24 Agosto 2021
"Se a salvação importa, tanto aos olhos do Papa Francisco como aos de Joseph Moingt, não é a salvação individual nem a mera salvação das almas, mas a salvação de toda a humanidade, compreende-se a urgência mobilizadora que o Papa Francisco expressa com força na Laudato Si' e em Fratelli Tutti", escreve Jean-Claude Thomas, Co-fundador do Centre Pastoral Halles-Beaubourg, com Xavier de Chalendar, de 1975 a 1983, Presidente da Arc en Ciel desde 2003, e que freqüentemente convidava Joseph Moingt e conduziu várias sessões com ele, de 2006 a 2013, em artigo publicado por Saint-Merry-Hors-les-Murs, 12-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Deus companheiro do homem? Não é abusivo dizer isso? Deus não é o Totalmente Outro? Mas não, porque nada está mais próximo do homem do que aquelas sementes de humanidade semeadas pelas palavras ditas em nome do Altíssimo”.
Ecoando as palavras escritas por Joseph Moingt e repensando ao Antigo Testamento, uma coisa me impressiona. Tudo acontece, com o Deus da Bíblia e dos profetas, como se ele tomasse a humanidade pela mão para avançar com ela no caminho que conduz à sua verdadeira identidade.
Deus companheiro do homem? Deus que precede o homem em seu caminho? Não é abusivo dizer isso? Deus não é justamente o Altíssimo, o Totalmente Outro? Não deveríamos marcar distâncias e dizer que Deus está longe do homem? Deus longe do homem? Sim, no sentido em que o invisível sempre nos escapa. Mas não, porque nada está mais próximo do homem do que as sementes da humanidade semeadas pelas palavras ditas em nome do Altíssimo.
Pode-se dizer que o homem não nasce humano, ele se torna humano. E a palavra de Deus o precede neste caminho. Torne-se humano superando muitas soleiras, como o despertar da mente e do coração de uma criança. A criança vive das aprendizagens nas quais a palavra desempenha um papel essencial, toma consciência de si mesma através das relações com os outros, é precedida em seu caminho por pessoas com competências e conhecimentos.
A humanidade surge assim combinando dois eixos: a relação com o visível - as relações entre seres humanos - e a relação com o invisível, a relação com o Totalmente Outro. E os momentos-chave desta longa jornada são aqueles em que esses dois eixos se encontram: o Código de Hammurabi, o Decálogo, as Bem-aventuranças, o grande afresco do capítulo 25 do Evangelho de Mateus.
Deus se revela como o melhor educador do homem. Sei o quanto perigosa é esta afirmação quando assumida por extremistas de qualquer tipo, daqueles que querem que o homem permaneça um eterno "infante", um ser sem palavra pessoal, incapaz de encontrar o seu caminho e que deve a sua salvação apenas à aplicação literal de um código.
Mas Deus não é um educador que coloca o homem em cativeiro ou o relega a isso. Deus não sabe o que fazer com sujeitos submissos que só sabem obedecer. Deus, no sentido nobre da palavra, é o interlocutor do homem que busca o seu caminho, que está pronto a ouvir e se deixar instruir para encontrá-lo. Uma plenitude de vida na qual se concretiza o que constitui a sua originalidade como homem: a sua inteligência, a sua liberdade, a sua criatividade, a sua capacidade de amar, a qualidade dos seus sentimentos, o seu cuidado pelo bem comum e pela construção da paz. Paz, Shalom, Salam não significam acima de tudo "plenitude"?
Sim, não só ouso dizer "Deus nos precede em humanidade", mas chegaria ao ponto de dizer: "Só Deus é humano". Parece-que só ele nos mostra o caminho de uma plena humanidade, precedendo-nos em certo sentido no caminho, com a palavra dos profetas e através dos encontros, gestos e palavras de Jesus.
Já a história de Abraão traz o sinal deste Deus "companheiro do emergir da pessoa".
Abraão deixa seu país e o mundo de seus pais porque ouviu um chamado que é dirigido a ele pessoalmente. Ele não é representante de um povo, pelo contrário, deixa o seu povo. É alguém que se torna em certo sentido um "companheiro de Deus", companheiro na relação com um "eu" e com um "tu".
Ele parte "sem saber para onde ia" (Hebreus 11,8), e isso não é verdade apenas em termos geográficos (rumo a qual país?), mas em termos de experiência humana (o que ele viverá? o que ele se tornará?). E é essa aventura pessoal, vivida na companhia de Deus, um Deus que se revela tão próximo que pode ser contestado (ver a oração por Sodoma, Gn 18,17-33), que Paulo chama de "fé" (Rm 4).
E é essa fé que, depois de tantos paradoxos, desemboca em uma fecundidade universal.
O chamado que coloca Abraão em caminho é, em hebraico, "leikh leikha", que se traduz literalmente como "Vá em sua direção" ou "Vá por você". Isso é totalmente diferente de "Sai-te de tua terra" encontrado na maioria das traduções. O versículo do Gênesis (12,1) diz, na tradução de André Chouraqui: “IHVH-Adonai diz a Abraão: Sai por ti, da tua terra, do teu nascimento, da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei". O grande comentarista judeu medieval da Torá, Rashi de Troyes, traduz: "Sai por ti, por tua felicidade".
Marie Balmary ecoa essas palavras do Gênesis e da exegese de Rashi: YHWH não diz a Abraão: Venha até mim. Nem: Suba até mim. [...] YHWH é quem chama o homem para o homem: isso me parece um evento de incalculável significado para se tornar consciente da humanidade ... Este "Vá em sua direção" permaneceu adormecido durante séculos naquela escrita sem a maioria das pessoas tivesse acesso a ele ... ”. (L'Univers de la Bible, Ed. Lidis, 6,21).
Certamente muito precoce para ser entendido, "este chamado divino não foi mantido em seu significado profundo por aqueles que queriam transmitir Deus", e foram necessárias as agruras da história e uma infinidade de conflitos para que nós o redescobríssemos.
É a isso que Joseph Moingt chega quando fala de salvação: “Salvação ... é em relação ao ato criador nascido do desígnio divino. Deus quer salvar na totalidade a humanidade criada à sua imagem, elevando para si o espírito e a liberdade dos homens e reunindo-os todos na unidade do seu amor ... E a palavra do Evangelho ... traz aos corações o Espírito que coloca no caminho da salvação todos aqueles que, cedendo às suas poderosas solicitações, assumem a tarefa de realizar aquilo para o que os seres humanos foram criados. Desejando cooperar para essa salvação universal, a Igreja cuida, não de si mesma ou da salvação de alguns, mas da humanidade do homem, porque é verdadeiro demais que essa humanidade está doente, escravizada por apetites de poder, de lucro e de prazer, vítima de seus próprios medos e de seus próprios ódios, desviada de seus fins transcendentes, esquece sua dignidade, e o é tanto no plano das relações entre povos e culturas, quanto no das relações individuais.
A missão da Igreja é salvar a fé do homem em si mesmo, que é aquela que a fé no Deus de Jesus Cristo inspira e que a adoração que ela lhe rende todos os dias guarda em si.
Independentemente do número de seus fiéis, por menor que seja, ela realiza a sua missão cuidando, em primeiro lugar, de manter-se em comunicação com as pessoas, as sociedades e os povos, de conhecer as necessidades da humanidade e de atendê-las, de cuidas das feridas, de elevar o espírito, de participar nas suas lutas por uma libertação nunca totalmente adquirida, de se dedicar ao serviço dos homens no espírito das Bem-aventuranças e do Sermão da Montanha. Por isso, deseja, portanto, apresentar-se a eles como uma terra de liberdade e de fraternidade, na qual os seres humanos se ajudam a crescer em humanidade, e envia e deixa que seus fiéis se espalhem no mundo, para se comunicar com o mundo em total autonomia e responsabilidade, para lançar as sementes do Evangelho e da salvação”. (“L'humanisme Évangélique”, Études, outubro de 2007).
Hoje, diante desse desafio da humanidade, o Papa Francisco compara a Igreja a um “hospital de campanha”: “Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha ... Devemos curar as feridas. Depois poderemos enfrentar o resto. Curar as feridas, curar feridas ... Devemos começar por baixo ... Em vez de sermos apenas uma Igreja que acolhe e que recebe mantendo as portas abertas, vamos nos esforçar a ser uma Igreja que encontra novos caminhos, que é capaz de sair de si mesma e de ir até aqueles não a frequentam” (La Chiesa che spero. Entrevista com o Padre Antonio Spadaro, 2013).
Se a salvação importa, tanto aos olhos do Papa Francisco como aos de Joseph Moingt, não é a salvação individual nem a mera salvação das almas, mas a salvação de toda a humanidade, compreende-se a urgência mobilizadora que o Papa Francisco expressa com força na Laudato Si' e em Fratelli Tutti.
Uma urgência em que os desafios sociais interferem com aqueles climáticos, em que os desafios internos e pessoais se cruzam com aqueles da sobrevivência de povos inteiros. Uma situação e uma urgência em que, como no lema da república francesa, a liberdade e a igualdade são mais do que nunca indissociáveis da fraternidade (ver: Cynthia Fleury, Mona Ozouf, Michèle Perrot, Liberté Égalité, Fraternité, Éd de l 'Aube, 2021).
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