11 Mai 2017
O livro Girard. Oltre il sacrificio [Girard. Além do sacrifício] reúne quatro entrevistas com o crítico e antropólogo francês falecido em 2015: um apelo às religiões para que não renovem o esquema primitivo da violência. Publicamos aqui uma antecipação a partir de um diálogo com Laurent Linneuil e Guillaume de Tanoüarn, publicado na revista Certitude em 2005.
A entrevista foi publicada no jornal Avvenire, 10-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
A exegese clássica, na leitura de Adão e Eva, insiste no pecado do orgulho, enquanto o senhor desloca essa leitura para o plano do desejo mimético...
É fácil encontrar nos textos evangélicos o fato de que Satanás é homicida desde o início: “O pai de vocês é o diabo, e vocês querem realizar o desejo do pai de vocês. Desde o começo ele é assassino” (João 8, 44; trad. Bíblia Pastoral). No capítulo 8, João nos mostra o início da cultura, ele nos diz: “Vocês se creem filhos de Deus, mas, evidentemente, vocês são filhos de Satanás, porque vocês não sabem nem mesmo como rejeitá-lo. Vocês se creem filhos de Deus em uma sucessão natural, sem suspeitar que permanecem no sacrifício”. Mas esses textos nunca são verdadeiramente lidos. O que João repreende aos judeus? Em que ele se distingue do judaísmo ortodoxo nessa repreensão? Essas são as verdadeiras perguntas...
Ele repreende aos judeus de valorizarem a sua comprovada filiação...
Sim, sem verem a sua própria violência, sem verem o pecado original, de certo modo. “‘Nosso pai é Abraão.’ Jesus disse: ‘Se vocês são filhos de Abraão, façam as obras de Abraão’” (Jo 8, 39; trad. Bíblia Pastoral). Ora, é a verdade que nos liberta. Isso leva a mostrar como o pecado original, embora não seja o caso defini-lo, está ligado à violência e ao religioso, como nas religiões arcaicas ou no cristianismo deformado pelo arcaísmo sobre o qual não chega a triunfar totalmente na história. Eu me guardo bem de definir o pecado original.
O que parece muito surpreendente é o fato de que, na Bíblia, não se sabe a razão pela qual Abel é preferido a Caim...
Pode haver, paradoxalmente, uma razão visível no Islã. Abel é aquele que sacrifica os animais e estamos nesta fase: Abel não tem vontade de matar o seu irmão, talvez porque sacrifique os animais, e Caim é agricultor. E aqui não há sacrifícios animais. Caim não tem outro meio para expelir a violência senão matar o seu irmão. Há textos realmente extraordinários no Alcorão que dizem que o animal enviado por Deus a Abraão para poupar Isaac é o mesmo animal morto por Abel para impedi-lo de matar seu irmão. É fascinante e mostra que o Alcorão, no plano bíblico, não é insignificante. É muito metafórico, mas de um poder incomparável. Toca-me profundamente.
Há cenas igualmente comparáveis na Odisseia, é extraordinário, como as do Ciclope. Como se escapa do Ciclope? Colocando-se debaixo da fera. Do mesmo modo que Isaac apalpa a pele do seu filho para reconhecer, crê ele, Jacó, assim também o Ciclope apalpa o animal e sente que não é o homem que busca e que gostaria de matar. De certo modo, o rebanho bovino do Ciclope é o que salva. Encontramos a mesma coisa nas “Mil e Uma Noites”, muito mais tarde, no mundo do Islã, e essa parte da história do Ciclope desaparece, não é mais necessária, não tem mais papel algum, mas, na Odisseia, há uma intuição sacrificial muito significativa.
O senhor disse que esse aspecto de denúncia do homicídio fundador no discurso de Jesus foi decisivamente mal compreendido: nele, lê-se antissemitismo, muitas vezes. Por que razão o evento do cristianismo, se foi tão mal compreendido, não provocou um desencadeamento da rivalidade mimética?
Pode-se dizer que isso desemboca em explosões de rivalidade mimética, em oposição de irmãos inimigos. A principal oposição de irmãos inimigos na história é justamente entre judeus e cristãos. Mas o primeiro cristianismo é dominado pela Carta aos Romanos, que diz: a culpa dos judeus é muito real, mas é a salvação de vocês. Acima de tudo, não andem por aí se orgulhando, vocês, cristãos. Vocês foram enxertados graças à culpa dos judeus. Aparece a ideia de que os cristãos poderiam se revelar totalmente indignos da Revelação cristã, assim como os judeus se revelaram indignos da sua revelação. Eu acho profundamente que, aqui, é preciso buscar o fundamento da teologia contemporânea. O livro de Dom Lustiger, La Promesse, é admirável precisamente naquilo que afirma sobre o massacre dos Inocentes e a Shoá. É preciso reconhecer que o cristianismo não tem do que se orgulhar. Os cristãos herdam de São Paulo e dos Evangelhos assim como os judeus herdam do Gênesis e do Levítico e de toda a Lei. Mas não compreenderam isso, porque continuaram se combatendo e desprezando os judeus.
Continuaram na ordem sacrificial. Mas a Cristandade não é uma contradição em termos? Uma sociedade cristã é possível? Os cristãos não são sempre contestadores da ordem de Satanás e, portanto, marginais?
Sim, eles recriaram a ordem sacrificial. Historicamente, isso é fatal, e eu diria que, ao mesmo tempo, necessário. Uma passagem brusca demais seria impossível e impensável. Tivemos dois mil anos de história, e isso é fundamental. O meu trabalho tem relação com a teologia, mas também tem relação com a ciência moderna que tudo historiciza. Mostra que a religião deve ser historicizada: ela faz dos homens seres que permanecem sempre violentos, mas que se tornam mais sutis, menos espetaculares, menos próximos da besta e das formas sacrificiais como o sacrifício humano. Pode ser que se tenha um cristianismo histórico que seja uma necessidade histórica. Depois de dois mil anos de cristianismo histórico, parece que estamos hoje em um período-dobradiça: seja abrindo diretamente para o Apocalipse, seja nos preparando para um período de maior compreensão e de traição mais sutil do cristianismo. Não podemos parar a história e não temos esse direito.
Para o senhor, o Apocalipse é o fim da história...
Sim, para mim, o Apocalipse é o fim da história. Eu tenho uma visão o mais tradicional possível. O Apocalipse é o advento do Reino de Deus. Mas se pode pensar que existam “pequenos apocalipses” ou “semiapocalipses” ou crises, isto é, períodos intermediários...
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Para além da ordem sacrificial. Entrevista com René Girard - Instituto Humanitas Unisinos - IHU