05 Janeiro 2023
"Para Jesus e para os profetas como Isaías, o verdadeiro sagrado está no centro de nossa história humana. Não está naquilo que é separado, codificado, apenas nas mãos de poucos. Não pode ser manipulado, mas é onde se constrói o 'nós' de uma verdadeira humanidade, em comunhão com toda a criação".
O artigo é de Jean-Claude Thomas, cofundador do Centre Pastoral Halles-Beaubourg com Xavier de Chalendar, de 1975 a 1983 e presidente do Arc-en-Ciel desde 2003, onde convidou frequentemente Joseph Moingt e animou com ele várias sessões de 2006 a 2013, publicado por Saint-Merry Hors-les-Murs, 31-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O dicionário Larousse define o sagrado assim: "Que pertence ao âmbito separado, intangível e inviolável do religioso e que deve inspirar temor e respeito (por oposição ao profano)".
Mas Jesus, seguindo os profetas, modifica profundamente essa noção. E esse questionamento é um dos principais motivos do embate que levou à sua morte: o conflito com os religiosos de Jerusalém, sacerdotes, escribas e fariseus.
Para aqueles que Jesus enfrentou, o sagrado, “o espaço de Deus” é, prioritariamente, o espaço do culto e do Templo. Mas também todas as regras que estão associadas à reverência prestada a Deus e que inscrevem a relação dos homens com Ele prioritariamente nos ritos a observar, nas leis que regem o comportamento e em particular, naquele mundo judaico, as regras de pureza.
Jesus, nos seus gestos e na sua palavra, mostra que, para ele, o verdadeiro “espaço de Deus” não é aquele.
Contesta as regras e as exclusões que são a norma no espaço do Templo. Ele expulsa os mercadores de animais, embora essenciais para os sacrifícios, e declara: “Tirem isso daqui! Está escrito: ‘A minha casa será chamada, por todas as nações, casa de oração." Mas vós a tendes feito covil de ladrões!” (Mc 11,17).
Para além daquele gesto, estende o questionamento também ao código de pureza, à exigente observância do Shabat, às leis que regulam a alimentação e as relações dos judeus com os não-judeus.
Em primeiro lugar, ele os sacode com seu comportamento: convida-se para a casa de Zaqueu, que é o primeiro a se surpreender ao vê-lo transgredir a lei que proíbe a convivência com os publicanos, impuros e pecadores (Lucas 19:7 ). Jesus fala com a Samaritana, que também fica surpresa: “Como! Sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, uma mulher samaritana?” - porque os judeus não se comunicam com os samaritanos (João 4,9).
Critica abertamente o estado de espírito que acompanha o respeito escrupuloso a essas leis e dirige-se a quem se declara a favor delas com estas palavras: Na cadeira de Moisés estão assentados os escribas e fariseus... Pois atam pesados fardos e difíceis de suportar e os põem aos ombros dos homens; eles, porém, nem com seu dedo querem movê-los... Mas ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais nem dexais entrar aos que estão entrando! (Mateus 23, 2... 13).
Em vez disso, ele diz de Zaqueu: "Ele também é filho de Abraão" (Lucas 19,9). E declara à Samaritana: “Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai... Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem. Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade." (João 4,21-24).
É por isso que Jesus vê se levantarem contra ele os partidários e defensores do sagrado tradicional. Porque convida a perceber que o "espaço de Deus" não está onde eles o colocam, mas no coração das relações entre os homens e, em particular, na aplicação do segundo mandamento, "Amarás o teu próximo como a ti mesmo", semelhante ao primeiro.
O exemplo mais claro é a "Parábola do Bom Samaritano". Em primeiro lugar, Jesus inverte a pergunta que lhe é feita: "Quem é o meu próximo?". E a transforma em: “Quem é o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?”.
Na parábola, ele coloca em cena homens do sagrado que privilegiam o respeito aos códigos em detrimento dos gestos urgentes a realizar, fazendo o contrário do que este segundo mandamento os convida a fazer: “Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. E, ocasionalmente descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. E de igual modo também um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo” (Lucas 10,30-32).
Por que eles agem assim? Hoje diríamos: “Por falta de compaixão”. Mas para os ouvintes de Jesus, é outra coisa. Jesus fala de um sacerdote e de um levita. Para eles, tocar alguém coberto de sangue significava contrair impurezas e tornar-se inapto para as funções religiosas. Quem é aquele que encontra os gestos corretos, adequados à situação, "os gestos que salvam" poderíamos dizer? Um samaritano que passava por lá!
O que está de acordo com Deus passa pelas mãos de um herege! O sagrado não está onde o sacerdote e o levita o colocam, mas nos gestos de compaixão daquele homem que só tem os seus olhos para ver e as suas mãos para sustentar.
Nesta história, estamos no cerne do segundo mandamento, que Jesus coloca no mesmo nível do primeiro! Mas suas palavras certamente criaram surpresas em seus ouvintes. E naturalmente não deixaram de escandalizar os sacerdotes e os levitas diretamente envolvidos.
O enorme risco que Jesus assume ao se expressar assim diante da multidão é o risco de sua própria vida. Estou convencido de que o primeiro motivo de sua prisão e de sua condenação à morte é o que, em suas palavras e em seu modo de agir, é percebido como uma blasfêmia. Como? O verdadeiro Deus não seria mais aquele que se sente honrado pela multiplicidade de sacrifícios oferecidos pelas mãos dos sacerdotes e dos levitas? Como? O verdadeiro Deus não seria mais aquele que tem preferência pelos "justos" que respeitam as prescrições religiosas?
Pois bem não! Todos os gestos e palavras de Jesus o mostram. Essa inversão está em sintonia com as palavras proferidas muitos séculos antes por Isaías (58,2-12):
"Todavia me procuram cada dia, tomam prazer em saber os meus caminhos, como um povo que pratica justiça, perguntam-me pelos direitos da justiça, e têm prazer em se chegarem a Deus, Dizendo: Por que jejuamos nós, e tu não atentas para isso? Por que afligimos as nossas almas, e tu não o sabes? Eis que no dia em que jejuais achais o vosso próprio contentamento, e requereis todo o vosso trabalho.
Eis que para contendas e debates jejuais, e para ferirdes com punho iníquo; não jejueis como hoje, para fazer ouvir a vossa voz no alto.
Seria este o jejum que eu escolheria, que o homem um dia aflija a sua alma, que incline a sua cabeça como o junco, e estenda debaixo de si saco e cinza? Chamarias tu a isto jejum e dia aprazível ao Senhor?
Porventura não é este o jejum que escolhi, que soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras do jugo e que deixes livres os oprimidos, e despedaces todo o jugo?
Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres abandonados; e, quando vires o nu, o cubras, e não te escondas da tua carne?
Então romperá a tua luz como a alva, e a tua cura apressadamente brotará, e a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do Senhor será a tua retaguarda.
Então clamarás, e o Senhor te responderá; gritarás, e ele dirá: Eis-me aqui. Se tirares do meio de ti o jugo, o estender do dedo, e o falar iniquamente;
E se abrires a tua alma ao faminto, e fartares a alma aflita; então a tua luz nascerá nas trevas, e a tua escuridão será como o meio-dia".
Essas palavras são válidas para nós todas as vezes que cantamos: "A tua escuridão será como o meio-dia".
Para Jesus e para profetas como Isaías, o verdadeiro sagrado está no coração da nossa história humana. Não está naquilo que é separado, codificado, apenas nas mãos de poucos. Não pode ser manipulado, mas é onde se constrói o "nós" de uma verdadeira humanidade, em comunhão com toda a criação.
O sagrado, diz Joseph Moingt, “está situado antes de tudo na relação com os outros: porque o espaço sagrado não é o templo material. O espaço sagrado, lemos em São Paulo, é o nosso corpo, o nosso corpo individual e é o corpo social que formamos uns com os outros”.
E alertando para o risco para os cristãos de fazer do pão eucarístico o sagrado por excelência, prossegue:
“O espaço sagrado é aquele que Paulo chama de corpo de Cristo. E o que é o corpo de Cristo? Bem, é a soma daqueles que se unem para irradiar a fraternidade ao seu redor, dos cristãos reunidos pelo amor, pela lembrança de Jesus.
Quando, em Coríntios 11, São Paulo relata a instituição da Eucaristia nos convida respeitar o corpo de Cristo. O comentário tradicional é reconhecer que a eucaristia é o corpo de Cristo, o corpo individual de Cristo. Mas não, esse não é o pensamento de Paulo de forma alguma. O que nos diz?
Quando vocês se reunirem para comemorar a lembrança do Senhor, esperem uns pelos outros. Não comecem a comer assim que chegarem sem cuidar daqueles não estão e que chegarão por últimos. Esperem uns aos outros.
A Eucaristia ensina-nos a respeitar o corpo que formamos quando nos reunimos em torno de Jesus. É o corpo de Cristo que nos liga na memória de Jesus, na sua lembrança e na sua espera, na espera do Cristo que há de vir. Ou seja, com todos aqueles homens que nos cercam, que também são chamados a entrar no corpo de Cristo, para formar uma só humanidade conosco. Esta é a verdadeira maneira de entender o sagrado cristão.
Assim, o próprio Jesus secularizou o sagrado. O sagrado não é o templo de pedra, o sagrado é o corpo que a multidão forma, a multidão daqueles que aprendem a comportar-se uns com os outros como irmãos. Para fazê-lo também com aqueles que não estão presentes... mas também são filhos do mesmo Pai...” (J. Moingt, L'humanismo évangélique, Encontro da Comunidade Cristã na Cité de 27 de março de 2011).
Em outras palavras, o sagrado está presente em nossas vidas. Não na medida em que respeitamos os espaços ou os ritos e fazemos o que a liturgia nos prescreve, mas na medida em que traduzimos a proximidade de Deus nas nossas ações, tornando-nos artífices da paz, partilhando o nosso pão, tornando-nos próximos dos doentes e acolhendo o estrangeiro, dispostos a sermos nós mesmos transformados por este "estar próximos" (Jorge Semprun, “L'Ecriture ou la vie”).
Sobre esse ponto, não se pode ser mais claro do que o Evangelho é. Caso contrário, trairíamos o Evangelho.
Jesus convida a viver ao máximo essa mudança, a harmonizar as nossas percepções, as nossas reflexões e os nossos comportamentos com esta “migração do sagrado” que suas palavras e atos testemunham.
Percebemos a atualidade desse tema quando notamos os debates e os questionamentos presentes na Igreja hoje. Em particular no questionamento sobre o que fez do sacerdote “o homem do sagrado”, conferindo-lhe um lugar que constitui um obstáculo a qualquer evolução da partilha das responsabilidades entre sacerdotes e leigos, entre homens e mulheres. Conferindo-lhe também uma aura que está na origem das turvas influências e dos abusos.
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Onde está o “sagrado”? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU