"Após alguns anos nada ruins, o conjunto das evoluções tecnológicas, quer sejam menores (vídeo por demanda, pagamento sem contato) ou maiores (teletrabalho, compras por internet, redes sociais), tiveram como principal consequência (como principal objetivo?) diminuir os contatos materiais, sobretudo humanos. A epidemia de coronavírus oferece uma magnífica razão de ser para esta forte tendência: uma certa obsolescência que parece estremecer as relações humanas".
O comentário é de Michel Houellebecq, escritor, em carta aberta enviada ao canal de televisão France Inter. A tradução é de Fagner França e a revisão é de Edgard Carvalho.
É a primeira vez que se pronuncia desde o início da pandemia. Nesta carta, ele recusa a ideia de advento de um mundo novo após a crise.
É preciso confessar: a maior parte dos emails trocados nestas últimas semanas tinha por objetivo principal verificar se o interlocutor não havia morrido, nem estava a ponto de. Mas, verificação feita, a gente tentava mesmo assim dizer coisas interessantes, o que não é fácil, porque esta epidemia tem a proeza de ser ao mesmo tempo angustiante e entediante. Um vírus banal, aparentado de forma pouco prestigiosa a obscuros vírus gripais, a condições de sobrevivência mal conhecidas, a características mutáveis, tanto benignas quanto mortais, mesmo não sendo sexualmente transmissível. Em suma, um vírus sem qualidades. Esta epidemia faz alguns milhares de mortos todos os dias no mundo, mas produz uma curiosa impressão de ser um não-acontecimento. Meus prezados colegas (alguns mesmo estimáveis) não falam muito dele, preferem abordar a questão do confinamento. É nesse sentido que eu gostaria de deixar aqui minha contribuição para algumas de suas observações.
Frédéric Beigbeder. Um escritor de toda forma não vê muitas pessoas. Ele vive como um ermitão com seus livros. O confinamento, portanto, não muda muita coisa. Concordo, Frédéric. A questão da vida social não quase nada. Mas há um ponto que você esquece de considerar, Frédéric (sem dúvida porque, vivendo no campo, você é menos vítima de proibições): um escritor tem necessidade de caminhar.
Este confinamento me parece a ocasião ideal para retomar uma velha querela Flaubert-Nietzsche. Em algum lugar (não lembro onde) Flaubert afirma que só pensamos e escrevemos bem quando sentados. Protestos e deboches de Nietzsche (também não lembro exatamente onde), que chega a tratá-lo de niilista (isso se passa numa época em que ele já começava a empregar essa palavra a torto e a direito). Ele mesmo concebeu todas as suas obras caminhando, tudo que não é concebido em movimento não presta. Além disso, ele sempre foi um dançarino dionisíaco etc.
Pouco suspeito de simpatia exagerada por Nietzsche, devo contudo reconhecer que, no momento, é mais ele quem tem razão. Tentar escrever quando não temos a possibilidade, durante o dia, de se entregar a algumas horas de caminhada é fortemente desaconselhável. A tensão nervosa acumulada não se dissipa, os pensamentos e imagens continuam a rondar dolorosamente em volta da pobre cabeça do autor, que fica facilmente irritável, às vezes louco.
A única coisa que conta realmente é o ritmo mecânico, maquinal, da marcha, que não tem por principal razão de ser fazer aparecer ideias novas (ainda que possa, em determinado momento, produzi-las), mas de acalmar os conflitos induzidos pelo choque das ideias nascidas na mesa de trabalho (e é nisto que Flaubert não está totalmente errado); quando ele nos fala de suas concepções elaboradas sobre os declives rochosos e das pradarias de Engadine etc., Nietzsche divaga um pouco: salvo quando escrevemos um guia turístico, as paisagens percorridas têm menos importância que a paisagem interior.
Catherine Millet. A situação presente a fez pensar sobre o caráter “antecipador” de um de meus livros, A possibilidade de uma Ilha.
Sobre isso, não pensei em fazer aproximações, porque é tudo bastante claro. Em todo caso, quando penso nele, é exatamente isto que tinha em mente à época, em relação à extinção da humanidade. Nada parecido com um filme espetaculoso. Alguma coisa mais morna. Os indivíduos vivendo isolados em seus celulares, sem contato físico com seus semelhantes, apenas algumas parcas mensagens trocadas por computador.
Emmanuel Carrére. Livros interessantes nascerão inspirados por este período? Ele se pergunta.
Me pergunto o mesmo. Mas no fundo não acho isso. Sobre a peste tivemos muitas coisas. Durante séculos a peste interessou bastante aos escritores. Agora, eu tenho dúvidas. Desde já, eu não acredito meio segundo em declarações do tipo “nada será como antes”. Ao contrário, tudo será exatamente igual. O desenrolar desta epidemia é mesmo absolutamente normal. O Ocidente não é para a eternidade, de direito divino, a zona mais rica e mais desenvolvida do mundo. Isso acabou, já faz algum tempo, não é nenhum spoiler. Se examinarmos, mesmo em detalhes, a França saiu-se um pouco melhor que a Espanha e que a Itália, mas não tão bem quanto a Alemanha. Aqui também não há nenhuma surpresa.
O coronavírus, ao contrário, deverá ter por principal resultado acelerar algumas mutações em curso. Após alguns anos nada ruins, o conjunto das evoluções tecnológicas, quer sejam menores (vídeo por demanda, pagamento sem contato) ou maiores (teletrabalho, compras por internet, redes sociais), tiveram como principal consequência (como principal objetivo?) diminuir os contatos materiais, sobretudo humanos. A epidemia de coronavírus oferece uma magnífica razão de ser para esta forte tendência: uma certa obsolescência que parece estremecer as relações humanas.
Isso me faz pensar numa comparação luminosa que destaquei em um texto anti-PMA [referência à Procriação Medicamente Assistida. N.T.] redigido por um grupo de ativistas chamado “Os chimpanzés do futuro” (eu descobri estas pessoas pela internet; eu jamais disse que a internet só tinha inconveniências). Eu os cito: “Em breve, ter filho de forma livre e aleatória parecerá tão sem sentido quanto pegar carona sem um aplicativo no celular”. Carona amiga, locação de carros, temos as utopias que merecemos, mas enfim, deixa pra lá.
Da mesma forma, seria falso afirmar que redescobrimos o trágico, a morte, a finitude etc. A tendência depois de mais de meio século, como bem descrita por Philippe Ariès, é de enganar a morte enquanto possível. E, realmente, a morte nunca foi tão discreta quanto nas últimas semanas. As pessoas morrem sós em seus leitos de hospital, nós as enterramos imediatamente (ou as incineramos? A incineração está mais do que nunca no espírito do tempo), sem convidados, em segredo. Mortes sem testemunhas, as vítimas se resumem a uma unidade estatística de mortos cotidianos, e a angústia que se espalha pela população à medida que o total aumenta tem alguma coisa de estranhamente abstrata.
Um outro número teve bastante importância nestas semanas, aquele da idade dos doentes. Até quando será conveniente reanimá-los e cuidá-los? 70, 75, 80 anos? Isso depende, aparentemente, da região do mundo onde a pessoa vive. Mas jamais, em todo caso, nós exprimimos com tanta tranquilidade e impudor o fato que a vida de todos não tem o mesmo valor; que a partir de uma certa idade (70, 75, 80 anos?) é um pouco como se já estivéssemos mortos.
Todas estas tendências, tenho dito, já existiam antes do coronavírus. Elas apenas se manifestam com uma nova evidência. Não nos encontraremos, após o confinamento, em um mundo novo. Ele será o mesmo, ou um pouco pior.