02 Dezembro 2024
"A participação de líderes religiosos em um suposto golpe contra o presidente Lula traz à tona a questão do papel da Igreja na política brasileira. A linha que separa a fé e a política, já tênue em muitos casos, parece ter sido cruzada de forma alarmante", escreve Zé Barbosa Junior, teólogo, escritor, pós-graduado em Ciências Políticas e pastor da Comunidade de Jesus em Campina Grande - PB, em artigo publicado por Revista Fórum, 28-11-2024.
O Brasil foi sacudido nesta semana por um relatório bombástico da Polícia Federal (PF) que revela a participação de membros do clero em uma tentativa de golpe contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva que culminaria com seu assassinato, de seu vice Geraldo Alckmin e do Ministro do STF, Alexandre de Moraes. O documento, parte de uma investigação ampla sobre atos antidemocráticos, cita vários padres entre os envolvidos na conspiração para desestabilizar o governo.
A investigação da PF, que vem sendo conduzida há meses, teve como foco organizações e indivíduos que promovem desinformação e incitam ações contra o governo federal. A última fase das apurações trouxe à tona a participação surpreendente de líderes religiosos, especialmente de alguns padres, em atividades que visavam minar a legitimidade do presidente Lula e fomentar a instabilidade política no país.
De acordo com o relatório, os padres citados teriam utilizado sua influência sobre os fiéis para disseminar informações falsas e conspiratórias sobre o governo. Há indícios de que, em sermões e eventos religiosos, esses líderes teriam incentivado atos de desobediência civil e até mesmo apoiado financeiramente manifestações contrárias ao governo. Os três padres citados no relatório final da Polícia Federal José Eduardo de Oliveira e Silva, Genésio Lamounier Ramos e Paulo Ricardo, padre muito conhecido na internet por sua postura conservadora.
O padre José Eduardo Oliveira e Silva, de 41 anos, nasceu em Piracicaba, no interior de São Paulo, e ainda criança mudou-se para Carapicuíba, na Grande São Paulo. Aos 11 anos, começou a frequentar a Igreja Católica e sentiu a vocação para o sacerdócio. Foi ordenado vigário da Diocese de Osasco em 2006 e atualmente é pároco da Paróquia São Domingos.
Nas redes sociais, Oliveira e Silva alcançou grande popularidade, contando com 427 mil seguidores no Instagram e 137 mil no YouTube. Sua notoriedade online começou em 2017, após fazer uma declaração controversa sugerindo a criação de um "calmante em forma de supositório" e expressando nostalgia por um tempo em que, segundo ele, "o banheiro servia apenas para necessidades fisiológicas e não para exibicionismos de autoafirmação sexual". Além disso, ele oferece seis cursos online, ou um pacote com acesso a todos por R$ 897.
Em relação ao ex-presidente Jair Bolsonaro, o padre José Eduardo manteve envolvimento significativo. Em 2018, ele se aproximou de Bolsonaro após o então candidato sofrer um atentado a faca, oferecendo "apoio espiritual". Em 2022, após as eleições presidenciais, o padre teria participado de uma reunião em Brasília, que, segundo a Polícia Federal, fez parte de uma série de encontros promovidos por Bolsonaro para discutir "tratativas com militares de alta patente sobre a instalação de um regime de exceção constitucional”.
Em 8 de janeiro de 2023, Oliveira e Silva publicou uma reflexão sobre Absalão, figura bíblica que buscou justiça por sua irmã e acabou morto. No final, ele afirmou: "Por detrás do ato subversivo de Absalão há uma história de injustiça e omissão, de proteção do crime e de desumanas delinquências. Julgar a história pelo fim é tratar o sintoma como causa. Não há como curar uma ferida sem tratá-la pela origem".
No documento, a PF menciona encontro entre Jair Bolsonaro e o padre Genésio Lamounier Ramos no dia 12 de dezembro de 2022, ao listar falas do então presidente da República para a militância bolsonarista na porta do Palácio da Alvorada.
Na ocasião, o padre, da Diocese de Anápolis – GO, foi recebido por Bolsonaro e, diante do espelho d’água do Alvorada, fez uma oração que, na avaliação da Polícia Federal, teria incitado “a realização de um golpe de Estado com a participação das Forças Armadas”.
“Após o dia 9 de dezembro, Jair Bolsonaro realizou pelo menos outros dois encontros com seus apoiadores no Palácio do Alvorada. No dia 12 de dezembro de 2022, o evento contou com a presença do padre Genésio Lamounier Ramos, que fez um discurso incitando a realização de um golpe de Estado com a participação das Forças Armadas”, diz a PF no relatório.
“Abençoai, Senhor, as nossas Forças Armadas. A maioria absoluta. A bandeira do Brasil. Abençoai nossos soldados, oficiais, os praças, suas famílias. Senhor, dai coragem a eles! Inteligência para que nunca prestem continência para um bandido safado”, declarou Genésio. Além de incentivar os presentes no Palácio da Alvorada, o clérigo fez críticas ao PT, partido do presidente Lula, chamando-o de “organização criminosa”. O relatório também menciona a presença de uma faixa com a inscrição: “intervenção militar com Bolsonaro no poder”, reforçando a tentativa mal sucedida de golpe.
No dia seguinte, 13 de dezembro, o padre Genésio foi entrevistado ao lado de um colega, padre Cristiano, da diocese de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, dentro de uma barraca no acampamento do QG do Exército. Ele disse que a Constituição estava sendo desrespeitada e era importante fazer pressão sobre o Exército por uma intervenção militar. O padre disse ser fã de Olavo de Carvalho. "Se eu tiver que pedir benção para bandido no País, se eu tiver que prestar continência para ladrão, eu prefiro morrer", declarou.
Além do padre Genésio e do padre José Eduardo, um terceiro sacerdote é mencionado no relatório final da Polícia Federal (PF) sobre o inquérito do golpe. Trata-se do padre Paulo Ricardo, da Paróquia Cristo Rei em Várzea Grande, região metropolitana de Cuiabá, conhecido na internet por sua postura conservadora.
Padre Paulo Ricardo é inicialmente citado em um e-mail enviado pelo padre José Eduardo a Filipe Martins, então assessor para Assuntos Internacionais de Bolsonaro. Na mensagem, José Eduardo fala do colega e solicita um encontro com o presidente Jair Bolsonaro.
"Sabendo da firme posição do presidente Jair Bolsonaro em defesa da vida e contra o aborto, Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior e eu, que estamos há anos engajados no movimento pró-vida e conhecemos bem o desenvolvimento dos dispositivos facilitadores do aborto em nossa nação, gostaríamos de ter uma conversa privada com o presidente para lhe referir algumas iniciativas que podem ser tomadas imediatamente pelo Poder Executivo e que, portanto, são de seu especial interesse", destaca o e-mail, citado pela PF.
A PF também identificou uma troca de mensagens, em 12 de dezembro de 2022, entre José Eduardo e o padre Paulo Ricardo, na qual Paulo Ricardo afirma estar conversando com Filipe Martins. "Ainda foi identificado um registro de conversa que reforça a ligação entre o padre José Eduardo e o ex-assessor Filipe Martins. Trata-se de um diálogo realizado com o contato salvo como ‘Paulo Ricardo de Azevedo Jr.’, vinculado ao número de telefone +5565….., o qual pertence a Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, em 25/12/2022, período em que os investigados ainda nutriam a esperança de consumação do golpe de Estado. Na mensagem, José Eduardo diz: ‘Estou falando com o Filipe Martins’", afirma o relatório da PF.
Apesar de serem mencionados no relatório, os padres Genésio e Paulo Ricardo não estão entre as 37 pessoas indiciadas pela Polícia Federal no inquérito do golpe. O único sacerdote indiciado foi José Eduardo. Paulo Ricardo tem 5,8 milhões de seguidores nas redes sociais e é conhecido por sua influência religiosa por meio de palestras e venda de cursos sobre espiritualidade e doutrina da igreja católica.
Em 2021, uma foto de Paulo Ricardo segurando uma arma ao lado do escritor Olavo de Carvalho viralizou na internet. Em outro vídeo, publicado em 2015 no canal de Jair Bolsonaro no YouTube, o ex-presidente aparece palestrando dentro de uma igreja em Taguatinga (DF), junto com o padre Paulo, defendendo a família tradicional contra a "ideologia de gênero" e mencionando o “kit gay”.
A participação de líderes religiosos em um suposto golpe contra o presidente Lula traz à tona a questão do papel da Igreja na política brasileira. A linha que separa a fé e a política, já tênue em muitos casos, parece ter sido cruzada de forma alarmante. Especialistas apontam que este episódio pode levar a uma apuração mais rigorosa sobre as atividades políticas de líderes religiosos no país.
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Golpe santo: Quem são os padres citados no relatório da PF. Artigo de Zé Barbosa Junior - Instituto Humanitas Unisinos - IHU