06 Dezembro 2017
Até certo momento o percurso humano e intelectual de Massimo Recalcati foi típico de sua geração: a educação católica, então o encontro com o pensamento de Marx e Nietzsche, finalmente, a prática da psicanálise que marca ainda mais a distancia da tradição cristã. "O que eu não tinha previsto - diz ele - é que fosse justamente a psicanálise a me fazer redescobrir o Evangelho".
Foi o que aconteceu há alguns anos, na época da publicação de Cosa resta del padre? (O que resta do pai? [em tradução livre], Cortina, 2011), um ensaio que marca um ponto de virada na produção de Recalcati e ao qual somaram-se, mais tarde, títulos como Non è più come prima (Não é mais como antes [em tradução livre], 2014), sobre o tema da traição e do perdão, e Il segreto del figlio ( O segredo do filho [em tradução livre], Feltrinelli, 2017), no qual a parábola evangélica do "filho perdido" torna-se uma oportunidade para sair dos limites do complexo de Édipo. "Eu estou tentando trazer à luz as raízes bíblicas da psicanálise - explica Recalcati - geralmente pouco percebidas pelos próprios psicanalistas". Também se insere nessa trajetória Contro iIl sacrifício (Contra o sacrifício [em tradução livre], Cortina, páginas 148, euro 13,00), o ensaio no qual Recalcati aprofunda ainda mais a relação entre psicanálise e cristianismo. "Em comuns - sintetiza – têm o objetivo de sacrificar o sacrifício".
A entrevista é de Alessandro Zaccuri, editada por Richard Zaccuri, publicada por Avvenire, 03-12-2017.
Sim, mas o cristianismo não pode abrir mão da cruz.
A cruz é precisamente o lugar onde o sacrifício foi superado uma vez por todas. Não tanto na perspectiva do “bode expiatório" estudado por René Girard, mas naquela da Lei e cujo cumprimento é anunciado e realizado por Jesus. O problema, no máximo, é que do cristianismo acabou por se difundir uma visão completamente diferente, centrada justamente na necessidade e consequente exaltação do sacrifício: uma interpretação culpabilizante, que não consegue reconhecer como na cruz seja colocado à morte o próprio sacrifício.
Assim não se corre o risco de separar o cristianismo de sua história?
Não, porque essa leitura da cruz como libertação e não como condenação pertence a uma linha de pensamento teológico que de Agostinho chega ao século XX, passando por Tomás de Aquino e Kierkegaard. Uma sensibilidade da qual me sinto muito próximo e que a psicanálise deveria olhar com mais atenção, valendo-se da reelaboração da lição de Freud operada por Jacques Lacan.
Isso significa que o sacrifício perde todo valor?
A questão é outra e diz respeito à ambiguidade entre doação e sacrifício, a propósito das quais poderiam ser valiosas as observações de Nietzsche sobre as patologias características do chamado "homem religioso". Digo-o claramente: não compartilho a interpretação que Nietzsche oferece do cristianismo, mas na sua análise existem elementos ainda hoje muito válidos. O sacrifício, em especial, ainda é parte da lógica da troca, em um contexto de economia manipulada pela qual o sofrimento atual seria o penhor de uma compensação futura. Mas essa expectativa esvazia o próprio ato de qualquer significado, porque o submete a um mecanismo de retribuição. A doação, ao contrário, subtrai-se dessa lógica, porque é o ato que encontra em si a sua razão de ser, em uma dimensão de dedicação absoluta sob cujo modelo o próprio Nietzsche coloca a relação entre mãe e filho. E isso é exatamente o que acontece na cruz, após ter sido prefigurado no sacrifício de Isaac.
Você pode ser mais específico?
Existe um motivo para esse episódio do Antigo Testamento ter apaixonado tanto pensadores como Kierkegaard e Derrida, e é a sua natureza de sacrifício suspenso. A mão de Abraão não desfere o golpe, porque aqui a verdadeira vítima não é Isaac, mas o dispositivo do sacrifício. Dessa forma, o filho coloca-se como o “insacrificável”, para usar uma expressão cara a Jean-Luc Nancy. Aqui, o fato de que o homem, em sua singularidade, seja subtraído para sempre do sacrifício representa, em minha opinião, a mais importante aquisição política de cristianismo.
Por que política?
Porque a mística do sacrifício está na base de todas as ideologias totalitárias, do nazismo ao stalinismo, até os fundamentalismos dos nossos dias. No momento em que percebemos que, nesse sentido, o "espírito de sacrifício" é alheio ao cristianismo, torna-se impossível suprimir o homem em nome de um suposto ideal. Mais profundamente, o fato de reconhecer em cada homem o rosto de Deus nos permite estabelecer relações recíprocas livres e frutíferas, que se fundamentam na consciência do caráter insacrificável da singularidade de cada um.
Como a psicanálise intervém nesse processo?
A psicanálise não é uma alternativa ao cristianismo, e nem se coloca em conflito em relação ao caminho da libertação do qual o Evangelho dá testemunho. Vamos pensar no que Lacan afirma a respeito do Pai, ressaltando que sua tarefa consiste em ''unir e não se opor ao desejo da Lei". Expresso em outra linguagem, ainda é o tema evangélico do cumprimento da lei que se impõe, em uma dimensão de doação e não de sacrifício. “Unir e não opor”, aliás, parece-me um mandamento particularmente urgente nesse nosso tempo. Também no que diz respeito às relações entre cristianismo e psicanálise vale o convite do Papa Francisco para construir pontes em vez de muros.
Quais páginas do Evangelho você considera mais marcantes?
Além daquela do filho perdido, sempre me intrigou a parábola dos trabalhadores da décima hora. Lembro-me de como, quando criança, resultasse para mim espontâneo me solidarizar com as reivindicações sindicais, se assim quisermos chamá-las, dos trabalhadores que tinham se sacrificado sob o sol desde a manhã. Mas na realidade não é isso que interessa ao patrão. A ele importa que cada trabalhador tenha respondido à chamada: que tenha agido em conformidade com o desejo que o habita, para repetir uma famosa frase de Lacan. Onde "desejo", como é evidente, não é absolutamente sinônimo de pulsão irrefreável, mas remete à esfera da chamada e do cumprimento. Da vocação, enfim. Jesus declara isso com força através de outra parábola, a dos talentos. Esconder embaixo da terra a moeda recebida equivale a não agir em conformidade com o desejo autêntico que nos habita.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Além da lógica do sacrifício - Instituto Humanitas Unisinos - IHU