02 Março 2017
"No andar de baixo, na Mesquita de al-Azhar, no coração da universidade sunita do Cairo, há grande efervescência. Os homens do Grande Imã, o xeique Ahmad Mohammed El Tayyeb, a mais alta autoridade religiosa no mundo sunita, sobem e descem as escadas trazendo e levando documentos e mensagens." Entrevista com Ahmad Mohammed El Tayyeb, editada por Karima Moual, publicada por "La Stampa", 25-02-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
No andar de baixo, na Mesquita de al-Azhar, no coração da universidade sunita do Cairo, há grande efervescência. Os homens do Grande Imã, o xeique Ahmad Mohammed El Tayyeb, a mais alta autoridade religiosa no mundo sunita, sobem e descem as escadas trazendo e levando documentos e mensagens. Há também uma delegação da Igreja de Roma que, justamente no dia 22 de fevereiro, juntamente com os Ulemás, os eruditos muçulmanos, lançou o “Diálogo entre a Universidade de al-Azhar e o Vaticano”. Troca, divulgação da mensagem de paz do Islã, diálogo, reforma e renovação são as palavras-chave nessas paragens, onde a ameaça do radicalismo jihadista está sempre batendo à porta.
Xeique El Tayyeb, a julgar pelo calendário da universidade islâmica no Cairo, onde o islamismo e o cristianismo estão no centro de muitos eventos, pode-se falar de uma visão compartilhada entre o senhor e o Papa Francisco?
"O diálogo entre jovens muçulmanos e cristãos que al-Azhar tem promovido nos deixa felizes pela oportunidade de discutir com eles sobre questões fundamentais como a paz universal e a coexistência pacífica entre Oriente e Ocidente. Eu tenho total confiança no fato de que os jovens serão libertados do fardo do nosso passado comum, que impediu as gerações anteriores de promover uma cultura de paz e coexistência, e convidei-os para serem mensageiros de paz, misericórdia e cooperação entre as nações, ativos no combate contra o radicalismo e o ódio. Temos uma confiança ilimitada neste diálogo".
Nos últimos meses, os ulemás muçulmanos estão nos reservando verdadeiras surpresas: foi revisada a fatwa sobre a apostasia, e o senhor declarou que aos cristãos não se pode mais aplicar a instituição da dhimma, porque pertence a um contexto histórico do passado. Os cristãos estão se tornando cidadãos com plenos direitos no mundo islâmico?
"Sim. Em primeiro lugar, devemos lembrar que o Islã rejeita qualquer forma de discriminação ou segregação. Al-Azhar, com o conceito de "cidadania" em substituição ao de "minorias", nada mais faz do que ressuscitar uma antiga prática que o próprio profeta havia adotado na primeira sociedade islâmica, em Medina. Felizmente a história preservou esse documento extraordinário, uma espécie de constituição única e sem similares na história, que estabeleceu as bases de uma verdadeira convivência entre diferentes etnias e religiões em um contexto de respeito mútuo e de igualdade. Com o desenvolvimento da história política, o fator religioso tornou-se crucial na definição dos direitos e obrigações de não-muçulmanos nos confrontos do Estado; isso levou ao nascimento da "dhimma", que, no entanto, reconhecia amplos espaços aos não-muçulmanos, tanto em termos de proteção como de liberdade de culto. Hoje, esse antigo conceito já não tem mais sentido de existir porque não é mais a afiliação religiosa que define os direitos e deveres de cada um, mas sim a "cidadania".
As feministas islâmicas que hoje querem reformas sobre a herança poderiam dizer que o contexto histórico para esse caso também é diferente, pois há mulheres chefes de família, que trabalham, pagam impostos e compartilham a mesma carga econômica de um homem...
