01 Agosto 2020
“Joseph Moingt se situa no limite extremo (ao final) de um tempo de cristianismo ontológico e clerical. Em sua avaliação, já está acabando um ciclo de Igreja sagrada, separada, dominante. Pois bem, nesse contexto, aquilo que para alguns parece uma crise de morte é para ele uma porta aberta à esperança”, escreve Xabier Pikaza, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 30-07-2020. A tradução é do Cepat.
Joseph Moingt, jesuíta e teólogo francês, nascido em 19 de novembro de 1915, o último e mais fascinante dos grandes pensadores da Igreja e sobre a Igreja, acaba de morrer em Paris (28-07-2020).
Outros (cf. J. Martínez Gordo) já escreveram no Religión Digital (30-07-2020) sobre o impacto de seu pensamento e de sua vida centenária a serviço da compreensão de Deus e da Igreja, a partir do Cristo, que é Jesus de Nazaré. Eu oferecerei, ao contrário, uma visão de conjunto de sua teologia, partindo de duas obras maduras, inquietantes, esperançosas, uma sobre Deus, outra sobre Cristo. Ao final, apresentarei sua visão sobre a Igreja, no princípio e na atualidade. Quem chegar até o final desta reflexão, tomada basicamente de meu Dicionário de Pensadores Cristãos, poderá notar.
J. Moingt, historiador e teólogo jesuíta francês. Estudou na École Pratique des Hautes Études e no Institut Catholique de Paris, sendo depois professor no Centro Sèvres (da Companhia de Jesus) e no Institut Catholique de Paris.
Escreveu uma monografia monumental sobre a história da Trindade na teologia latina (Théologie trinitaire de Tertullien I-IV, Paris 1966-1969), que continua servindo como referência básica. Também publicou alguns textos sobre a vida cristã: Le Devenir Chrétien (Paris, 1973); La transmission de la foi (Paris 1976).
Mas sua contribuição teológica mais significativa está relacionada a duas obras, também monumentais, que publicou em sua idade madura, estando já aposentado. São obras complementares, uma de tipo mais cristológica (L'Homme qui venait de Dieu, Paris 1993) e outra de tipo mais teológica (Dieu qui vient à l’homme I-II/I e II/2, Paris 2002/2007).
Estas duas obras, e especialmente a última, constituem talvez a melhor contribuição histórico-teológica do pensamento francês de finais do século XX e de inícios do XXI. Conforme a visão de J. Moingt, “Deus vem ao homem”, mas não do exterior, mas do próprio processo da história humana, entendida de maneira emergentista e criativa, em chave de diálogo e desenvolvimento trinitário e encarnatório, de tal forma que a própria realidade se mostra como aparição dialogal de Deus, que não cria os homens de cima ou de fora, para se impor assim de um modo objetivo, mas vai surgindo no meio deles (sem retirar deles sua independência, totalmente o contrário).
J. Moingt quer superar uma cristologia do Logos grego (preexistente e eterno), para entender o cristianismo a partir do próprio fundo da revelação bíblica, lida a partir da história real dos homens. Isso significa que Cristo não preexiste como Filho eterno de Deus, em um plano ontológico, como Logos autônomo, que culmina em si mesmo e precede ao desdobramento do mundo, mas que é o “logos” interior ao próprio processo do mundo e da história.
Moingt se situa dessa forma dentro da tradição pré-Niceia, não para negar as definições que vão de Niceia a Calcedônia (válidas em um plano), mas para entender as afirmações do Novo Testamento a partir de seu próprio contexto israelita, que é mais próximo ao nosso (mais aberto a uma visão histórica e dialogal da realidade). Vivemos em uma época pós-metafísica e podemos receber melhor as experiências dos autores bíblicos, que se moviam dentro de uma perspectiva de desenvolvimento personalista e criativo. Hoje, superado o Logos grego, podemos entender melhor o cristianismo na linha dos grandes pensadores judeus, F. Rosenzweig e E. Levinas, nos quais Moingt se apoia com frequência.
Logicamente, Moingt assume e defende, bíblica e filosoficamente, o axioma fundamental da teologia trinitária de K. Rahner (identidade entre Trindade imanente e econômica). Sabe, sem dúvida, que pode e deve se dar prioridade à imanência (Deus em si), mas apenas na medida em que ela se desenvolve e se expressa na economia salvadora. Não há um Deus em si que não seja Deus para nós, não há eternidade de amor, sem história de amor de Jesus Cristo para com os homens (na humanidade).
Mas ele acrescenta que essa identificação de imanência e economia só se entende lá onde, na linha de E. Jüngel, se supera o modelo ontológico, para entender a Deus como um amor onde o “ser no outro” se identifica com o próprio ser em si. Isso significa que o “ser” enquanto tal é comunicação e que o pecado se define como ruptura de amor, negação do outro e do nós. Só em um fundo trinitário (em referência à comunicação perfeita) se pode falar da possibilidade de pecado como risco humano. Por isso, a revelação de Deus é “como luz que brilha nas trevas”, ou seja, como amor e presença capazes de vencer (no amor) a falta de comunicação da história pecadora (que tende a se fechar em si mesma), iniciando um diálogo de vida, inclusive lá onde se quer negar a vida.
Esta é uma experiência que Moingt explorou com a ajuda da história da teologia cristã, mas também apelando à cabala e da especulação judia. Certamente, a cabala corre o risco de cair em um tipo de gnosticismo que confunde os limites de tudo o que existe, mas ela oferece uma possibilidade de conhecimento mais alto do mistério, a partir da intimidade do próprio Deus, que se arrisca a criar, colocando a ele próprio fora de si mesmo. Dessa forma, recupera o Deus judeu e cristão da criação, que sai de si para “ser” naquele que não era, em forma de diálogo (em uma perspectiva que para os cristãos tem forma de trindade e encarnação).
A criação é um risco de amor que só se entende a partir do desenvolvimento interno de Deus, que penetra naquele que é distinto de si, para oferecer aí a sua luz, para tornar possível um caminho de amor em gratuidade. Não se impõe de cima, porque não está no alto; não se introduz de fora, porque não está fora, mas é divino no próprio desenvolvimento da história humana, dialogando consigo mesmo ao dialogar com o criado.
Este é o Deus da Escritura judaico-cristã, entendida também a partir de um fundo trinitário e cristológico, por meio do Espírito, como uma experiência de encarnação. Deus não se introduz como uma palavra já dita e fechada, em alguns escritos normativos, mas está presente no processo de vida e reflexão dos homens, que se reúne, mas não se fecha e nem se esgota na revelação bíblica, pois a Palavra de Deus para os cristãos não é um livro, nem um Logos ontológico superior, mas o próprio diálogo da história humana.
A última obra de Moingt (Deus que vem ao homem) culmina com o volume II/2, que se intitula De la apparition à la naissance de Dieu. 2. Naissance (Paris 2007). Certamente, o Deus cristão é transcendente, não de fora, mas do interior da história, e por isso se manifesta no próprio “nascimento” do humano, que não é um desenvolvimento “religioso” no sentido sagrado do termo, mas um desenvolvimento de humanidade que se expressa não só nas diversas religiões, mas no próprio processo da história dos homens. Certamente, para um cristão, esse desenvolvimento se expressou de um modo exemplar em Jesus Cristo e na história da Igreja, de maneira que se pode afirmar que Deus “nasce” nela, mas, ao mesmo tempo, deve-se afirmar que ele nasce no conjunto da humanidade (de acordo com o modelo cristão da encarnação).
O projeto de Deus consiste em se tornar “Pai dos homens”, de uma multidão de filhos, regenerados pelo dom do Espírito, em um processo de Nascimento aberto, que pode se expressar e se expressa na Igreja de uma forma privilegiada, mas nunca de um modo exclusivo, nem excludente. Na história dessa encarnação de Deus intervém duas personagens.
a) Uma personagem visível, que é a Igreja, que oferece ao mundo a revelação que recebeu de Cristo, não para ela, mas para todos, não de um modo sagrado excludente, mas a serviço da humanidade.
b) Uma personagem invisível, que é o Espírito que impulsiona os crentes e (com eles) todos os homens para o pleno desenvolvimento de si mesmo, porque a obra de Deus se identifica com a vida da humanidade. J. Moingt se situa assim no limite extremo (ao final) de um tempo de cristianismo ontológico e clerical. Em sua avaliação, já está acabando um ciclo de Igreja sagrada, separada, dominante. Pois bem, nesse contexto, aquilo que para alguns parece uma crise de morte é para ele uma porta aberta à esperança. A partir desse fundo, entende-se o desenvolvimento concreto dos seis capítulos deste livro final, que constitui o testamento teológico de J. Moingt.
Parecia que com Jesus terminava o tempo, chegava o fim. Pois bem, contra isso, no início da Igreja ocorre uma espécie de “detenção do tempo”, que nos permite descobrir as chaves permanentes da múltipla herança de Jesus, a partir da experiência do Espírito, dos diversos momentos e lugares do surgimento eclesial. Nesse contexto, Moingt destacou as funções de Maria (memória), de Pedro (tradição) e de Paulo (abertura missionária). A Igreja não nasceu já pronta, com suas estruturas definidas, de um modo unitário, mas como uma pluralidade de caminhos, como comunhão densa e tensa, animada pelo Espírito Santo.
1. Novo templo. A Igreja, que forma este novo templo, já não é de tipo religioso, mas humano, um templo aberto à totalidade dos temas e caminhos da vida. A partir desse pano de fundo, Moingt retomou suas quatro notas clássicas: a Igreja é “una” pela eucaristia (em comunhão concreta de vida), “é santa” pelo batismo e o perdão dos pecados, é “católica” porque busca a unidade do gênero humano, é “apostólica” porque seu ministério se funda no Evangelho. Estas notas não encerram a Igreja em um contexto sagrado, mas precisam ser entendidas como expressão da humanidade que vai nascendo em sua plenitude, por obra do Espírito.
2. Véu resgado. Moingt oferece neste capítulo uma visão crítica da história da igreja, que se construiu nos primeiros séculos, muito rapidamente, sobre modelos sagrados (sacerdotes), reproduzindo dessa maneira traços e elementos que pertencem mais ao Antigo Testamento (a um povo de Israel já passado) que a Jesus. Por isso, sendo admirável e em algum sentido normativa, a história da Igreja é também o testemunho de alguns caminhos que, em parte, faliram, pois não respondem à radicalidade do Evangelho. Só agora, acabado um ciclo sacerdotal (de poder sagrado), podemos descobrir novamente os traços originais da igreja, como povo universal, que nasce do sepulcro vazio Jesus para se abrir ao mundo inteiro.
3. O vazio e o informe. Moingt está convencido que se encerrou um tipo de cristianismo sagrado e clerical. Por isso, o problema da Igreja não é a escassez de vocações sacerdotais (com mais clérigos como os de antes, não se resolveria a crise, na atualidade), mas a falta de comunicação de fé, a carência de uma verdadeira presença cristã (não sagrada) no mundo. Estamos assim como no início da Igreja, quando o Espírito de Jesus surgia de seu sepulcro, para criar formas de comunicação humana que se abrem a toda a humanidade.
4. Voz que clama no deserto. Neste capítulo, J. Moingt afirma que a missão cristã já não pode ser realizada como antes (para que o cristianismo organizado substitua as religiões prévias), mas como diálogo fecundo com as religiões e com as quase-religiões do mundo atual. Em sua avaliação, em sua forma antiga, as missões “clássicas” culminaram e acabaram no século XIX (com algumas sobrevivências já tardias no século XX). O que veio depois e o que ainda deve vir será diferente, mais próximo à mensagem de Jesus. Não se trata mais de converter pagãos, mas de viver o Evangelho em comunhão dialogal com as outras religiões e, sobretudo na Europa (no Ocidente), em abertura humana (generosa, criativa) para com as semi-religiões que se espalham por todas as partes.
5. Os tempos do fim. Moingt situa neste contexto o tema chave da ressurreição dos mortos, entendida de forma escatológica, como no princípio da Igreja, e apresentando, como antecipação dessa ressurreição, os elementos fundamentais do último artigo do Credo (comunhão dos santos, perdão dos pecados e vida eterna...), que expressam os sinais da vida final que já começou a se revelar e que já opera na Igreja. Por isso, o tema do futuro está inserido na dinâmica do presente cristão, pois a Igreja, como “nascimento de Deus” deve expressar, já desde agora, os valores escatológicos do Reino.
Entre as obras menores de J. Moingt, traduzidas ao espanhol, estão: “La historia más bella de Dios” (em colaboração, Barcelona 1998) e “Los tres que visitaron a Abraham” (Bilbao 2000). Trata-se, em ambos os casos, de entrevistas sobre Deus, em tom coloquial, aberto a questões que vão surgindo na própria conversa e que são difíceis de expressar em um livro escrito somente a partir das preocupações exclusivas do autor.
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Joseph Moingt: A igreja verdadeira não nasceu ainda. Artigo de Xabier Pikaza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU