25 Junho 2024
"A realidade é o capitalismo e o capitalismo é a realidade, não é mesmo? Não há alternativa. Esse seria um dos pensamentos mais difundidos em nosso imaginário coletivo, incorporado a esse sistema hegemônico que tem todos os tipos de estratégias para construir essa ideologia do inamovível, que Mark Fisher batiza de realismo capitalista", escreve Álvaro Soler Martínez, em artigo publicado por El Salto, 07-06-2024.
Quando uma entidade começa a agir
contra o que é melhor para si e a destruir a si mesma —
como, infelizmente, os seres humanos fazem com frequência, segundo observa Spinoza –,
é porque forças externas tomaram conta dela.
(Mark Fisher, Emotional Engineering, k-punk, 3 de agosto de 2004)
Em seus últimos ensaios, pouco antes do suicídio, pensador teorizou sobre como o sistema neutraliza toda alternativa, por meio de culpas e capturas. Há antídoto: desindividualizar o sofrimento e converter em prazer a consciência de classe.
As forças externas contras as quais Mark Fisher adverte são onipresentes, tentaculares e visíveis nos aparatos culturais da sociedade capitalista. Ligamos a televisão e um anúncio de alarmes contra roubo nos diz que a compra desse dispositivo nos trará segurança. Mudamos de canal e somos informados, em uma das dezenas de programas conservadores de entrevistas, que a imigração é um desafio ou, pior, uma ameaça que devemos enfrentar. Nossa identidade está em jogo, nosso bem-estar, quem somos ou o que achamos que somos.
O ressentimento é lançado sobre nós, a classe trabalhadora, como uma isca que tendemos a morder. Longe de possuir uma forte consciência de classe, a cultura neoliberal cultiva uma falsa consciência de classe, uma autopercepção que está entrincheirada em uma construção reacionária de identidade.
Como Georg Simmel nos alertou em Sociología del Extraño, o mecanismo de construção subjetiva diante da alteridade geralmente está associado à violência. Ou seja, todos esses mecanismos sociais e cognitivos que acionamos quando nos relacionamos com aqueles que percebemos como diferentes e externos ao nosso grupo tendem ao estigma, à incompreensão, ao ódio ou ao medo. Esses fatores são usados contra nós na cultura capitalista.
Assim, acabamos percebendo como inimigos em potencial o trabalhador imigrante, o movimento feminista, o movimento antirracista e os movimentos sociais ligados a minorias historicamente oprimidas. Esses últimos são fundamentais para entender por que os discursos neofascistas estão avançando tão rapidamente entre a classe trabalhadora, estimulados pelas redes sociais, pela televisão, pelo cinema e pela literatura: individualismo, machismo, racismo, masculinidade, glorificação da violência e militarismo estão se aninhando cada vez mais nas fileiras dos trabalhadores, cada vez mais jovens.
Também é fundamental vislumbrar como o capitalismo consegue esvaziar todas as expressões culturais alternativas que propõem novas estruturas de pensamento, ação e transformação da realidade. A maquinaria neoliberal as absorve como um parasita que, pouco a pouco, esvazia a vítima de seu conteúdo interno, deixando apenas a carcaça, enquanto a larva do capital dorme saciada atrás da casca.
Assim ocorrem a colonização e a subsequente mercantilização de movimentos como o antirracismo ou o feminismo, bandeiras, em muitas ocasiões, de críticas mordazes ao capitalismo que, despojadas de sua análise de classe, tornam-se meras mercadorias neoliberais que sustentam o sistema.
O filósofo citado no início deste texto, Mark Fisher, em sua obra póstuma Post capitalist Desire: The Last Classes, assume a derrota esmagadora da esquerda nessas décadas de hegemonia neoliberal, uma derrota que decorre de como o capitalismo, como sistema social, capturou o desejo. Essa capitulação não pode ser compreendida sem a lógica dos processos de homogeneização e apropriação que o capitalismo realizou culturalmente.
Consequentemente, para Fisher, o desejo do proletariado é completamente mercantilizado e incorporado à lógica econômica e mercantil capitalista. Como Fisher adverte nesse mesmo livro, com referência ao filósofo marxista Georg Lukács: “Para ver as coisas como externas a nós, não podemos estar nelas” (Fisher: 180).
Dessa forma, a luta contra a alienação como base para o retorno a uma consciência de classe, mais necessária do que nunca, é o que Fisher nos chama a reivindicar para gerar novas formas de pensamento e desejo. Um novo rearmamento ideológico desvinculado do círculo vicioso que o capital constantemente projeta para nós como natural, imediato e normalizado: “Todos nós poderíamos estar trabalhando muito menos, e essa é a loucura da coisa (…) eles produzem uma escassez artificial de tempo para produzir uma escassez real de recursos naturais” (Mark Fisher, Post-capitalist Desire: 181).
Por meio da frase acima, Fisher nos alerta sobre como a repressão no capitalismo tardio se baseia na repressão pela repressão, um paradoxo autoritário. Anteriormente, a repressão, além de exercer o controle social óbvio, era justificada em um suposto contexto de escassez de recursos. Mas com o capitalismo e o progresso tecnológico por meio das revoluções industriais e a estruturação de sociedades que têm acesso a uma grande quantidade de energia exossomática, o problema da escassez pode ser resolvido ou abordado pela primeira vez com solvência.
No entanto, o capital coloca em movimento uma estrutura de repressão absoluta e sem precedentes, que subjuga o trabalhador por todos os lados e que tem como objetivo dinamitar a possível conscientização e a subsequente organização política. Qual é a chave para lidar com esse contexto, de acordo com Fisher? Atacar o realismo capitalista.
A realidade é o capitalismo e o capitalismo é a realidade, não é mesmo? Não há alternativa. Esse seria um dos pensamentos mais difundidos em nosso imaginário coletivo, incorporado a esse sistema hegemônico que tem todos os tipos de estratégias para construir essa ideologia do inamovível, que Mark Fisher batiza de realismo capitalista, um conceito mencionado algumas frases acima.
Consequentemente, o realismo capitalista é uma restrição ideológica, um pensamento latente em todos os pensamentos atuais onde, como uma larva, sempre verte uma gênese comum: não podemos pensar fora do capital.
Isso tem várias consequências. O pessimismo é normalizado e o imobilismo é justificado por pura lógica: qual é o sentido de tentar mudar as coisas se, no final, não podemos nem mesmo propor alternativas políticas para o futuro? Diante desse cenário, é lógico que a ansiedade e a depressão se aninham em abundância sobre nossas cabeças. Não é à toa que essa é a doença de nosso tempo: um sintoma coletivo do que a alienação pode causar. Um sintoma que, além disso, é difícil de detectar como social, já que o realismo capitalista atomiza nossa capacidade de análise, vendo tudo por meio de uma individualidade exacerbada; uma visão de prisão para entender as estruturas sociais que nos subjugam. Como o próprio Fisher adverte: “Há algum tempo, uma das táticas mais bem-sucedidas da classe dominante tem sido a responsabilização. Todos os membros das classes baixas são levados a acreditar que a pobreza, a falta de oportunidade ou o desemprego são culpa deles, e de mais ninguém. As pessoas se culparão em vez de culparem as estruturas sociais, que, da mesma forma, foram levadas a acreditar que não existem de fato” (Fisher, The Ghosts of My Life).
Mark Fisher fala sobre isso com mais profundidade no livro Postcapitalist Desire (“Desejo pós-capitalista”), onde, com uma inquietação perceptível, ele busca nos pensamentos fronteiriços de nosso tempo – marxismo, aceleracionismo, filosofia pós-moderna etc. -pa chave para o modo como o sistema capitalista usa nosso desejo, molda-o, manipula-o e instrumentaliza-o por meio da publicidade, da mídia, da propaganda política e da cultura popular.
O capitalismo, com grande inteligência, subjuga os possíveis desejos de nos relacionarmos de diferentes maneiras, atacando aquelas formas culturais que propõem alternativas: comercializando-as, deixando-as vazias de significado contracapitalista. O desejo capitalista é tão forte que é muito difícil avançar politicamente na direção do pós-capitalismo, porque tudo está impregnado desse fetiche comercializado do capitalismo. Ou seja, tudo é atravessado pela lógica produtiva, econômica e comercial do capitalismo.
Este tipo de colonização do desejo é o que Fisher quer atacar, promovendo um desejo coletivo para além do capitalismo. Isto requer uma transformação na forma como pensamos e sentimos, bem como nas estruturas sociais e econômicas que nos rodeiam. Para tal tarefa é necessário um regresso à consciência de classe, compreendendo como funciona o nosso desejo, sabendo de que forma a classe trabalhadora está presa dentro do capital, como o prazer e mesmo o sofrimento nos ligam inconscientemente a este sistema; de como o ressentimento é usado contra nós, estruturando uma consciência anticlasse onde a identidade rígida, nacionalista e racial é usada pelo neoliberalismo para que vejamos o nosso sofrimento de forma atomizada, colocando o rótulo de inimigo ou concorrente ao lado daquele que compartilha os mesmos traços nas relações sociais. Parece familiar para você? É isso mesmo, Fisher abre com um bisturi preciso todas aquelas pequenas metástases que destroem a nossa consciência e, por sua vez, abrem uma estrada reta e acessível para a reação, a luta interna, a desorientação e o fascismo.
O final do Postcapitalist Desire é realmente triste, como se fosse uma pequena piada, o capitalismo e suas consequências psicológicas mais desastrosas batem à porta desta obra. O livro conta no Apêndice 1 que as aulas do seminário nas quais se baseia são abruptamente interrompidas pelo suicídio de Fisher, que vivia com depressão severa há muitos anos. Contudo, seus alunos continuaram a utilizar a sala de aula para debater o que foi apresentado, compartilhar ideias e refletir sobre o caminho teórico que seu professor havia proposto.
O trabalho intelectual de Fisher é um trabalho em si tremendamente preso à idiossincrasia do nosso tempo, porque tanto ele como seus alunos vislumbram a necessidade de superar o capitalismo tardio. Um declínio que não podemos negar simplesmente com esperança e referências a supostas utopias. O livro Postcapitalist Desire também é especial porque é uma transcrição oral do último seminário de Fisher, e este tipo de texto dá origem à compreensão da espontaneidade do pensamento do emissor e do receptor.
Nessas últimas aulas ministradas pelo britânico, fica claro que Fisher tem vontade de viver e busca incessantemente a chave para sair do sistema que o deixa deprimido. Ele não conseguiu, mas fez sua parte e incentivou muitos outros a tentarem fazer a sua.
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O desejo pós-capitalista, segundo Mark Fisher. Artigo de Álvaro Soler Martínez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU