09 Novembro 2015
Uma obra como a de René Girard nos obriga a nos confrontar com as características mais enigmáticas da nossa condição.
A opinião é do filósofo italiano Roberto Esposito, vice-diretor do Instituto Italiano de Ciências Humanas, em artigo publicado pelo jornal La Repubblica, 06-11-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Que René Girard foi um dos pensadores mais profundos e originais do nosso tempo é uma evidência inegável. Mudando-se da França para os Estados Unidos, ensinando por um longo tempo nas universidades John Hopkins e Stanford, onde ele morreu na quarta-feira, aos 91 anos, ele atravessou todos os campos do saber humanístico, da crítica literária à antropologia, passando pela filosofia, influenciando também os estudos de psicanálise e de exegese bíblica.
Pode-se dizer que a sua poderosa energia hermenêutica brota, como um feixe de luz intensa e penetrante, de uma intuição original, continuamente reelaborada através da análise dos textos mais variados, capaz de fornecer uma interpretação unitária de toda a experiência humana.
Trata-se de algo que desde sempre esteve diante dos olhos de todos, mas, como muitas vezes acontece, justamente por isso, permaneceu longamente escondido, que Girard remete ao caráter mimético do desejo.
Como desde a sua primeira grande obra, Mentira romântica e verdade romanesca (1961), ele reconhece nos romances de Stendhal e de Flaubert, de Proust e de Dostoiévski, que o desejo tem uma estrutura não binária, mas triangular. Ao contrário do que pensava Freud – que, com Lévi-Strauss e Durkheim, também foi, talvez, o autor que mais influenciou – Girard acredita que o desejo humano não está dirigido diretamente ao próprio objeto, mas passa pela mediação de um terceiro termo, constituído pelo desejo do outro.
Como pode ser visto também a partir da experiência comum, ainda mais na sociedade de consumo, nós desejamos aquilo que os outros desejam e precisamente por esse motivo.
Isso significa que a sociedade está, naturalmente, presa a uma violência insustentável, que só pode ser enfrentada por um poderoso dispositivo imunológico, que Girard identifica no sacrifício vitimário de um bode expiatório. Todos contra um, um no lugar de todos.
A violência, concentrada em uma única vítima, põe a salvo a comunidade inteira, protegendo-a da sua tendência natural para a autodestruição. Segundo o que o autor teoriza no seu livro mais conhecido, Violência e o sagrado (1972), a vítima, escolhida pelas suas características somáticas e, talvez, até raciais, ao mesmo tempo catalisa a crise e restaura a paz, adquirindo, assim, um status sacro.
Por milênios, a civilização se reproduziu através da repetição desse evento sacrificial, relatado por todos os grandes mitos – naturalmente, do ponto de vista dos perseguidores.
Como ainda no coração do século XX os nazistas repetiram, assumindo como vítima sacrificial um povo inteiro, apenas a sua destruição curaria o mundo de uma doença mortal.
Mas, nessa história de sangue, Girard identifica uma reviravolta decisiva no cristianismo. Os Evangelhos relatam um mito sacrificial aparentemente não diferente dos outros. Mesmo no caso da crucificação, um homem, que se proclama Deus, é cercado por uma multidão que o agride à morte, reconstituindo o seu equilíbrio em torno do seu corpo escarnecido e violentado. Mas com a diferença relevante de que, desta vez, o relato é conduzido a partir do ponto de vista da vítima.
A partir desse momento, quando sobre "coisas ocultas desde a fundação do mundo" – é o título de outro livro de Girard (1978) – se rasga o véu, tudo está destinado a mudar. Isso não significa que a violência acabou. Ao contrário, uma vez ruída a ordem sacrificial, a ameaça que pesa sobre os homens se estendeu ainda mais. Mas, com ela, também se estendeu a consciência do encantamento que nos mantém presos e, portanto, também a possibilidade de, um dia, poder despedaçá-lo.
O que Girard construiu é uma hipótese que não tem a pretensão de ser positivamente verificada de acordo com um método científico. Mas que tem, ao seu lado, não só um fascínio singular, mas também uma potência explicativa dificilmente contestável.
Hoje, quando o saber vai cada vez mais se despedaçando, a força da obra de Girard é a de uma síntese que consegue dar um sentido unitário, embora não tranquilizante, para a história humana inteira.
Mais do que contê-la, pode-se dizer que ela é contida pela violência de um desejo mimético que opõe os homens entre si, todos à caça das mesmas presas. O único modo para sair disso seria o de vencer esse instinto, abrindo-nos à lógica cristã do amor.
Certamente, não são poucas as objeções que podem ser dirigidas a essa extraordinária construção intelectual. Daquela, de ordem histórica, de que a civilização cristã certamente não produziu um número de vítimas menor do que em outras experiências, até aquela, de tipo teológico, de que o sacrifício do Filho, a partir de muitos pontos de vista, continua dentro da lógica do sacrifício.
O pressuposto do pensamento de Girard é que uma forma de desmistificação real é impossível. O que se pode fazer é inverter o mito, traçando no seu fundo escuro uma luz diferente. Os homens são fracos demais para suportar a visão da sua mesma realidade, sem tentar de modo algum esquecê-la ou negá-la.
Uma obra como a de Girard nos obrigou a nos confrontar com as características mais enigmáticas da nossa condição.
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Adeus a René Girard, os último dos humanistas. Artigo de Roberto Esposito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU