-o sob o prisma da violência que Girard escapa à suspeita de "provincialismo". É um fato desconcertante, quando se lê pela primeira vez A violência e o sagrado: nunca se encontra uma caracterização fenomenológica do sagrado – a que tipo de experiências subjetivas e de visões de mundo corresponde.
Isso pode ser considerado como uma falha, mas paradoxalmente também poderia ser a força de sua abordagem. Ao definir o sagrado a partir da violência como “o conjunto de postulados aos quais o espírito humano é trazido pelas transferências coletivas sobre as vítimas reconciliadoras, ao fim das crises miméticas”, situa-se aquém da diversidade das concepções e das sensibilidades espirituais, onde não se coloca a questão do etnocentrismo.
René Girard faz da Bíblia, e em particular dos Evangelhos, um evento inédito na história da humanidade, que funda a singularidade da religião cristã. Qual é a originalidade de sua leitura sobre esse ponto?
Para ele, a novidade fundamental introduzida pelos relatos da morte de Jesus nos Evangelhos não diz respeito aos fatos que são relatados – um linchamento, como inúmeros ocorreram ao longo da história –, mas a maneira de fazer dele um relato. Pela primeira vez, um julgamento de bode expiatório é contado a partir da perspectiva de uma vítima rejeitada por unanimidade por sua comunidade. Essa forma de narração, inédita segundo Girard, faz dos Evangelhos uma "revelação" no sentido antropológico e desvelamento da lógica de vitimização que rege a ordem social. Especialmente porque o ensinamento moral e o comportamento de Jesus são coerentes àquele desvelamento e contribuem para ele – quando se opõe, por exemplo, ao apedrejamento da mulher adúltera. Para Girard, o eixo do cristianismo é a superação da forma "sacrificial" de gestão da violência e o estabelecimento de uma relação isenta de violência e rivalidade, com Deus e com nossos semelhantes.
A esse respeito, uma nova falta de clareza no pensamento de René Girard, ele mesmo católico: como distinguir a dimensão científica da dimensão apologética de sua visão, que se baseia em um evolucionismo que se estende desde as sociedades primitivas, imersas na violência, até o cristianismo como estágio superior de civilização, através de sua atitude de regular a violência?
Essa mistura de gêneros se presta a críticas, é inegável. Girard pode ser criticado por nunca ter tentado esclarecer as relações entre antropologia e pensamento religioso. Articular sem confusão essas duas formas de se relacionar com a realidade é uma tarefa filosófica a que Girard nunca se dedicou. Ele defendia mais uma espécie de continuidade entre ciência e religião, argumentando que os grandes textos religiosos (sobretudo, para ele, as escrituras judaico-cristãs) e a antropologia mimética se esclarecem reciprocamente, o que certamente não pode satisfazer um filósofo ligado à autonomia da razão.
Com o tempo, o pessimismo apocalíptico de René Girard ocupou um espaço cada vez maior.
Porque você toma distância desse aspecto de seu pensamento, considerando que deveria ser “formulado de forma menos determinista”?
Girard via o cristianismo como um princípio de subversão que minava a legitimidade das instituições, e deduzia disso que a humanidade se aproxima de um momento de verdade em que terá que escolher entre a autodestruição violenta e uma conversão à não violência radical – isto é, para ele, ao amor de Cristo.
Achever Clauseviz (2007), escrito no contexto pós-11 de setembro de 2001, é, por exemplo, caracterizado pela convicção de que a violência jihadista nasce do ressentimento de rivalidade contra o Ocidente, que carrega dentro de si o desencadeamento de uma violência incontrolável. As barragens construídas para proteger-se da violência, a começar pelo direito e pela concorrência comercial que estão na base do capitalismo, segundo ele estavam atingindo os seus limites.
Considerando a situação atual, não posso dizer que aquele pessimismo seja exagerado, mesmo que essa profecia de um inelutável agravamento da violência não me parece bem fundamentada. Se a nossa situação é apocalíptica é porque a intensificação das interdependências e as restrições de sobrevivência coletivas, sobretudo ecológicas, obrigam-nos a superar novas etapas na construção de um ordem humana não violenta, e nada garante que seremos capazes de fazê-lo.
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“Segundo René Girard, a humanidade em breve terá que escolher entre a autodestruição e a conversão à não violência radical”. Entrevista com Bernard Perret - Instituto Humanitas Unisinos - IHU