Os neoautoritarismos filofascistas: o novo ovo da serpente. Artigo de Castor M. M. Bartolomé Ruiz

Autoritarismos atuais têm inspiração em teóricos da soberania e disseminam o medo, a cultura do ódio e da mentira, bem como a criação de inimigos que são responsáveis pelas mazelas das sociedades democráticas espetaculares

Foto: Wikimedia Commons

10 Abril 2025

“Os fascismos, o nazismo e as ditaduras militares do século passado não caíram de repente como uma fatalidade natural sobre as democracias de então. Muito pelo contrário, os diferentes fascismos que assolaram o mundo se gestaram de modo lento e gradual dentro das próprias democracias, que viram surgir, gestar, nascer e crescer o ovo da serpente dentro delas como se fosse parte das próprias democracias tolerando a consolidação do autoritarismo”, reflete o Prof. Dr. Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz no artigo escrito com exclusividade ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Para o pesquisador, “o ovo da serpente dos fascismos foi deixado crescer intencional e estrategicamente, no início do século XX, pelas grandes potências da época e interesses do capitalismo, porque esses novos movimentos autoritários pareciam um mal menor que poderia frear o comunismo e o socialismo. Consideraram os fascismos como movimentos marginais, que nunca poderiam se impor maioritariamente nas sociedades. O ovo da serpente foi deixado crescer porque se pensava ter o controle do seu veneno, que seria utilizado pelo capital como linha de frente violenta contra os movimentos socialistas e comunistas, que se pensavam eram os verdadeiros perigos”. A história provou os erros dessa compreensão, entre outros fatos, com a morte de 6 milhões de judeus no Holocausto, perpetrado por uma tanatopolítica estatal que operou via estado de exceção, portanto de acordo com o arcabouço jurídico alemão. Uma máquina mortífera que operou dentro da lei, amparada pela Constituição de Weimar.

Surpreendentemente, em pleno século XXI, uma nova ninhada de serpentes, metamorfoseadas sob diferentes vestes autoritárias, está prestes a eclodir dentro das democracias ocidentais. Inspirados em teóricos da soberania como Carl Schmitt e Thomas Hobbes, os atuais movimentos autoritários produzem o medo sistematicamente e o disseminam com o apoio do algoritmo das redes sociais. Ao compreenderem a política como desdobramento da guerra, valendo-se do binômino amigo-inimigo para fabricar culpados pelas mazelas de cada uma das sociedades, tais expressões neofascistas convertem estrangeiros, migrantes e refugiados em bodes expiatórios, indivíduos perigosos que devem ser contidos, deportados e até exterminados, a quem se voltam ódios que conduzem as massas nos mais diferentes contextos nacionais.

Professor titular dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos, Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz é graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Bilbao. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Membro da diretoria da Associação Ibero Americana de Filosofia Política (AIFP), coordena o Grupo de Pesquisa CNPq, "Ética, biopolítica e alteridade" e a Cátedra Unesco-Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: La mímesis humana: la condición paradójica de la acción imitativa (OmniScriptum Management GmbH – EAE, 2016); Os paradoxos do imaginário (Editora Unisinos, 2015) e Direito à justiça, memória e reparação (Casa Leiria, 2010).

Eis o artigo.

1. O ovo da serpente: atualidade e conjuntura do autoritarismo

O ovo da serpente é uma metáfora que prenuncia o mal em gestação, antes de que nos atinja de modo fatal. O cineasta Bergman criou uma autêntica obra de arte cinematográfica com esse mesmo título: O ovo da serpente. Nela, Bergman mostra com grande precisão estética e dramática como para um observador atento da época já era possível identificar, na década de 1920, o germe do nazismo nos incipientes movimentos autoritários que se organizavam e enraizavam socialmente como sendo uma novidade salvacionista dos inimigos da pátria.

Os fascismos, o nazismo e as ditaduras militares do século passado não caíram de repente como uma fatalidade natural sobre as democracias de então. Muito pelo contrário, os diferentes fascismos que assolaram o mundo se gestaram de modo lento e gradual dentro das próprias democracias, que viram surgir, gestar, nascer e crescer o ovo da serpente dentro delas como se fosse parte das próprias democracias tolerando a consolidação do autoritarismo. Os autoritarismos e totalitarismos fascistas e nazistas do século passado se gestaram, quase todos eles, dentro das democracias, como sendo alternativas políticas aceitáveis. Lembrando que Hitler e Mussolini foram eleitos democraticamente, com a estratégia de corroer as democracias por dentro e instaurar os regimes de terror que foram.

As palavras do Dr. Vergerus, o personagem importante do filme de Bergman, enunciam com precisão este fenômeno político: “É como o ovo da serpente. Através das finas membranas, você pode claramente discernir o réptil já perfeito”.

O ovo da serpente dos fascismos foi deixado crescer intencional e estrategicamente, no início do século XX, pelas grandes potências da época e interesses do capitalismo, porque esses novos movimentos autoritários pareciam um mal menor que poderia frear o comunismo e o socialismo. Consideraram os fascismos como movimentos marginais, que nunca poderiam se impor maioritariamente nas sociedades. O ovo da serpente foi deixado crescer porque se pensava ter o controle do seu veneno, que seria utilizado pelo capital como linha de frente violenta contra os movimentos socialistas e comunistas, que se pensavam eram os verdadeiros perigos.

No início do século XXI podemos vislumbrar, de novo, o ovo da serpente dos neofascismos e suas diferentes metamorfoses autoritárias aninhado em uma parte importante de nossas sociedades e democracias. Eles apareceram como movimentos marginais menores e foram crescendo sorrateiramente, alimentados por alguns grandes magnatas do capital e das tecnológicas, ao ponto de o ovo da serpente ter dado à luz autênticas serpentes do autoritarismo. Entre os muitos exemplos podemos mencionar a experiência traumática vivida no Brasil no governo Bolsonaro, e ainda não concluída, na sua tentativa de golpe de Estado, a qual incluiu tentativas de atentados terroristas como aquela, frustrada, de implodir um caminhão de gasolina no aeroporto de Brasília, a invasão e depredação do Congresso, o Senado da República e o STF, símbolos dos três poderes em Brasília, além do  plano para assassinar o então presidente e vice-presidente eleitos e membros do STF, etc.

Ao redor do mundo vimos prosperar o ovo da serpente em outras várias latitudes, como nas duas eleições do presidente Trump, nos EUA, que atualmente está submetendo o mundo a uma espécie de conflagração belicosa ultranacionalista e imperialista de imprevisíveis consequências. Concomitantemente, Trump governa internamente como um autêntico autocrata na base de atos de exceção com as denominadas “ordens executivas”. Mas o ovo da serpente cresceu e se instalou em múltiplos países e ganhou o poder nos governos de Viktor Orbán na Hungria, de Donald Tusk na Polônia, de Dick Schoof na Holanda, de Benjamin Netanyahu em Israel, de Erdogan na Turquia, de Giorgia Meloni na Itália, de Putin na Rússia, de Alexander Lukaschenko na Bielorússia, de Milei na Argentina, de Nayib Bukele em El Salvador, inclusive numa outra versão gêmea pelo avesso nos governos de Daniel Ortega na Nicarágua, Maduro na Venezuela, entre outros países onde o ovo da serpente do autoritarismo cresceu e fincou raízes.

Além dos governos mencionados, o autoritarismo está no auge emergente e crescente em muitos países nos quais os movimentos de extrema-direita se tornaram populares e até com chances de ganhar as eleições e tornar-se governo, como Le Pen na França, o Partido da Liberdade na Áustria, o partido AfD na Alemanha, Vox na Espanha, partido Chega em Portugal, etc. Todos os países e movimentos mencionados mostram que o ovo da serpente do autoritarismo no século XXI deve ser levado tão a sério como deveria ter sido considerado nos fascismos, o nazismo de início do século XX e nas ditaduras militares posteriores.

Uma característica comum é que todos estes movimentos autoritários têm suas peculiaridades nacionais, porém todos eles estão articulados mundialmente, a modo de uma “internacional autoritária ou neofascista”, cuja articulação está-se modificando e aperfeiçoando ao longo das décadas. Essa articulação inclui financiamento internacional, apoio logístico na propaganda algorítmica, articulação política, assessoria de propaganda, etc. Na campanha política de 2016, na qual se elegeu por primeira vez, Trump, teve um grande destaque a figura de Steven Bannon como articulador da campanha e, também, como articulador internacional deste movimento autoritário. Ele utilizou subrepticiamente (ao menos essa foi a versão oficial) as fontes algorítmicas de Facebook com a finalidade de inocular propaganda subliminar em milhões de usuários, de tal modo que conseguiu direcionar uma grande parte da “opinião pública” desses milhões de usuários para se tornarem seguidores de Trump.

Posteriormente, a articulação internacional do autoritarismo tomou como referente principal o encontro anual da Conservative Political Action Conference (CPAC), que reúne anualmente nos Estados Unidos aos principais representantes nacionais e internacionais deste movimento autoritário. Como parte da estratégia organizativa, há uma réplica desta Conservative Political Action Conference (CPAC) em cada país, para consolidar cada organização nacional. Assim no Brasil aconteceu em 2024, em balneário Camboriú, Santa Catarina a quinta edição da Conferência da Ação Política Conservadora (CPAC), versão brasileira do evento Conservative Political Action Conference.  De modo semelhante ocorre em diferentes países, nos quais se replicam as consignas e estratégias da Conservative Political Action Conference dos Estados Unidos, para adaptar e sintonizar com os objetivos comuns desta internacional autoritária que utiliza. O apelativo de conservadora é utilizado para disfarçar ideologicamente o veneno do autoritarismo que realmente carrega. Há muitos outros partidos políticos conservadores nos diferentes países que não se alinham com o veneno autoritário desta articulação e por isso mesmo são partidos e movimentos conservadores deixados de fora e considerados até inimigos políticos.

O ovo da serpente está sendo incubado em grande escala, ainda que o modo de atuação dos atuais movimentos autoritários não tem, ainda, a violência e truculência que os movimentos fascistas e nazistas manifestaram em seu momento. Tanto a violência como a truculência são elementos táticos e formam parte dos objetivos estratégicos para a implementação efetiva do poder quando necessário for. O ocorrido no ataque ao Capitólio nos Estados Unidos, 2021, ou a sequência de eventos violentos do Brasil, 2023, mostram o potencial de uma violência inserida na estratégia política destes grupos e que ainda não se manifestou em toda sua virtualidade, como ocorreu com o nazismo.

Diante desta conjuntura histórica para melhor entender e tentar neutralizar o ovo da serpente, cabe nos questionar quais são as estratégias políticas através das quais esses novos movimentos autoritários se tornam populares e populistas?

2. O rosto da Górgona: lógica do autoritarismo

A górgona é o monstro da mitologia grega cujos cabelos estão formados por serpentes venenosas e rostos horríveis que transformam em pedra a quem as olhar nos olhos. Medusa é a górgona mais conhecida. Foi Walter Benjamin (1), que viveu os tempos trágicos do nazismo, quem associou a imagem da górgona aos fascismos. Benjamin persistiu sem fugir até o último momento para conseguir “olhar nos olhos da górgona”, quando os nazistas estavam entrando em Paris. Ele queria ver o mais perto possível o monstro do autoritarismo que estava assolando o mundo, para melhor entender o modo de combatê-lo. Pode-se dizer que a violência trágica do olhar da górgona atingiu este filósofo, pois por mais que ele tentou fugir, teve um final trágico petrificado pelo olhar da violência do totalitarismo.

a. Fabricação do inimigo

Uma das principais estratégias utilizadas pelos novos movimentos autoritários segue a linha estratégica dos movimentos fascistas e está inspirada no pensamento filosófico de Carl Schmitt (teórico jurista nazista) (2) e de Hobbes (3), que consiste em considerar a política como um desdobramento da guerra. Segundo Schmitt, a essência da política está na capacidade de distinguir entre amigo/inimigo (SCHMITT, Carl. O conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1992), e a comunidade se torna política quando se sente ameaçada existencialmente por um inimigo e precisa se defender contra ele. Ou seja, a política se estabelece como um ato de guerra. De tal modo, que a violência da guerra não é algo só entre Estados, mas um elemento constitutivo da política que acontece internamente na luta contra o inimigo do Estado. Desse modo, a violência da guerra se internaliza na política como uma violência contra o inimigo que pretende destruir a sociedade e a nação ou Estado. O caráter genuinamente político se manifesta na relação polémica (polemos-guerra) entre amigo e inimigo. Essa relação de polemos é que diferencia, para Schmitt, a política do mero caráter associativo ou comunitário de um grupo.

Para Schmitt, a inimizade é constitutiva das relações sociais e da própria política, de tal modo que a política é sempre uma ação para imunizar-se contra os inimigos. A guerra não é só um desdobramento da política, mas a política enquanto tal. E essa guerra polémica da política só pode acontecer se identificamos um inimigo interno da sociedade.

Quando uma sociedade não consegue identificar o inimigo, é um sintoma de decadência da política e uma falta de identidade coletiva para se defender das ameaças. Só quando se consegue identificar o inimigo, a sociedade se eleva politicamente numa identidade comum que a impulsiona a defender-se dele. Com o inimigo, diferente dos adversários ou meros competidores, não há possibilidade de conciliação, acordos ou contratos. A relação com o inimigo é uma relação de guerra/polemos. Na guerra se combate para destruir o inimigo, só assim se vence esse conflito. Da mesma forma, na visão de Schmitt, a política consiste em destruir o inimigo e não em procurar acordos ou pactos de governo. Porque o inimigo é uma ameaça real contra a existência de toda sociedade e só a sua eliminação pode garantir a sobrevivência da sociedade.

Este discurso filosófico de Schmitt teve amplo eco nos movimentos fascistas do século XX, que o implementaram em suas estratégias populistas. O mesmo discurso continua a ecoar dentro dos princípios estratégicos dos novos movimentos autoritários. Os movimentos fascistas identificaram os inimigos nos comunistas-socialistas e no caso dos nazistas também nos judeus e outras raças “impuras”. Atualmente, um dos primeiros objetivos dos novos movimentos autoritários é fabricar o inimigo. Cada movimento autoritário deve fabricar um inimigo em seu próprio país, de tal modo que esse inimigo possa ser apresentado como uma ameaça para existência da nação e da pátria.

Nos países de capitalismo mais desenvolvido, a fabricação do inimigo foi direcionada para a pessoa dos estrangeiros, migrantes e refugiados. Os diferentes movimentos de extrema-direita de cada país não cessam constantemente de culpar os estrangeiros por quase todos os males do país. Os estrangeiros migrantes ou refugiados são considerados os responsáveis pelo desemprego que existe, pela violência social, pela precarização dos serviços sociais para os nacionais, pela diluição dos costumes tradicionais do país, etc. Os estrangeiros migrantes e refugiados são constantemente catalogados como os inimigos sociais mais perigosos que em poucos anos irão destruir as diferentes identidades nacionais e acabarão com a pátria como existe.

O estrangeiro é o xenos grego. Por isso, os novos movimentos autoritários focalizaram na figura do xenos o alvo fácil para fabricar um inimigo a partir do qual seja possível implementar a política como uma guerra, ou seja, como uma ação contra um inimigo. A xenofobia é fabricada estrategicamente pelos diferentes movimentos autoritários para identificar um inimigo nacional ao qual responsabilizar de todos os males e contra o qual lutar politicamente. Para estes movimentos autoritários, seguindo o pensamento de Schmitt, com o inimigo não há possibilidade de consenso, só há possibilidade da política da beligerância como a expulsão ou até aniquilamento do inimigo de diferentes formas, veja-se o que está acontecendo atualmente com os palestinos em Gaza e Cisjordânia.

Desse modo, através da fabricação da xenofobia como ideologia política, estes movimentos autoritários conseguiram penetrar nas camadas sociais mais populares, que acreditaram nesse discurso xenófobo, identificando o estrangeiro migrante e refugiado com um inimigo que ameaça a sua existência.

Em países como o Brasil, formado em grande parte por estrangeiros de segunda ou terceira geração, que em vez de receber grandes massas de estrangeiros vive um forte êxodo de migrantes para outros países, o discurso xenófobo não calou. No seu lugar, os movimentos autoritários fabricaram novos inimigos em duas figuras principais, os comunistas e os criminosos. De um lado fabricaram ou reciclaram das décadas passadas uma ficção quase surrealista da ameaça do comunismo que quer destruir a pátria. Há uma insistência constante na propaganda algorítmica para fabricar um suposto perigo comunista que irá destruir a pátria. Por mais que ele não exista, o importante é fazer crer que existe. Junto à fabricação do comunista como inimigo da pátria também insistiram muito em fabricar a figura difusa do criminoso como o grande inimigo que temos que destruir porque nos ameaça na nossa existência. A fabricação do perigo comunista como uma ameaça para a nação e da pátria foi e continua sendo produzida como uma narrativa real, de tal modo que nos meios mais populares, e através de uma insistente propaganda algorítmica, a figura da ameaça comunista ou esquerdista parece palpável. Os novos movimentos autoritários investem de forma até dramática contra essa ameaça e esse inimigo, afirmando que só uma força maior, uma força militar, poderá salvar o país dessa ameaça e desse inimigo.

A fabricação do inimigo aparece como uma estratégia comum a todos os movimentos autoritários contemporâneos, assim como foi para os movimentos fascistas, o nazismo e as ditaduras militares. Fabricar o inimigo é a pedra angular da política autoritária que a concebe como uma guerra contra o inimigo. Por sua vez, a fabricação do inimigo mostrou-se uma estratégia exitosa para conquistar a simpatia social de amplas camadas da sociedade.

b. A inoculação do medo e a nova servidão voluntária

Como é possível a captura da opinião pública com a consequente ampla adesão social aos novos movimentos autoritários? Pela fabricação do medo de modo concomitante à fabricação do inimigo.

Foi Hobbes o pensador que, na obra “O Leviatã”, já analisou a importância estratégica do medo como mecanismo político. O medo torna as pessoas inseguras e vulneráveis. Uma pessoa com medo se sente desprotegida, uma população com medo procura proteção e segurança. O medo é um sentimento cuja intensidade pode ser fabricada de modo aleatório. É possível sentir medo intenso de pequenas coisas e é possível fabricar o medo como um sentimento e sensação de vulnerabilidade e desproteção. Uma população amedrontada torna-se uma população facilmente conduzida por consignas de segurança. Uma população intimidada pelo medo adere com facilidade às consignas de um líder que lhe promete segurança e salvação. Uma população atemorizada aceita uma servidão voluntária a um líder que a proteja e lhe dê segurança e estabilidade almejadas.

Uma das principais estratégias dos fascismos e dos atuais autoritarismos consiste em inocular o medo nas pessoas e populações nas máximas doses possíveis. A estratégia da fabricação do inimigo tem por objetivo inocular medo nas populações para que se sintam vulneráveis e amedrontadas por esse inimigo que ameaça a sua existência, a existência da nação, a existência da pátria. Com objetivo de inocular o medo vem se utilizando uma autêntica maquinaria algorítmica que diariamente e de modo persistente bombardeiam as pessoas com mensagens, imagens, vídeos, montagens de todo tipo cujo conteúdo tem um objetivo comum: inocular medo do inimigo. As denominadas fazendas de bots se utilizam de complexos algoritmos que penetram nas redes sociais, selecionam perfis, constroem bolhas de relacionamento e alimentam cotidianamente o imaginário de centenas de milhões de pessoas com conteúdos atrativos, cuja mensagem explícita ou subliminar é o medo.

O medo é fabricado, junto com a figura do inimigo, com o objetivo de provocar uma sensação de vulnerabilidade na população e instigar um sentimento de amedrontamento. As pessoas amedrontadas pelo medo tendem a aceitar a servidão voluntária de um poder autoritário que supostamente terá a capacidade de solucionar a grave crise de existência da nação ou da pátria. Através da fabricação e inoculação do medo do inimigo, os novos movimentos autoritários se apresentam como os únicos que tem a capacidade e a vontade para fazer frente a um problema, que eles criaram ou hipertrofiaram para produzir o medo. As populações amedrontadas aceitam com docilidade serem conduzidas por líderes, führer, que se apresentam como salvadores da nação e da pátria. A insegurança produzida pelo medo inoculado provoca uma alta adesão social a estes movimentos autoritários, que se apresentam como os únicos com capacidade salvadora. Concomitantemente, as pessoas amedrontadas consentem a submeter-se de modo servil aos novos soberanos que a modo de Leviatã pretendem concentrar o máximo de poder neles para melhor combater os inimigos da nação e da pátria.

A fabricação do medo contra o inimigo utiliza-se, geralmente, dos mecanismos da propaganda de um nacionalismo excludente e xenófobo. Para produzir o medo do inimigo, há que fabricar o inimigo, e normalmente ele é expresso como inimigo da nação. O nacionalismo xenófobo deriva comumente para uma ideologia de defesa da pátria contra os inimigos. O patriotismo e o nacionalismo são fabricados e inoculados como sentimentos e ideologias através das quais se divide de forma bipolar a sociedade entre os amigos/inimigos. Os amigos são os patriotas e defensores da nação, os inimigos são todos os outros. O patriotismo é assim fabricado como sentimento que se contrapõe ao medo. Quando maior for o medo inoculado contra o inimigo, mais intenso será o patriotismo contra esse inimigo.

O desfecho final da intensificação do medo do inimigo e do patriotismo contra o inimigo será a violência. Esta deverá anular ou aniquilar esse inimigo que ameaça a existência da nação e da pátria, oferecendo uma espécie de salvação nacional. Os novos movimentos autoritários têm uma forte matriz militarista, pois consideram a guerra como o componente essencial da política contra o inimigo. Por isso, os movimentos autoritários tendem a selar pactos e se ramificar dentro dos aparatos de segurança do Estado, para conseguir a adesão dos seus membros. O forte perfil militarista dos novos movimentos autoritários reproduz ipsis litteris o militarismo desenvolvido pelos movimentos fascistas no século passado. Os movimentos fascistas criaram as escolas militares, colônias de férias militarizadas para crianças e adolescentes, desfilavam militarmente pelas cidades e quando necessário atuaram como forças paramilitares como as SA nazistas ou denominadas os “camisas pardas”, “os camisas pretas” do fascismo italiano, “A falange da camisa azul” do fascismo espanhol, “os camisas verdes” do integralismo brasileiro ou as camisas verdes amarelas dos atuais movimentos bolsonaristas. Esta estética militarista projeta o objetivo central destes movimentos: impor uma matriz autoritária e hierarquizada ao conjunto da sociedade.

Resulta paradoxal e ao mesmo tempo coerente que o modelo de escolas cívico militares mais desenvolvido seja o do governo de Maduro na Venezuela. Este governo é altamente militarizado e tende a militarizar a sociedade venezuelana como um todo. Segue o modelo schmittiano de conceber a política como luta contra os inimigos da pátria. Afora os debates superficiais entre os diferentes modelos autoritários, as propostas do modelo bolsonarista de escolas cívico militares e a militarização da educação como modelo de convivência social encontra seu símil mais próximo na autocracia imposta pelo governo de Maduro na Venezuela.

A estratégia que fabricou o inimigo e inoculou o medo nas populações tem por finalidade última conseguir o poder. Para conseguir o poder, capturam o apoio populista dessas populações através da fabricação de um líder.  O líder autoritário é seguido com “espontaneidade” pelas populações que foram capturadas pelos dispositivos do medo ao inimigo como sendo o salvador da pátria. Projetam-se no líder áureas messiânicas, uma espécie de novo “messias” que vai salvar a pátria e a nação dos inimigos. Um messias que vai trazer segurança aos medos, provocados pelos próprios movimentos autoritários.

No limite, a estratégia visa inferir medo à população, medo dos próprios grupos autoritários. A estratégia tem por objetivo amedrontar a todos os opositores desses grupos, de tal modo que o medo deles faça dobrar-se aos indecisos e inseguros, que costumam ser a maioria, aos movimentos autoritários. Com este objetivo os movimentos fascistas, nazista e as ditaduras militares tinham braços paramilitares que amedrontavam a todos os opositores que encontravam pela frente. Através do medo destes grupos paramilitares violentos, muitas pessoas calaram servilmente e se dobraram a massificar-se na onda do autoritarismo, como um meio de camuflar-se entre a multidão e não sofrer represálias destes grupos. O caráter violento destes grupos paramilitares é palpável em muitas experiências atuais. No Brasil vivemos ainda a experiência do medo à violência destes grupos em muitos momentos, particularmente nas campanhas eleitorais. Em etapas anteriores as pessoas ostentavam livremente seus candidatos e partidos pelas ruas, como espaço de liberdade democrática. Nas três últimas eleições, quando os movimentos bolsonaristas foram ganhando força, o medo cobriu a cena da política. As pessoas tinham medo de manifestar-se na rua ou manifestar abertamente apoio a um candidato que não fosse bolsonarista porque havia contínuos atos de violência e amedrontamento dos opositores. Deste modo, o medo entra também na estratégia dos movimentos autoritários como um meio de se dobrar ao silêncio aos opositores e também como uma ferramenta para arrastar os indecisos amedrontados.

É neste contexto da estratégia do medo dos fascismos e dos autoritarismos que devemos ler o conhecido poema de Bertold Bercht, testemunha e vítima desses movimentos:

Já não havia mais ninguém para reclamar...

Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.
No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei.
No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico.
Como não sou católico, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram;
já não havia mais ninguém para reclamar.

3. O novo Leviatã: a exceção como dispositivo de governo

Os novos movimentos autoritários utilizam-se da retórica da liberdade para exigir o direito de poder expandir seu discurso autoritário. A retórica da liberdade é exibida como direito a poder utilizar-se dessa liberdade para ampliar sua influência corrosiva da própria liberdade democrática. Tendo os precedentes históricos dos fascismos, o nazismo e as ditaduras militares, que também cresceram como ovo de serpente acalentados pela “tolerância” democrática, os novos autoritarismos tendem a ser muito mais sutis nas suas estratégias autoritárias. A principal estratégia é conseguir utilizar as margens da lei para explorar as brechas possíveis como atos “legais” que certifiquem e legitimem o autoritarismo. Todos os movimentos autoritários encontraram nas respectivas constituições o dispositivo da exceção.

A exceção é um dispositivo jurídico-político que todas as constituições modernas incorporaram, através do qual em caso de emergência ou necessidade o governante poderá decretar a exceção suspendendo a legislação ordinária e dando poderes extraordinários ao governante para que possa gerir através de atos de governo excecionais a situação.

A exceção opera através da suspensão total ou parcial do direito ou dos direitos, e no lugar do vazio jurídico provocado por essa suspensão emerge o arbítrio do poder soberano do governante. A exceção transfere para o governante o poder soberano do direito, proporcionalmente à retirada dos direitos de cidadania dos governados. Tudo isso se legitima porque há uma necessidade urgente ou extrema que assim o demanda.

A exceção, enquanto dispositivo jurídico-político, confere ao governante poderes excepcionais. Ao mesmo tempo que outorga ao governante poderes excecionais, retira proporcionalmente direitos dos governados. As medidas de exceção operam numa proporcionalidade inversa: na medida em que se aumenta o poder soberano do governante, se tornam mais vulneráveis os governados por essas medidas de exceção. A exceção, enquanto dispositivo de governo, faz reaparecer nas democracias modernas e nos Estados de direito a figura do poder soberano e, concomitantemente, as vidas vulneráveis a esse poder soberano, as vidas nuas. A gravidade dessa correlação entre o poder soberano e a vida nua vai depender do grau da exceção.

Lembremos que quando Hitler assumiu o poder democraticamente invocou o artigo 48 da Constituição do Weimar que outorgava ao governante, que em caso de necessidade extrema, pudesse suspender a constituição por tempo indeterminado e governar por decretos pessoais de exceção. Hitler invocou unilateralmente um estado de gravidade extrema do perigo da nação para aplicar o artigo 48 e, com isso, pode-se dizer que seu governo de terror não cometeu uma irregularidade jurídica, pois atuou dentro das “quatro linhas da constituição”, dado que a Constituição do Weimar permitia suspender o próprio Estado de direito.

Este fato histórico, assim como os diferentes Atos Institucionais das ditaduras militares do Brasil, que suspendiam direitos e outros atos de exceção nas ditaduras da América Latina nas décadas de 1960 a 1980, levantam a questão: quando há de fato um estado de necessidade ou emergência suficiente para decretar a exceção? Apesar de que muitas das constituições mais contemporâneas tentam limitar ao máximo o arbítrio de um poder soberano, in extremis, quem decide quando há necessidade da exceção é o próprio governante. Isso coloca as democracias numa espécie de aporia, pois a decisão sobre a necessidade ou urgência para suspender os direitos é conferida ao governante, ainda que com filtros, dependendo de constituições.

A exceção transfere para o governante um poder de arbítrio pelo qual suas decisões se tornam leis, sem necessidade de passarem pelos filtros das democracias, como o Parlamento. Esses atos de exceção têm denominações diferentes em cada país, como decretos lei, decretos de emergência, atos administrativos, etc. Todos eles têm a peculiaridade de que conferem ao governante um poder soberano para decidir, tornando suas decisões leis.

Um exemplo plástico da utilização da exceção como dispositivo de governo nos novos movimentos autoritários o encontramos nos 46 decretos lei, denominados de “ordens executivas” (executive orders), que são atos excecionais de governo, assinados pelo governo Trump nos primeiros dias de seu segundo mandato janeiro de 2025. 

Para justificar alguns destes atos de exceção contra os migrantes, por exemplo, o governo Trump decretou o estado de emergência na fronteira com o México, alegando que há problema de “segurança nacional” nesses espaços. Com esse decreto, a constituição lhe outorga poderes especiais para que possa transferir recursos do Tesouro Nacional, decretar novas leis contra a deportação imediata de todos os migrantes que não tenham os papeis em dia, pode autorizar sua prisão, confinamento como se de criminosos fossem, tudo isso sem ter que passar pelos procedimentos da democracia formal. Esse expediente lhe possibilitou convocar o exército para a fronteira, como se houvesse um conflito bélico internacional. A transferência de poder soberano traz como consequência a produção de vidas nuas, neste caso as vidas dos migrantes, vidas vulneráveis ao arbítrio desse poder soberano.

A arbitrariedade para poder decidir sobre a necessidade de um estado de emergência também tem seu exemplo plástico na decisão do governo Trump de decretar o “estado de emergência em saúde” na fronteira do Canadá, alegando que nessa fronteira estão passando grandes quantidades de fentanil, droga que se consome em altas quantidades nos Estados Unidos e está provocando uma crise na saúde. Esse decreto de “emergência na saúde” deu ao governo de Trump poderes especiais para instigar uma guerra comercial contra o Canadá, pois ele tem declarado que quer e pretende que Canadá se torne o 51 Estado dos Estados Unidos, ou seja, uma anexação arbitrária e autoritária.

Outro exemplo ilustrativo de como é possível que na atualidade um poder soberano corroa as democracias através do dispositivo da exceção o encontramos na recente invocação pelo governo Trump da “Lei do inimigo Estrangeiro" (The Alien Enemy Act.) de 1798, de mais de 200 anos, porém ainda em vigor. Esta lei permite monitorar, prender e deportar cidadãos de “países inimigos” de forma rápida e sem precisar seguir o devido processo legal das cortes migratórias. Esta lei foi adotada três vezes ao longo dos 200 anos, coincidindo com as grandes guerras em que Estados Unidos estava envolvido. Esta lei nunca tinha sido invocada em período de paz. Bastou o atual governante decidir que há uma guerra fática contra os migrantes e os países que os exportam, para que essa decisão tenha suficiente base legal para invocar a aplicação dessa lei.  

Entre outros muitos exemplos de como é possível utilizar de modo arbitrário o dispositivo da exceção no Estado de direito e nas atuais democracias, podemos destacar ainda o caso dos governos de Orban na Hungria, de Jarosław Kaczyński na Polônia, e da tentativa semelhante de Benjamin Nentayahu em Israel, que não conseguiu por enquanto. Estes governantes são representantes destes movimentos autoritários que conseguiram o governo. Para poder governar autoritariamente por atos de exceção sem serem contestados pelo Tribunal Supremo de seus países, aproveitaram a ampla base de apoio que conquistaram no parlamento para aprovar uma série de medidas que enfraqueceram o judiciário. Implementaram reformas no STF, produzindo uma intervenção no judiciário, aumentaram por decreto o número de juízes no STF e ainda reduziram a idade de aposentadoria compulsória para juízes e promotores, abrindo espaço para indicações de aliados políticos. Orban criou o controverso Departamento Judiciário Nacional, para centralizar a administração e coordenar a indicações de novos juízes. Inclusive esse presidente criou uma lei eleitoral que alterou a contagem dos votos e que assegura uma quase que permanente vitória de seu partido. Desse modo, eles conseguiram nomear para o STF pessoas dóceis a suas consignas autoritárias e o STF, um dos pilares do Estado de direito e da democracia, ficou submetido ao poder de sua vontade soberana.

Cabe registrar que uma estratégia similar foi seguida pelos militares golpistas no Brasil. No ano 1965, a ditadura militar ampliou o número de juízes do STF de 11 para 16 juízes, para conseguir obter maioria para suas propostas. Depois do decreto do fatídico AI-5 três ministros do STF foram aposentados compulsoriamente, em protesto outros dois ministros também pediram aposentadoria, e a ditadura militar conseguiu cinco novas nomeações de juízes para o STF. Desse modo o STF se tornou um tribunal domesticado pela ditadura, que existia formalmente, mas que só servia para aprovar o autoritarismo do poder soberano que o modelou. É assim que o estado de exceção se torna uma norma legal.

Ainda cabe sublinhar que esta estratégia de domesticar o judiciário, sabotando a independência do STF, é um dos alvos principais dos movimentos bolsonaristas no Brasil. Através do parlamento se está tentando criar um conjunto de leis através das quais se consiga implementar no Brasil o modelo de Viktor Orban na Hungria, ou ainda o modelo da própria ditadura militar.

Estes breves exemplos são uma amostra de como a exceção é amplamente utilizada pelos movimentos e governos autoritários para conseguir impor sua vontade dentro do marco legal do Estado de direito e das democracias. Isso não esconde o fato de que o objetivo último de todos os movimentos autoritários é conseguir criar um fato grave pelo qual seja possível decretar uma exceção geral que transfira para o governante de turno um poder soberano maior, se possível absoluto, para governar por arbítrio de sua vontade.

Não por acaso vivemos no Brasil, ao longo de 2022 uma campanha algorítmica em grande escala e com apoios internacionais em defesa do golpe de Estado, com uma série de tentativas para desestabilizar a ordem social nos acampamentos na frente de quarteis, com uma ação orquestrada de depredação em grande escala em Brasília na diplomação de Lula, além de uma tentativa de atentado terrorista frustrado para implodir um caminhão de gasolina no aeroporto de Brasília no período do Natal, etc. Estes, entre outros vários, foram atos direcionados a criar as condições necessárias para que o ainda presidente Bolsonaro pudesse decretar o estado de exceção e, com poderes excecionais, conseguir anular as eleições. Felizmente, outros elementos da conjuntura nacional e internacional inviabilizaram a tentativa.

Para os movimentos autoritários a exceção é sua norma de governo!

4. O populismo e a legitimação social do autoritarismo

Uma das grandes incógnitas que cerca o auge atual dos movimentos autoritários é a adesão de grandes massas de população a este discurso. Os novos movimentos autoritários criaram um discurso atrativo e sedutor que consegue produzir o que denominamos de populismo. O populismo é um discurso que apela a pautas ou demandas populares. Algumas delas, convenientemente deformadas, se tornam uma estratégia estética sutil, complexa e atraente, que se adequa aos objetivos dos movimentos autoritários. O populismo emerge como uma experiência estética da política. Através da manipulação estética de elementos políticos, se oferece para os seguidores atraentes modelos de referência simbólica através dos quais se criam identidades compactas que assinalam os seguidores dos movimentos como portadores da verdade frente aos opositores, que sempre são catalogados como perversos antipatriotas, ou criminosos sociais, ou pervertidos morais, etc. O populismo é o resultado de uma estratégia estética de largo alcance, que visa modelar as massas a partir de alguns símbolos e consignas. O objetivo é criar modelos identitários fechados que ofereçam segurança de pertencimento aos seguidores e lhes confiram uma espécie de orgulho de pertença ao movimento.

O paralelismo que existe entre as estratégias dos movimentos fascistas e os novos movimentos autoritários não é casualidade, e no caso específico do populismo, os novos movimentos autoritários seguem estratégias muito semelhantes às que implementaram os movimentos fascistas para conseguir ampla adesão popular. Entre outras várias, gostaríamos de destacar quatro estratégias do populismo autoritário.

A fabricação da mentira como arma política

Como já antecipara Voltaire, nos primórdios da propaganda moderna, “mente, mente, que alguma coisa fica”. A utilização da mentira como arma política sempre esteve presente, de uma ou de outra forma, nas lutas pelo poder. O que nunca havia acontecido de modo tão explícito é que nas democracias modernas se utiliza-se de modo explícito a mentira para ofuscar as verdades. Com uma estratégia cuja base de mentir compulsivamente sobre um aspecto, essa mentira repetida muitas vezes e de muitas formas se torna uma verdade acreditada pelos seguidores desse líder. Foi durante as campanhas de Donald Trump e durante o exercício de seu governo como presidente dos EUA, que ele utilizou de forma estratégica a mentira explícita e constante como arma para ofuscar seus adversários políticos. Foi nesse contexto que se cunhou o conceito de pós-verdade para se referir à nova época na qual a mentira pode ser uma outra forma de verdade, quando é aceita pela maioria.

A estratégia da mentira como arma política se utiliza de uma isca. Para fisgar a opinião pública de modo conveniente e que não consiga desvendar o alcance das mentiras, utiliza-se a estratégia de produzir muitas mentiras permanente. Quando se mente tanto, resulta muito difícil elucidar num debate público a falsidade de uma mentira, pois ela circula rapidamente pelas redes sociais e os meios de comunicação social com tanta rapidez, que quando aparece algum tipo de argumento para desconstruí-la, já há uma outra mentira circulando nas redes e tomando conta da opinião pública dos grupos. Desse modo, a mentira resulta difícil de descontruir e se torna uma arma política através da qual se consegue que uma grande massa de seguidores acredite em coisas absurdas logicamente, ou até esdrúxulas desde uma racionalidade básica.

A mentira permanente e sua circulação constante através das redes sociais e dos grupos afins consegue moldar a opinião individual dos sujeitos. Estes recebem essas mentiras na forma de vídeos, imagens, mensagens e não tendo como contrastar tanta mentira circulando ao mesmo tempo e tão rapidamente e aplaudida por tanta gente, muitas pessoas terminam sendo moldadas em sua opinião política. Além disso, também são modeladas em sua visão de mundo, em sua compreensão de valores e, desse modo, vão sendo introduzidos na bolha do autoritarismo como se fossem seguidores de verdades incontestáveis, produzidas por uma indústria da mentira.

A produção do ódio como ferramenta da condução das massas

Um dos objetivos principais da indústria da mentira é produzir uma cultura do ódio. O ódio é um sentimento complexo que, por sua vez, desata dentro das pessoas sentimentos primários como o medo e a violência. A fabricação da cultura do ódio é conexa com a estratégia da produção do inimigo como elemento político necessário no crescimento do autoritarismo. O ódio não é algo espontâneo, ele deve ser fabricado de modo sutil para conseguir visualizar no outro um inimigo que deve ser destruído. A cultura do ódio utiliza-se, inicialmente, do medo do outro diferente politicamente, ou culturalmente, ou etnicamente.

O medo é trabalhado pela indústria da mentira para produzir no outro uma ameaça a nossa existência. Esse outro opositor e diferente é alguém que nos ameaça de muitas formas, porque é o inimigo da pátria, porque é um estrangeiro, porque vai destruir a moral, entre outras coisas. A indústria da mentira trabalha constantemente as falsas feições do outro que deve ser odiado, modelando nele os piores rasgos possíveis, de tal modo que sua mera presença nos provoque ódio contra ele.

A indústria da mentira e a cultura do ódio estão interconectadas no objetivo principal de provocar uma bipolaridade social entre amigos e inimigos. A cultura do ódio tem por objetivo dividir, até violentamente se for o caso, a sociedade entre amigos e inimigos. Os seguidores dos movimentos autoritários se encharcam dessa bipolaridade produzida pela cultura do ódio, a tal ponto que conseguem ser conduzidos com facilidade para manifestações públicas de ódio como mostra de sinceridade íntima de seus sentimentos.

A conexão entre indústria da mentira, cultura do ódio e fratura bipolar da sociedade tem por objetivo final estabelecer um estado de “guerra de todos contra todos”, no modelo hobessiano, no qual se faça necessário invocar por um lado medidas de força que nos defendam e deem segurança contra esse caos (criado artificial e politicamente pelos movimentos autoritários. Por outro lado, esse caos social produzido pela indústria da mentira e a cultura do ódio é o solo fértil para que surja um caudilho ou “messias” salvador do caos, instaurado por eles mesmos.

Há uma espécie de aporia perversa que a indústria da mentira e a cultura do ódio provocam, pois elas são responsáveis pela produção de uma crispação social intensa da qual os movimentos autoritários pretendem ser os salvadores políticos.

A perversão autoritária dos algoritmos na nova indústria cultural

Os movimentos fascistas foram perspicazes na utilização dos então modernos meios de comunicação como o rádio, a imprensa e até o nascente cinema. Os movimentos fascistas produziram uma estética muito bem estudada e elaborada até nos mínimos detalhes. Os cartazes que circulavam nas ruas, a utilização midiática do rádio, que naquele momento era de ampla penetração, o desenho de uniformes para os seguidores, a confecção de bandeiras e símbolos que identificassem com orgulho aos seguidores, a criação de hinos próprios do movimento, a produção de grandes marchas e até desfiles paramilitares de grupos uniformados, com bandas de música cantando os hinos, tudo isso foi produzindo a atração estética do fascismo como um movimento popular.

O populismo fascista foi o resultado de uma estratégia estética muito bem desenhada. Joseph Goebbels, que foi ministro da Propaganda na Alemanha nazista é um exemplo histórico da importância e a grandeza da utilização dos elementos estéticos e das mídias do momento para conseguir a adesão massiva ao nazismo. O populismo do nazismo como dos fascismos e das ditaduras militares só foi possível porque houve uma estratégia que manipulou a estética para seduzir as massas.

Os novos movimentos autoritários também se mostraram muito expertos na utilização das modernas tecnologias algorítmicas para, através delas, conseguir manipular a opinião de milhões de indivíduos até formarem autênticas massas de seguidores. Há milhares de fabricas de algoritmos que diariamente disparam milhões de vídeos, imagens e mensagens nos inumeráveis grupos de seguidores nas redes para alimentar e modelar seu imaginário autoritário. A penetração capilar dos algoritmos, nos diferentes dispositivos e redes digitais acessíveis a todos os grupos sociais, tornou a moderna propaganda algorítmica um recurso muito poderoso para veicular a indústria da mentira e disseminar a cultura do ódio em grande escala.

Como exemplo histórico, podemos nos remeter à campanha política do primeiro governo de Trump, 2016, na qual se valeu de um ícone dos movimentos autoritários e responsável pela propaganda da campanha na época, Steve Bannon, quem utilizou uma grande empresa de tecnologia, Cambrigde Analytica, para manipular as fontes algorítmicas de dezenas de milhões de usuários de Facebook. A finalidade era produzir bolhas de perfis simpatizantes das ideologias autoritárias. Para tanto, se utilizava o envio constante de imagens e mensagens que ofereciam uma leitura da realidade cortada pelo perfil desses grupos e foram induzindo a opinião política e até a visão de mundo de milhões de indivíduos. Desse modo, através da indução algorítmica como nova estética autoritária, o discurso dos grupos da extrema-direita política foi penetrando nas camadas mais profundas da sociedade e constituindo uma nova identidade fechada de grupo contra os outros diferentes, considerados inimigos porque opinam diferente ou contrário.

A utilização dos algoritmos como nova estética política dos movimentos autoritários possibilitou-lhes uma penetração capilar refinada entre todos os grupos sociais. Criaram-se ao longo de todo o mundo centenas e até milhares de fabricas de bots, que produzem diariamente uma infinidade de conteúdo a ser despejado nas redes sociais através dos algoritmos. Estas fazendas de bots são financiadas pelos novos bilionários das tecnologias, pois muitos deles aderiram aos movimentos autoritários como espaço político de seu próprio crescimento econômico.

Desse modo, encontramos que na campanha do segundo mandato de Trump, se aliou diretamente ao maior bilionário do mundo, Elon Musk, que domina algumas das principais empresas de tecnologia do mundo. Mas, após a vitória de Trump, houve até um movimento político mais instigante, dado que através de pressões ou negociações, estes movimentos autoritários atraíram como apoiadores e até parceiros políticos e econômicos aos principais magnates das grandes empresas tecnológicas dos EUA. São as denominadas GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon), entre outras muitas empresas de tecnologia que foram aderindo a este perfil dos movimentos autoritários. Talvez entre as adesões que mais destacaram podemos mencionar as de Mark Zukeberg, principal diretor de algumas grandes empresas tecnológicas como Facebook, Instagram, Messengeer, WhatsApp, Oculus, Threas Mapillary, Worplace, Portal, pois Zukerberg mantinha historicamente posições mais democráticas e liberais, até de oposição às consignas dos movimentos autoritários da extrema-direita. Também Jeff Bezos, que é diretor e acionista maioritário de Amazon, do jornal Washintong Post, da companhia aeroespacial Blue Origin. Também os que foram fundadores de Paypal David Sacks e Ken Howery (que agora foi indicado para ser embaixador na Dinarmarca & Groenlândia).

Estes são exemplos do ápice da importância política das empresas tecnológicas para os novos movimentos autoritários. Além de representarem a máquina econômica que puxa o atual capitalismo financeiro, elas têm o poder de moldar as subjetividades em grande escala e massificá-las docilmente com seu grande poder algorítmico. A adesão e cooptação destas poderosas empresas de tecnologia reposiciona o poder dos algoritmos como a nova estratégia estética de condução das massas, assim como os movimentos fascistas fizeram no início do século com as então nascentes tecnologias de comunicação.

Democracias aclamatórias

A tese que estamos apresentando nesta reflexão diz respeito a que os novos movimentos autoritários percorrem um paralelismo sintético muito a fim ao que fizeram os movimentos fascistas, o nazismo e as diferentes ditaduras militares. A modo de conclusão, ainda que rapidamente, devemos assinalar o paralelismo que existe entre o modelo de democracia que os novos autoritarismos pretendem e aquele que os teóricos fascistas, como Carl Schmitt, denominavam de democracia pura.

Para Carl Schmitt a democracia só existe no momento da aclamação popular. É o rito da aclamação que, para Schmitt, expressa a mais genuína e única manifestação da democracia. A aclamação é o rito através do qual o povo aclama a seu “líder” (Fhürer), e só através da aclamação se pode reconhecer a vontade popular. A aclamação é um rito performativo. Assim como as legiões romanas em muitas ocasiões definiram o imperador pelo rito da aclamação, assim deve considerar-se a aclamação como um rito performativo através do qual se expressa a mais genuína vontade democrática do povo.  Schmitt denomina a este tipo de democracia aclamatória de “democracia pura”.

Os movimentos fascistas se legitimavam pela constante e insistente ritualização aclamatória do seu líder e foram prolixos em organizar permanentemente paradas militares ou cívicas em que as multidões aclamavam o líder. A aclamação tem por objetivo legitimá-lo socialmente como o verdadeiro dirigente da nação. Desse modo, a aclamação se torna o instrumento político através do qual os fascismos deturparam as democracias em demagogias autoritárias.

Fica evidente que o modelo aclamatório da democracia pura proposto por Schmitt se adequa perfeitamente ao projeto dos fascismos. Através da aclamação se provoca uma massificação extrema da vontade popular, a tal ponto que ela pode facilmente ser induzida pelos novos sofistas da democracia para o surgimento de regimes demagógicos, que é o perfil dos regimes autoritários. A democracia se transforma em demagogia pela massificação ritualizada da aclamação das massas. A corrosão demagógica das democracias é feita desde dentro, a partir da aclamação de um líder pelas massas. Este é o modelo de democracia para o qual querem nos conduzir os novos movimentos autoritários.

Cabe perguntar, como é que hoje os novos movimentos autoritários implementam o modelo aclamatório da democracia, se não existem as grandes cerimônias ou desfiles paramilitares de antanho?

Um dos meios através do qual se atualiza o rito da aclamação em nossa contemporaneidade é a produção da denominada “opinião pública”. A opinião pública opera como um novo indicador aclamatório do poder. A opinião pública, que na sua grande maioria emerge dos meios de comunicação social e dos algoritmos, se impõe quase que diariamente como um indicador aclamatório dos diferentes líderes políticos. Desse modo, a própria política contemporânea foi-se dobrando às estratégias midiáticas de produção e satisfação da opinião pública. A opinião pública é um indicador aclamatório do momento. Esse indicador aclamatório vai pautando para os diferentes líderes as estratégias a seguir se quiserem se manter no poder. O poder moderno é vassalo da opinião pública, que por sua vez opera como se fosse uma nova versão do dispositivo aclamatório.

A dependência da opinião pública como rito aclamatório para legitimar o governante ou líder de turno, coloca às democracias modernas sérios questionamentos e até aponta para contradições importantes, que os novos movimentos autoritários estão explorando ao máximo para dizer que as democracias devem derivar de vez em democracias midiáticas.

Um questionamento diz respeito à interdependência tão estreita que há entre a fabricação da opinião pública e os algoritmos ou meios de comunicação social. Quem detém o poder dos algoritmos nas grandes empresas tecnológicas poderá induzir uma grande parte da opinião pública. Desse modo conseguirão provocar uma massificação do novo dispositivo aclamatório através do qual elegem aos líderes autoritários como se fossem amplamente aclamados pelas massas.

Um outro questionamento diz respeito à deriva “espetacular” que as próprias democracias modernas e ainda a mesma política está tendo, uma vez que a lógica do poder tende a legitimar-se, cada vez mais, através do dispositivo da “opinião pública” como sendo o dispositivo legitimador do exercício do poder. Se a essência do exercício do poder das democracias contemporâneas fica quase que restrito ao dispositivo da opinião pública, significaria que a política cada vez mais se torna um espetáculo de massas, ao invés de uma deliberação pública. A política derivada em espetáculo incorpora todas as estratégias espetaculares para que o dispositivo da opinião pública opere em seu favor. Desse modo, os projetos políticos cada vez mais são formatados a modo de um produto a ser consumido por eleitores, reduzidos a consignas superficiais e vazias que vendem aquilo que os consumidores querem ouvir. Os cidadãos são reduzidos, cada vez mais, a um papel de consumidores de produtos ou de espetadores de um roteiro pré-fabricado. Os políticos, abdicando de sua vocação originária de serviço ao bem comum, se tornam atores treinados para ter a imagem que a opinião pública demanda no momento; treinados como atores para dizer o que os espectadores querem ouvir. As campanhas políticas perderam o sentido do debate público e se tornaram autênticos espetáculos com roteiros bem desenhados e estruturados por grandes profissionais da imagem e da propaganda. Tudo isso, vai tornando a política um espetáculo e as democracias em democracias espetaculares.

É nesse modelo de democracia espetacular que os novos movimentos autoritários encontram o terreno fértil para plantar o ovo da serpente e fazer que ele cresça com grande aclamação popular. O ovo da serpente cresce acalentado pela indústria da mentira que produzem os novos sofistas. Estes estão corroendo por dentro as democracias para transformá-las em demagogias. Os regimes demagógicos são facilmente liderados por governantes autoritários que conduzem as massas ao calor da aclamação massificada da nova opinião pública. O ovo da serpente está crescendo, de novo, no seio das democracias!

Notas

[1] Walter Benjamin (1892-1940): ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi fortemente inspirado tanto por autores marxistas, como Bertolt Brecht, como pelo místico judaico Gershom Scholem. Entre as suas obras mais conhecidas, contam-se A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1936), Teses sobre o conceito de história (1940) e a monumental e inacabada Paris, capital do século XIX.

[2] Carl Schmitt (1888-1985): filósofo, jurista e teórico político alemão. Membro proeminente do Partido Nazista, é considerado um dos mais significativos e controversos especialistas em direito constitucional e internacional do século XX. Para além dos campos do direito, sua obra abrange outros campos de estudo, como ciência política, sociologia, teologia, filosofia política e germânica. De sua extensa produção, destacamos A ditadura, O conceito do político e Teologia política.

[3] Thomas Hobbes (1588-1679): filósofo inglês, mais conhecido por seu livro de 1651 intitulado Leviatã, no qual ele expõe uma formulação influente da teoria do contrato social. É considerado um dos fundadores da filosofia política moderna. Influenciado por ideias científicas contemporâneas, desejava que sua teoria política fosse um sistema quase geométrico, em que as conclusões decorressem inevitavelmente das premissas. A principal conclusão prática de sua teoria política é que um Estado ou sociedade não pode ser seguro a menos que esteja nas mãos de um soberano absoluto. Disso decorre a visão de que nenhum indivíduo pode ter direitos de propriedade contra o soberano, e que o soberano pode, portanto, tomar os bens de seus súditos sem seu consentimento.

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