"Muitas práticas e discriminações que atingem as mulheres não são de origem religiosa, mas são o resultado de fatores sociais e tradições que o Islã, infelizmente, não foi capaz de erradicar. O Islã, na verdade, já liberou as mulheres 14 séculos atrás, com a concessão de direitos e liberdades, tais como o direito de estudar, trabalhar ou a independência material, direitos que no Ocidente só foram concedidos no século XIX. Os preceitos do Islã são de duas categorias: uma estável e permanente, que não sofre a influência do tempo ou do espaço nem está sujeita a alterações – esta, contempla principalmente a liturgia -, e a outra que é mutável e modifica-se com o passar do tempo; o ijtihad (esforço, ndr) é a ferramenta que permite adaptá-la, a partir de bases legais e teológicas previstas pelo próprio Islã. Al-Azhar está empenhada de maneira séria e integral em adequar o islamismo ao desenvolvimento da humanidade através de interpretações e de Fatwa que levem em consideração essas alterações”.
As palavras reforma e renovação são os motores de sua estratégia, mesmo assim a questão das mulheres permanece em aberto. O que vai mudar nessa frente?
"Eu não acho que a questão da mulher no Islã seja um fato problemático. No Islã, a mulher é, em todos os aspectos, companheira do homem. A poligamia, por exemplo, não é uma instituição livre, mas deve estar subordinada à justiça, não deve causar danos à primeira esposa, inclusive do ponto de vista financeiro. Quanto à questão de herança, o desequilíbrio nas divisões entre homens e mulheres diz respeito única e exclusivamente aos irmãos e irmãs, e não deve ser estendido a todos os casos em que uma mulher e um homem têm que compartilhar uma herança: há casos em que homens e mulheres recebem partes iguais, outros em que a parte da mulher é maior do que a do homem e ainda outros casos em que é apenas a mulher que herda. Quando o irmão herda o dobro da irmã, é porque o Islã procura valorizar e ajudar mais a mulher, encarregando o pai, o irmão, o marido ou o filho por sua sustentação. Seria uma injustiça igualar as partes de quem tem a obrigação de sustentar com quem tem o direito de ser sustentado”.
O senhor descreve a sociedade na época do Profeta Maomé como uma sociedade de paz e coexistência que serviria de inspiração para os dias de hoje. No entanto, o mundo islâmico está preocupado com guerras fratricidas, tanto que muitos falam de fitna, o conflito entre xiitas e sunitas. É isso mesmo?
"Ao longo de sua história, a uma islâmica nunca conheceu um conflito violento devido a diferenças religiosas ou de pensamento. Nunca houve uma guerra entre sunitas e xiitas, isso demonstra que as causas reais dessas guerras que alguns países muçulmanos estão sofrendo, decorrem de conflitos políticos construídos em torno de uma mesa por forças externas. Já declaramos isso enfaticamente em inúmeras ocasiões: Daesh e todos estes movimentos radicais não expressam absolutamente nem a essência e nem a verdade do Islã. Enfrentamos essa questão com seriedade: o que Daesh faz na Síria, no Iraque ou os ataques terroristas que perpetua no mundo são basicamente o resultado de interesses e agendas externas, que exploram as diferenças religiosas para pulverizar os países muçulmanos. Infelizmente, alguns países da região têm anseios de hegemonia e insuflam o fogo das diferenças".
A ameaça do radicalismo jihadista colocou em evidência também o Islã europeu. Como combater o fundamentalismo e islamofobia?
“Acreditamos que somente através do verdadeiro conhecimento do Islã e dos seus valores seja possível combater o fundamentalismo na Europa. Al-Azhar pode desempenhar um papel importante na formação dos imãs na Europa, para garantir que ulemás com sólida formação veiculem uma mensagem de paz e fraternidade. É nisso que as missões diplomáticas dos países muçulmanos devem empenhar-se seriamente, através de conferências e encontros que aproximem os cidadãos europeus à verdadeira essência do Islã”.
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"O verdadeiro conhecimento do Islã é o antídoto para o radicalismo" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU