"A Igreja se encontra em um momento de passagem, caminha para um novo modo de ser, por isso vive na aflição, vive tensões, mas não está num momento trágico. Esta passagem se realiza pela diminuição de seu poder e de sua visibilidade ligada ao clero: o descrédito da hierarquia e sua diminuição tendem a fazer com que não ocupem mais os postos que ocupavam outrora. Voltar às origens apostólicas, ressignificar a linguagem, não ter medo da mudança e de perder o seu poder, eis alguns dos desafios para a Igreja indicados por um teólogo com esperança. É deste modo que este jesuíta oferece a sua herança, falando com clareza e sem medo".
O artigo é de Roberto Nentwig, presbítero da Arquidiocese de Curitiba, formador e professor de teologia, doutor em Teologia na área de Teologia Sistemático Pastoral pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2017) e mestre em Teologia na área de Teologia Pastoral pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2011).
Era uma manhã de inverno em Paris. Graças a solicitude de alguns padres jesuítas que lá moravam, consegui ter acesso a Joseph Moingt. Havia estudado por três anos a sua obra em vistas do meu doutorado. A oportunidade de conversar com a própria fonte seria formidável. O primeiro contato foi na Santa Missa, quando tive a primeira surpresa ao ver aquele pequeno homem centenário dar um breve salto para subir ao altar no momento da comunhão. Mais surpreendente foi o modo acolhedor como nos recebeu, eu e meu amigo José Nobre. Simpático, sorridente, jamais diria que aquele personagem já chegara aos 100 anos. Foi quando nos propôs que, horas mais tarde, fôssemos aos seus aposentos para uma conversa. Tenho tudo gravado, não somente em arquivos digitais, mas sobretudo na memória. Arquivos que agora se tornam verdadeiras relíquias.
O centenário Joseph Moingt fez a sua páscoa, deixando-nos um legado teológico imenso e profundo, que ainda produzirá muitos frutos. Cheguei a ele por sugestão de um outro grande teólogo, que também nos deixou, Francisco Catão. Ele mesmo me atestou: “se existe um teólogo que diz algo de original e que merece ser estudado, ainda desconhecido no Brasil, este é Joseph Moingt”. Segui o conselho da sabedoria dos cabelos brancos. Depois, descobri que a opinião era acompanhada por outro teólogo renomado, José Comblin. Ao ler a sua obra teria dito, com entusiasmo: "Encontrei finalmente alguém que pensa como eu”.
O que teria encantado estes nobres teólogos? Por que Moingt nos encanta? Talvez pela densidade e beleza de seus textos, por vezes um tratado complexo, por vezes uma dissertação poética. Prefiro acreditar que a verdadeira razão seja os seus questionamentos, suas provocações. Tais indagações surgem de uma preocupação latente em sua obra: o cristianismo precisa apresentar uma fé pertinente para o mundo contemporâneo.
Nosso teólogo fala deste universo de pensamento que surgiu depois da Ilustração, depois da modernidade. Segundo ele, o pensamento crítico que aí se instala não se contenta mais com respostas infantis ou com a repetição dogmática. Portanto, a teologia e a evangelização não podem estar alheias à cultura e as suas interrogações, sendo necessário, sobretudo, trazer o conteúdo que brota da Palavra de Deus e da Tradição da Igreja à serviço de uma inteligibilidade da fé.
Por isso, a teologia terá que trazer respostas a um dos traços característicos mais marcantes de nosso tempo: o mundo atual é cada vez mais indiferente à Deus e à religião. Os contemporâneos pedem contas à teologia: “o que a vinda do Filho de Deus ao mundo mudou nas realidades da história, de dois mil anos para cá? O que ela permite que se espere quanto ao futuro? Quais os meios que ela oferece para mudar o curso das coisas?”.
Nesta linha, o teólogo francês propõe a desconstrução do dogma primitivo, um desmanche do discurso clássico, diante de uma modernidade questionadora dos ensinamentos oficiais da Igreja. Por séculos, testemunhamos um distanciamento do campo histórico-cultural, o abandono da narrativa e da autenticidade bíblica, o que trouxe consequências altamente negativas para a exposição da fé. Exige-se, diante disso, uma nova leitura dos Evangelhos, não mais alicerçada no dogma, embora sujeita às regras científicas. Surge um Cristo que se opõe à pregação eclesiástica, um Deus humano que responde ao sentido da existência e que está imerso em nossa história.
Neste ponto, Moingt é audacioso. Propõe um ir além da religião. Seguindo a opinião de Bonhoeffer, teólogo muito caro a ele, convoca a uma necessária linguagem não religiosa, ou seja, um discurso que fale aos contemporâneos do ser humano, de sua vida, e não simplesmente da religião. Por muito tempo, pareceu-nos uma coisa só, porém, cada vez se percebe mais o quanto a religião pode afastar o humano do humano, Deus do humano, escravizando ao invés de libertar. Uma pseudofidelidade a Deus em nome do discurso religioso é combatida com coragem pelo nosso teólogo. Em nosso diálogo em sua casa, ele mesmo afirmou: “é a caridade que salva, não a religião”.
Se a religião corre o risco de ser seduzida por pensamentos e atitudes desumanizadoras, e presenciamos isso ao longo da história, é preciso que Cristo seja apresentado como plenitude da humanização. O tempo de provar a divindade de Jesus já se foi, agora o desafio é mostrar o quanto ele é plenamente humano, pois “este ser humano se descobre Filho de Deus quando sua humanidade se deixa apreender como revelação da humanidade de Deus”. Ao se revelar, este Deus não desvela apenas o seu ser em si, mas as suas relações.
Aqui transparece o seu diálogo com a filosofia da intersubjetividade. É partindo de tais fundamentos que Moingt afirma que Jesus nos dá uma nova definição de Deus, bem diferente do que se acreditava no paganismo ou no Antigo Testamento. É imprescindível que compreendamos, portanto, que Cristo nos revela que Deus é Pai dos homens, sendo Pai de Jesus. Esta relação filial, esta consciência de ser amado pelo Pai de um modo singular, é agora transferida a nós. Portanto, ao recebermos o seu Espírito, podemos também clamar ao seu Abá-Pai (cf. Gl 4,4). A humanização do cristianismo depende desta relação filial que fundamenta a nossa consciência de que somos todos irmãos e irmãs, filhos e filhas do mesmo Pai de amor.
Esta mensagem libertadora, por vezes, foi deixada em segundo plano, substituída por mensagens que submetem o ser humano a uma escravidão. A religião não deveria libertar cada pessoa de suas servidões? Nesta linha de pensamento, Moingt afirma a necessidade de voltar ao essencial do cristianismo – o anúncio da salvação. Porém, não se trata da proposta de uma salvação sem pertinência, ininteligível para o nosso tempo. A soteriologia teria se concentrado na mera contagem de indivíduos que estariam destinados ao Céu, em detrimento do grupo dos condenados, produzindo o risco de comprometer a liberdade de cada pessoa.
Por isso, segundo Moingt, quando se anuncia a iminência da salvação (e foi isso que fez Jesus!), não é para provocar o medo do juízo que bate à porta, não é para culpabilizar as pessoas, mas para causar um engajamento humano, para que a salvação tenha os seus sinais manifestados pelos que abraçam o projeto divino. É preciso salvar o ser humano enquanto ser humano. É preciso anunciar a experiência cristã como proposta salvífica do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus, co-criador do mundo, ser em processo de liberdade, potencialmente liberto de suas amarras, capaz de Deus, possível participante da eternidade. O que Deus deseja é a reconciliação do homem novo (cf. 2Cor 5,20ss). “Aí, aprendemos que quando Jesus nos une – diante da cruz – Ele nos conduz ao céu. Era algo que tinha que ser feito. E Deus estava ali, na cruz de Jesus para dizer que se reconciliou conosco. E nós? Como nos reconciliamos? Reconhecendo-nos como irmãos e partilhando essa comunicação da salvação”.
Comunicar a salvação, eis o ponto. A pertinência da Igreja depende disso. Nosso teólogo ressalta a importância do frescor evangélico e renovador das palavras de Jesus que nos pede “vinho novo em odres novos” (Mc 2,22). Portanto, as preocupações do teólogo francês estão em sintonia com a reforma da Igreja, como testemunhamos nas sementes plantadas no pontificado de Francisco.
Perguntado sobre o futuro da Igreja, Moingt afirma que será preciso apostar em novos modelos eclesiais: repensar o papel dos leigos a partir de pequenas comunidades, bem como o modelo tradicional de iniciação sacramental, partindo para uma aposta na evangelização sem medo de perder a quantidade em detrimento da qualidade dos fiéis; acredita ele, que a Igreja possa encontrar nova vitalidade contribuindo na busca de sentido da sociedade atual. Admite que seja necessário um cristianismo de contestação, escapando-se da égide da autoridade da instituição, mas também admite que sozinhos não podemos ir longe, por isso, a vinculação eclesial é necessária, ainda que novos modelos devam surgir.
A Igreja se encontra em um momento de passagem, caminha para um novo modo de ser, por isso vive na aflição, vive tensões, mas não está num momento trágico. Esta passagem se realiza pela diminuição de seu poder e de sua visibilidade ligada ao clero: o descrédito da hierarquia e sua diminuição tendem a fazer com que não ocupem mais os postos que ocupavam outrora. Voltar às origens apostólicas, ressignificar a linguagem, não ter medo da mudança e de perder o seu poder, eis alguns dos desafios para a Igreja indicados por um teólogo com esperança. É deste modo que este jesuíta oferece a sua herança, falando com clareza e sem medo.
A teologia precisa de liberdade e de audácia. Jamais teve medo de censuras, mas sempre se preocupou em escrever de acordo com a sua fé. É nesta fidelidade ao Deus que vem ao homem e lhe revela o humano, no Espírito do Filho, que Moingt deixa o seu legado questionador. Cabe a nós reavivá-lo sempre e, assim, lutar contra toda a imobilidade social, eclesial e pessoal. Só assim seremos fiéis a este Deus processual que nos criou em projeção de ser, predestinados a encontrar o seu termo último.