22 Abril 2017
O cardeal Gerhard Müller viajou para a Polônia no dia 19 de abril para uma conferência organizada para celebrar o 90º aniversário do Papa Emérito Bento XVI. A conferência se concentrou no seguinte tema: “O conceito do Estado no ensinamento do cardeal Joseph Ratzinger-Bento XVI”. Eu me encontrei com o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé na sede da Conferência Episcopal Polonesa, onde o hóspede do Vaticano respondeu a cinco perguntas exclusivamente para os leitores do Aleteia.
A reportagem é de Konrad Sawicki, publicada no sítio Aleteia, 21-04-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Encontramo-nos na Polônia, um país em relação ao qual alguns católicos, aqui e em toda a Europa, têm grandes expectativas. Sua Eminência, acredita que o nosso país tem uma missão especial a desempenhar?
A Europa não é só um conjunto de nações e de Estados. A Europa tem uma alma, que tem origem no cristianismo. Dentro da Europa, há nações com histórias e culturas únicas, e a partir disso devemos tirar as conclusões adequadas.
A Polônia teve a primeira constituição democrática na Europa, adotada em 1791. Mas o destino foi muitas vezes adverso à Polônia, dividida tanto como Estado quanto como nação, e ferida pelas mãos dos então Estados imperiais. A Polônia conservou a sua identidade graças à fé católica, e esta é a característica especial com a qual a Polônia deve contribuir – partindo do seu passado e presente – com o futuro comum da Europa. Devemos trilhar um caminho compartilhado, de modo que, nessa viagem, cada um possa contribuir com algo único.
Eu acho que o fato de a nação polonesa estar unida pela fé católica também é significativo para outras partes da Europa, dominadas pelo secularismo e por uma vida sem Deus, sustentada pelo materialismo.
Por sua vez, a voz da Polônia diz isto: “Não, há um sentido maior do significado da vida humana. Vemos isso na oração, em como é magnífico sermos humanos, filhos de Deus”. Isso nos projeta para a liberdade, entendida tanto como liberdade civil, quanto como liberdade pessoal do ser humano, que é o nosso objetivo último.
Parece-me essencial pensar na Europa como uma comunidade de nações. Não como Estados de autoridade, como era antes, quando os Estados individuais se viam como meras encarnações do poder e tinham ambições expansionistas às custas dos outros. Somos uma comunidade cultural, e a nossa cultura tem as suas raízes na religião cristã.
A minha segunda pergunta é sobre Medjugorje. Por causa da conclusão dos trabalhos da comissão vaticana e da missão do enviado especial do papa, o arcebispo Henryk Hoser, os fiéis esperam que, em breve, seja tomada uma decisão sobre a autenticidade das aparições. É justificada essa expectativa?
Por um lado, existem diversas iniciativas pastorais em Medjugorje. É justo e oportuno que as pessoas, onde quer que se encontrem, aproximam-se do sacramento da penitência e da reconciliação, recebam a Sagrada Comunhão e reflitam sobre a sua trajetória de vida à luz da fé. Considerando, por exemplo, a vocação ao matrimônio ou ao sacerdócio.
Por outro lado, essa experiência não diz nada sobre as supostas aparições e profecias. A Igreja tem o direito de dizer a qualquer momento – quer seja aceito ou não – se as aparições são sobrenaturais ou se, ao contrário, são fruto da imaginação das pessoas ou de visões subjetivas, de experiências religiosas subjetivas.
Mesmo que a Igreja tivesse que reconhecer esses fenômenos como sobrenaturais, nenhum cristão é obrigado a crer neles e a considerá-los como artigos de fé que levam à salvação. Os cristãos não são obrigados a reconhecê-los. O cristão individual permanece livre. Para nós, é Jesus Cristo o fundamento da Revelação, e essa é a medida da nossa fé.
As supostas aparições de Medjugorje são revelações privadas. Não devem ser excluídas a priori, mas não representam o significado da verdadeira Revelação de Deus como verdade e salvação. Jesus Cristo se apresenta a nós na vida da Igreja, está presente nos sacramentos, e é por isso que os fiéis não deveriam confiar demais nas eventuais explicações da Igreja em relação às revelaçãos privadas. Porque a verdade da Revelação não pode depender das visões mais recentes.
Nós, como Congregação para a Doutrina da Fé, indicamos se esse é um fenômeno sobrenatural, ou se não se tem a certeza de que é. Essa é uma recomendação que a Congregação para a Doutrina da Fé oferece ao papa. É o papa, como pastor supremo, que decide sobre a credibilidade desses fenômenos ou sobre a falta de credibilidade. Nem uma comissão especial, nem a Congregação para a Doutrina da Fé pode confirmar ou rejeitar o caráter sobrenatural dos fenômenos. Da nossa parte, trata-se apenas de uma recomendação.
Não é oportuno, penso eu, dar a impressão de que a comissão ou a Congregação chegaram a uma conclusão definitiva. Deve-se ver ainda.
Outra pergunta que eu gostaria de fazer diz respeito ao debate dentro da Igreja sobre a exortação Amoris laetitia, publicada há um ano. Sua Eminência, considera esse debate fecundo ou potencialmente perigoso?
A verdadeira intenção da exortação apostólica Amoris laetitia era a de colocar no centro a mensagem bíblica – na sua completude – sobre o matrimônio como sacramento e estilo de vida. Ela também se dirigia àqueles que, por várias circunstâncias, tiveram problemas na sua relação conjugal. Para que não digam: “Estes são aqueles que fazem tudo bem, enquanto os outros não nos pertencem”. Queremos que todos caminhem na estrada de quem segue Cristo e queremos ajudar para que isso seja compreendido e posto em prática.
Nesse sentido, todo debate ou disputa é positivo. Mas há também um aspecto negativo. Isto é, o debate se reduz a uma única questão, deixando de lado outros elementos de fundamental importância. Isso gera pequenas divisões e preocupações, especialmente sobre a seguinte pergunta: “O que você acha da Sagrada Comunhão para os divorciados que vivem em uniões não sacramentais?”.
Só podemos abordar essa pergunta a partir da perspectiva da plenitude do ensinamento da Igreja. O papa não mudou a Revelação, não o fará e não pode fazer. Alguns defendem que o papa mudou as bases da moral da Igreja e relativizou o sacramento do santo matrimônio. Ele não o faria e não poderia fazer.
A minha quarta pergunta diz respeito aos atuais mártires cristãos, por exemplo, da Síria, do Egito ou até da França. O Concílio Vaticano II nos encoraja a ler os sinais dos tempos e interpretá-los no seu contexto atual. O que nos diz hoje, portanto, o signum temporis dos novos mártires?
Há uma corrente segundo a qual os mártires teriam vivido apenas na época dos antigos romanos. Se pensamos nos mártires da história contemporânea, referimo-nos principalmente àqueles do século XX nos países cristãos como a Alemanha, a União Soviética e do bloco soviético.
Esse desafio reapareceu agora por causa do islamismo radical. Os países islâmicos devem tomar posição sobre as liberdades – religiosa e de consciência – e deveriam respeitá-las. Não se pode dizer: “Venho da parte de Deus e vou decidir sobre a sua vida”. Cada um de nós deve decidir, na própria consciência, se quer permanecer ou não na fé.
Isso é o que devemos aprender. Mesmo nos países ocidentais que põem em risco a liberdade de consciência, por exemplo quando uma pessoa é forçada a executar um aborto para respeitar a lei. Essa também é uma forma ligeiramente diferente de perseguir os cristãos, é a mais grave violação da liberdade de consciência. Devemos aprender novamente – também nos países ocidentais, nos Estados laicos – o que significa a liberdade religiosa e confessional.
Não podemos ficar arrogantemente indignados com os islamitas se nós mesmos não reconhecermos, plenamente e sem limites, a liberdade religiosa e confessional. É justamente esta a leitura dos sinais dos tempos: a Igreja defende os direitos humanos, sem quaisquer restrições, e a dignidade humana universal. A dignidade de todos, se assim se preferir. Nós não defendemos apenas os fiéis da Igreja Católica ou de outras Igrejas cristãs, mas defendemos cada pessoa.
A minha última pergunta diz respeito à teologia da libertação, que eu sei que é do interesse de Sua Eminência. Alguns católicos mostram uma abordagem teimosamente reticente. Qual é a essência da teologia da libertação e o que podemos aprender com os teólogos que a ela aderem?
O ponto de partida da teologia da libertação é: “Como posso pensar no amor divino diante da pobreza extrema e da injustiça que existe no mundo, na América do Sul e Central, em comunidades predominantemente católicas? Por que a fé católica não deveria contribuir com a igualdade social e a dignidade de cada ser humano?”.
A Igreja fornece uma resposta que não se assemelha à dada pelos comunistas. Os comunistas defendiam: “Neste mundo, tudo vai se tornar melhor”, e a essas promessas seguiu-se apenas o inferno. Nós, de nossa parte, dizemos: “Por meio de Deus, tudo se torna melhor”. Ao mesmo tempo, somos chamados a assumir a responsabilidade por este mundo, a nos envolvermos e a utilizar a nossa razão para fornecer educação, alimentação, abrigo e trabalho, para que haja um desenvolvimento social positivo.
Temos a Doutrina Social católica, com os seus princípios de respeito pela pessoa humana, de subsidiariedade e de solidariedade. Temos esses princípios fundamentais e, por isso, queremos ser ativos, como Igreja e como cristãos, para que a sociedade possa se desenvolver bem. Mas não em termos materialistas. O temporal é o caminho para a eternidade. Trata-se de uma união entre modo e propósito. Cristo é o Modo e o Propósito. É a Verdade e a Vida.
Para nós, membros da Igreja Católica, não há discrepância entre aquele mundo e este mundo, entre o material e o espiritual. Para nós, essa é a unidade em Cristo. Deus se fez homem. Cristo é Deus encarnado. Por isso, o homem e o divino estão unidos em Cristo.
O arcebispo Oscar Romero é um exemplo perfeito disso, um verdadeiro modelo. Na Congregação – durante o processo de beatificação – estudamos todos os seus livros, os seus escritos e as suas afirmações. Eu mesmo os li em espanhol para examinar a sua ortodoxia. Com base nisso, concedemos um nihil obstat, uma permissão que confirma que nada impede a elevação de Romero à glória dos altares.
Devemos lembrar que essa linha de pensamento é fortemente influenciada pelo Concílio Vaticano II, com a doutrina sobre as relações entre a Igreja e o mundo contemporâneo. Essa é a razão do nosso compromisso. Não só o compromisso de tornar este mundo um lugar melhor em termos materiais, mas também o compromisso de defender a dignidade humana como pedra fundamental.
Além disso, esse é o compromisso de Deus em relação a nós. Devemos lembrar o sofrimento e a paixão de Jesus Cristo sobre a cruz, por nós e por este mundo. A Sua Ressurreição nos oferece a esperança de criar um mundo melhor, onde as crianças recebam uma boa educação, onde existem oportunidades de desenvolvimento e onde sejam valorizados os carismas e os talentos... Devemos lembrar o supremo horizonte: o nosso Deus, Criador deste mundo.
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Amoris laetitia, Medjugorje, Islã e teologia da libertação: “O papa não mudou a Revelação”. Entrevista com Gerhard Müller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU