A adesão ao conservadorismo ou a pautas de extrema-direita entre os brasileiros “não é resultado de uma falsa consciência, mas está relacionado a uma complexidade de fatores”, afirma doutora em Antropologia Cultural
Se, por um lado, a extrema-direita é entendida como um “fenômeno global”, cujo discurso político gira em torno da defesa do nacionalismo, da família e da crítica à ideologia de gênero, por outro, não é tão simples fazer tal associação quando se trata de analisar as posições dos eleitores nos contextos locais, observa Olívia Bandeira em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por e-mail.
Segundo ela, pesquisas recentes tentam compreender e explicitar as especificidades da extrema-direita no Brasil e as causas da adesão do eleitorado ao bolsonarismo e posições semelhantes. O medo, menciona, tem se destacado como fator determinante na decisão política dos brasileiros, de acordo com estudos realizados na UFSC. “O medo – da violência, da corrupção, do desemprego, da perda material e simbólica –, é central nas falas dos entrevistados, e há uma nostalgia de uma ordem ou estabilidade que teria se perdido. O amor, por outro lado, está relacionado ao nacionalismo e à família, que devem ser protegidos contra o outro”, destaca.
A defesa da família e a crítica à corrupção estatal, acrescenta a doutora em Antropologia Cultural, têm atraído as mulheres para a defesa de pautas conservadoras, conforme apontam os estudos do ISER. “As pesquisas têm indicado que a defesa da família é algo importante para as mulheres, muitas vezes as maiores responsáveis pela manutenção e pelo cuidado com as famílias. (…) A proteção da família é uma questão central para as mulheres evangélicas das classes C e D entrevistadas”, sublinha.
Olívia Bandeira também acentua a influência dos feminismos tanto na vida das mulheres quanto nos discursos da extrema-direita. As posições, resume, vão desde um discurso antifeminista até a reivindicação de um feminismo neoliberal, de direita ou de luta pela igualdade de gênero.
A seguir, a entrevistada aborda o ressurgimento da extrema-direita numa perspectiva interseccional, com ênfase para as questões de gênero e o papel da religião na vida das pessoas.

Olívia Bandeira (Foto: Arquivo Pessoal)
Olívia Bandeira de Melo Carvalho é pós-doutoranda no Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH-Unicamp) e integrante do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-Unicamp), atuando na linha de pesquisa em Gênero, Religião e Política. Doutora em Antropologia Cultural pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Comunicação Social e graduada em Jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, onde coordenou as áreas de formação, pesquisa e articulação internacional. É autora do livro Música gospel: disputas e negociações em torno da identidade evangélica no Brasil (Papéis Selvagens, 2023).
IHU – Você tem estudado a extrema-direita a partir de uma perspectiva interseccional. O que a pesquisa tem evidenciado até o momento?
Olívia Bandeira – O ressurgimento da extrema-direita nos últimos anos é um fenômeno global e transnacional. Diversos conceitos têm sido utilizados para tentar explicar este renascimento da extrema-direita, como conservadorismo, neoconservadorismo, fascismo, neofascismo e populismo de direita, entre outros. Mesmo com diferenças, importa o fato de ser um fenômeno global, com agentes antidireitos atuando transnacionalmente, embora suas ações apresentem especificidades em cada contexto local.
Na linha de pesquisa em Gênero, Religião e Política do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) [1], temos tentado analisar, em primeiro lugar, o papel central das questões de gênero nesse processo. Nesse sentido, temos dialogado com pesquisadores latino-americanos como as brasileiras Flávia Biroli e Maria das Dores Campos Machado e o argentino Juan Marco Vaggione, que analisam como o que chamam de neoconservadorismo ganhou maior força unificadora e popularidade na década de 2000, baseado na luta contra o que se configurava como “ideologia de gênero”, estimulada pela atuação do Vaticano em resposta às conferências da Organização das Nações Unidas (ONU) que abordaram questões femininas, especialmente as do Cairo e de Pequim na década de 1990.
Do Vaticano, a “ideologia de gênero” foi muito eficaz por aglutinar diversos agentes conservadores, como os católicos e evangélicos no Brasil, mesmo aqueles que não se identificam com a extrema-direita, em torno da ideia de ameaça à família, sendo objeto de um ativismo conservador nas políticas públicas do Executivo, no Legislativo e no Judiciário. A “ideologia de gênero” ganhou também grande repercussão midiática, servindo de ativo discursivo para a extrema-direita, como pudemos observar na campanha que elegeu Bolsonaro em 2018, com a disseminação das fake news sobre o chamado “kit gay”, e a campanha latino-americana #ConMisHijosNoTeMetas, que teve origem no Peru.
Em segundo lugar, temos pensado como abordar a importância do gênero no discurso da extrema-direita considerando as interseccionalidades de raça/etnia, classe, território, faixa etária, além do papel da religião na vida das pessoas. Entender a importância da família, por exemplo, não se refere apenas a aspectos morais, mas está conectado com as crises do capitalismo e do neoliberalismo, como observado, de diferentes maneiras, nos trabalhos de pesquisadoras norte-americanas como Wendy Brown, Nancy Fraser, Melinda Cooper e Judith Butler. Nesse sentido, neoconservadorismo se une ao neoliberalismo ao colocar a família heteronormativa, patriarcal e branca no centro da concepção de sociedade e da necessidade de protegê-la contra ameaças decorrentes da conquista de direitos por grupos vulnerabilizados, em um contexto de crise econômica e social.
No entanto, precisamos compreender melhor, para além dessa concepção hegemônica da família a ser “defendida”, quais as demandas concretas dessas famílias, que, em um país como o Brasil, são muitas vezes sustentadas por mulheres negras.
IHU – Os sociólogos norte-americanos Daniel Martínez HoSang e Joseph E. Lowndes têm chamado atenção para a emergência de uma extrema-direita multirracial nos EUA. Este fenômeno também é observado no Brasil?
Olívia Bandeira – Não me parece útil utilizar o termo “extrema-direita multirracial” para observar a extrema-direita no Brasil, mas considerar algo que está presente nas falas dos autores e que já está considerado nas pesquisas que possuem um caráter interseccional: pessoas de todos os tipos podem ter tendências conservadoras e isso não é o resultado de uma falsa consciência, mas está relacionado a uma complexidade de fatores que podem ser mais bem compreendidos em pesquisas empíricas.
Não podemos ver uma centralidade no combate ao racismo na extrema-direita. Ao contrário, a subjetividade neoliberal que serve de modelo é branca, como mostra a antropóloga Suzana Maia. O nacionalismo continua central no discurso da extrema-direita cristã, que afirma a existência de uma “nação cristã”, e esse discurso nega as desigualdades estruturais baseadas em raça/etnia, gênero, sexualidade, em nome de uma suposta unidade entre os cristãos e da não divisão da sociedade brasileira, adotando uma postura neoliberal.
Também acho que devemos nos perguntar o que é ser extrema-direita quando falamos de cidadãos e cidadãs que não são políticos. Porque os políticos em geral possuem uma filiação que permite, de forma mais fácil, afirmar que fazem parte de um grupo da extrema-direita, mas quando falamos de eleitores o simples voto em Trump ou em Bolsonaro não faz necessariamente com que aquela pessoa possa ser identificada como da extrema-direita. Nesse sentido, há outras perguntas a serem feitas, como quando o Instituto de Estudos da Religião (ISER), na pesquisa “Mulheres evangélicas, política e cotidiano”, coordenada por Lívia Reis e Jacqueline Moraes Teixeira, pergunta o que influencia o voto de mulheres evangélicas nas eleições.
IHU – É possível falar de um bolsonarismo religioso? Em que consiste? Se sim, como tende a se transformar após a prisão do ex-presidente?
Olívia Bandeira – Sim, acho que é possível falar de um bolsonarismo religioso que tem uma matriz judaico-cristã, como aborda Ronaldo Almeida, mas que esse bolsonarismo religioso se transforma de acordo com a conjuntura. Acredito que haja um núcleo duro desse bolsonarismo religioso que segue na defesa de Bolsonaro mesmo após sua condenação, mas também é possível observar um afastamento de lideranças da direita da figura de Bolsonaro e uma mudança na opinião pública, como mostram algumas pesquisas. Outros fatos, no entanto, podem acontecer para mudar esse cenário até as eleições de 2026. Além disso, é possível considerar a existência de um bolsonarismo cristão para além de Bolsonaro, que mantém as pautas da extrema-direita ativa para além da liderança do ex-presidente.
Podemos observar bem como atuam esses agentes nas redes sociais. No caso da chacina que aconteceu nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, no dia 28 de outubro, foi possível perceber lideranças evangélicas e católicas reproduzindo imediatamente o discurso do governo de Cláudio Castro (PL-RJ) que classificou o crime organizado como “narcoterrorismo”, seguindo as diretrizes de Donald Trump e de governos da extrema-direita na América Latina, como o de Nayib Bukele, em El Salvador, de Javier Milei, na Argentina, e de Santiago Peña, no Paraguai.
O viés punitivista da segurança pública está entre os principais temas frisados pela extrema-direita, o que levanta uma série de debates entre os próprios cristãos sobre os limites dessa política e uma disputa entre “bandido bom é bandido morto” e “bandido bom é bandido recuperado” ou “convertido”.
Seja qual visão é destacada, é interessante notar como os conservadores religiosos, mesmo aqueles que não se associam à extrema-direita, costuram pautas vindas de campos diferentes, como segurança pública e aborto. Lideranças evangélicas e católicas da direita, por exemplo, no contexto da operação, criticaram a esquerda, chamando seus representantes de contraditórios, por “defender a vida de bandidos” ao mesmo tempo que defendem o aborto. Por outro lado, autoridades da Igreja Católica disseram que seria contraditório ao cristão defender a pena de morte e ao mesmo tempo ser contra o aborto.
Na lógica de polarização, substituição e sequenciamento de temas e velocidade das redes sociais, que necessita sempre de uma pauta para alimentar a audiência, o tema da chacina nas redes dos cristãos bolsonaristas foi logo substituído pelo projeto de decreto legislativo aprovado na Câmara dos Deputados, no dia 7 de novembro, que restringe o direito ao aborto legal em crianças e adolescentes.
Assim, o que vemos é que, ao mesmo tempo que a segurança pública e o aborto são aproximados como partes de uma grande agenda de defesa da família, as questões de gênero, raça, classe, idade são totalmente apagadas no discurso desses agentes do bolsonarismo no referente à chacina e ao aborto. Eles não tiveram pudores em condenar mães e seus filhos adolescentes pelo envolvimento com o tráfico de drogas, sem nenhuma reflexão sobre as estruturas sociais, a lógica de funcionamento do crime organizado ou o papel do Estado nesse envolvimento, desconsiderando também que, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, 79% das vítimas de mortes violentas são negras, número que sobe para 82% entre as mortes causadas pela polícia. Ao mesmo tempo, desconsideram que são principalmente mulheres pobres e negras as que mais morrem e que mais são criminalizadas em decorrência de abortos inseguros.
IHU – Por que pessoas de diferentes grupos e idades se veem representadas na extrema-direita? O que está por trás dessa identificação? Quais são os diferentes fatores que impulsionam a extrema-direita no Brasil? O que atrai setores religiosos para a extrema-direita?
Olívia Bandeira – Eu acho que são necessários mais trabalhos empíricos para a compreensão dessa questão. Estou começando uma pesquisa de pós-doutorado no Departamento de Antropologia da UNICAMP, apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que vai analisar como as mídias fazem parte das dinâmicas que articulam religião, gênero e política no cotidiano de mulheres evangélicas, em uma perspectiva comparada entre Brasil e Argentina, onde a extrema-direita teve bons resultados eleitorais nos últimos anos.
Eu parto da hipótese de que a religiosidade tem sido vivenciada a partir de múltiplas mediações comunicacionais que incluem tanto a produção realizada por lideranças – com maior ou menor visibilidade – quanto por agentes que não se filiam a instituições religiosas, gerando tensões em relação à autoridade religiosa e novas formas de institucionalidade e de pertencimento religioso. Nesse sentido, me interessa perguntar tanto como as mulheres se identificam com o discurso conservador de “defesa da família” e outras pautas das direitas, quanto perguntar se e como também se identificam com pautas progressistas e demandas feministas, e como essa identificação varia de acordo com gênero, sexualidade, raça/etnia, classe, território, idade.
Além dos marcadores sociais e da religiosidade, algumas pesquisas têm começado a olhar para o papel dos afetos e das emoções no posicionamento político das pessoas, como a pesquisa “Afetividade, extremismos políticos e psicologia social”, do Núcleo de Práticas Sociais, Estética e Política (NUPRA), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A pesquisa entrevistou eleitores, a maior parte das classes C e D, que votaram em Bolsonaro em 2018 e 2022 e que pretendem votar na direita nas próximas eleições. Ela identificou que o medo – da violência, da corrupção, do desemprego, da perda material e simbólica – é central nas falas dos entrevistados e que há uma nostalgia de uma ordem ou estabilidade que teria se perdido.
O amor, por outro lado, está relacionado ao nacionalismo e à família, que devem ser protegidos contra o outro, a diversidade. A pesquisa também identificou o ressentimento diante de políticas voltadas às minorias.
IHU – Por que as mulheres são atraídas por pautas conservadoras? Que tipo de pautas têm mais apelo entre elas?
Olívia Bandeira – As pesquisas têm indicado que a defesa da família é algo importante para as mulheres, muitas vezes as maiores responsáveis pela manutenção e pelo cuidado com as famílias. No entanto, o significado de defesa da família pode variar consideravelmente. Na pesquisa do ISER, por exemplo, a proteção da família é uma questão central para as mulheres evangélicas das classes C e D entrevistadas; no entanto, ela não corresponde ao discurso dominante das lideranças religiosas na esfera pública de que a família estaria ameaçada pela “ideologia de gênero” e pelas feministas, mas se concentra sobretudo na necessidade de políticas públicas de cuidado nas áreas de saúde, educação e violência, autonomia financeira e igualdade de direitos.
IHU – O que explica a simpatia de mulheres pela extrema-direita no país? Qual é o perfil das mulheres que se identificam com pautas conservadoras, de direita ou de extrema-direita?
Olívia Bandeira – Em relação ao perfil das mulheres que votaram em Bolsonaro, ele está relacionado também aos fatores que fazem com que se identifiquem com políticas da direita/extrema-direita. Necessitamos de mais estudos sobre isso, mas temos já algumas pesquisas interessantes.
No trabalho de Suzana Maia sobre mulheres de classe média alta em Salvador, ela mostra que parte do apoio dessas mulheres ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e ao governo Bolsonaro se dá pela sua insatisfação e pelo ressentimento contra políticas de reconhecimento, como a regulamentação de direitos de empregadas domésticas em 2013, de redistribuição, como o Bolsa Família e o Bolsa Escola, e de compensação, como as ações afirmativas, que na sua percepção ameaçam suas posições de classe e os privilégios de seus filhos. Da mesma forma, consideram que políticas de educação sexual nas escolas e de reconhecimento de diversas formas de sexualidade e papéis de gênero são uma interferência exagerada do Estado em algo que deveria se restringir ao âmbito privado da família.
Nesse sentido, observa-se um discurso antipetista que acrescenta ainda a justificativa da corrupção como algo que aproximaria as mulheres cristãs do bolsonarismo. A percepção do Estado como corrupto aproxima mulheres cristãs de diferentes classes sociais do apoio ao bolsonarismo nas eleições de 2018 e 2022, mesmo que a concepção de Estado delas seja diferente, e que mulheres das classes C e D, em sua maioria negras, deem, ao contrário das mulheres de classe média alta estudadas por Suzana Maia, ênfase na necessidade do Estado de promover políticas de distribuição e assistência social, como mostra o estudo do ISER.
É importante também compreender o papel de Michelle Bolsonaro na identificação de mulheres cristãs de diferentes perfis ao bolsonarismo. Como mostra o estudo do ISER, Michelle é vista como uma mulher comum, como tantas outras, que veio de família periférica, que criou sozinha a própria filha, exemplo de mãe, esposa e cristã a ser seguido. Michelle também ajuda a humanizar a figura de Bolsonaro, visto pelas mulheres entrevistadas como um ser imperfeito, que erra – como aconteceu na pandemia –, mas que defende valores cristãos, que no fim seria a defesa da família. Esse apoio também é alimentado por desinformação sobre políticas petistas que ameaçariam a família, ou seja, pela produção do medo alimentada pela dinâmica das redes sociais e dos grupos de mensageria das famílias e das igrejas.
Posso acrescentar o papel que Michelle tem exercido no PL Mulher desde 2023, viajando pelo país, incentivando outras mulheres cristãs a entrarem na política, a partir de uma pauta que enfatiza sobretudo a defesa das mulheres e das mães que exercem diferentes papéis de cuidado, associada a outras pautas como o combate ao direito ao aborto e a defesa de Bolsonaro e da anistia aos integrantes das ações antidemocrárticas do 8 de janeiro como uma perseguição aos cristãos.
IHU – Que papel a religião desempenha na vida das mulheres, segundo observa em suas pesquisas?
Olívia Bandeira – A religião desempenha papéis muito diferentes na vida das mulheres, e isso vai depender tanto de seus marcadores sociais quanto de suas trajetórias de vida. Mas, em primeiro lugar, acredito ser importante não desconsiderar o papel da espiritualidade na vida das pessoas, o quanto elas buscam a fé não apenas para responder a seus problemas imediatos e buscar assistência social e caminhos para a prosperidade, mas também porque querem ter uma experiência espiritual e um relacionamento com o divino/o sagrado. E, nos dias de hoje, a religião pode estar em muitos lugares, nas igrejas, nas instituições, como também no cotidiano por meio do consumo de mídias e produtos culturais. Isso ficou evidente na pesquisa que desenvolvi sobre a produção e o consumo da música gospel.
Junto dessa vivência da espiritualidade, a religião é uma forma de sociabilidade, de pertencimento, de construção de identidade, de apoio mútuo, de aprendizagem, e também de exercício de agência. Como mostra também a pesquisa do ISER, as mulheres não apenas recebem, mas doam na igreja seu tempo, seu trabalho. E, como observei em minha pesquisa sobre o gospel, em muitos casos elas ocupam posições que as valorizam, como obreiras, voluntárias, missionárias, pastoras, cantoras e compositoras, mesmo que no discurso continuem dizendo que são submetidas à “autoridade espiritual” de seus maridos e pastores líderes.
Já há algumas décadas, Maria das Dores Campos Machado observava como as mulheres, atribuídas de seu papel que a sociedade patriarcal lhes dá de cuidadoras, se convertiam ao pentecostalismo motivadas, em geral, pela manutenção do equilíbrio familiar em situações em que algum de seus membros se encontrava em dificuldade. A pesquisadora apontava também para características da doutrina pentecostal de combate à identidade masculina predominante na sociedade brasileira, atribuindo a eles características de ser dóceis e de se preocuparem com o cuidado com os filhos e o bem-estar da família, e estímulo de determinadas formas de autonomia das mulheres, seja em casa (na construção de uma autoridade moral e espiritual diante de seus maridos e filhos), seja na esfera pública (trabalho remunerado, ações voluntárias e filantrópicas, atuação na política por meio de candidaturas femininas ou da militância política).
No entanto, esses papéis não estão disponíveis a todas as mulheres, pois existem aquelas a quem os espaços de poder não estão acessíveis, como, em geral, as solteiras, as divorciadas, as lésbicas, as transexuais, as que se declaram feministas. No caso das lésbicas e transexuais, sua orientação sexual e de gênero nem mesmo é aceita na maior parte das igrejas que promovem muitas vezes uma forma de violência misógina e LGBT-fóbica, com as chamadas “terapias de conversão sexual” ou “cura gay”.
IHU – Como o feminismo tem sido rediscutido numa perspectiva que mescla religião, pensamento conservador e política de direita e extrema-direita no Brasil? Quais são as pautas centrais desse feminismo?
Olívia Bandeira – Temos debatido duas questões importantes a esse respeito. Em primeiro lugar, a existência de um discurso antifeminista muito forte por parte de agentes cristão da extrema-direita, homens e mulheres, que inserem as feministas como as grandes inimigas, inclusive das mulheres, a serem combatidas, como o da deputada estadual evangélica Ana Campagnolo (PL-SC), estudada por Nina Rosas, Tábata Tesser e Brenda Carranza, e de outros que também acompanho, como o da pastora Elizete Malafaia e do padre Paulo Ricardo. Esse discurso antifeminista parte da construção do que é ser mulher “cristã”, “de bem”, “virtuosa” e, mais recentemente, há também a construção do conceito de masculinidade pela ótica cristã desses agentes, como o movimento evangélico Legendários e os cursos do padre Paulo Ricardo.
Em segundo lugar, há a reivindicação mesmo entre grupos conservadores e das direitas cristãs de um feminismo neoliberal ou de direita – a que as mulheres na maior parte das vezes não se referem como feminismo, mas como demandas femininas e cristãs. Essas reivindicações incluem igualdade no trabalho, inclusive salarial, divisão de tarefas domésticas, diminuição das violências de gênero, prazer feminino durante o sexo, ainda que no casamento, participação na esfera política e nas hierarquias das igrejas. Por outro lado, reafirmam os papéis de gênero que subjugam a mulher ao poder do marido ou do pastor, negam os direitos sexuais e reprodutivos e outras demandas do feminismo interseccional, como o combate ao racismo e as políticas de justiça social que possam superar as desigualdades históricas.
É preciso destacar também que a discussão sobre os feminismos e antifeminismos no meio cristão precisa ser feita à luz dos marcadores de classe e de raça. Por exemplo, é preciso considerar que as mulheres pobres e negras sempre tiveram que trabalhar fora de casa, tendo outras demandas de igualdade que não são o direito a trabalhar, e que as mulheres das classes médias e altas, para manter a sua família cristã, a “harmonia dos seus lares”, como salienta Suzana Maia, se valem do trabalho doméstico de outras mulheres, sobretudo negras. No entanto, o discurso sobre as demandas femininas é construído em grande parte por mulheres brancas e de classes médias e altas, que estão em posições de poder no meio cristão, como pastoras, líderes de ministérios de mulheres, parlamentares, dirigentes de partidos políticos.
Por outro lado, é preciso considerar também o crescimento de mulheres cristãs, evangélica e católicas, que têm se posicionado publicamente como feministas, e a existência de movimentos feministas cristãos, como as Católicas pelo Direito de Decidir e as Evangélicas pela Igualdade de Gênero, entre outros. Elas são vistas muitas vezes como “inimigas internas” a serem combatidas pelos agentes da extrema-direita.
[1] A linha de pesquisa em Gênero, Religião e Política do Laboratório de Antropologia da Religião é formada por Maria José Rosado Nunes, Brenda Carranza, Olívia Bandeira, Ana Trigo, Carla Angelini, Gisele Pereira e Teresinha Matos. (Nota da entrevistada)