20 Março 2025
Com o polêmico envio de migrantes dos Estados Unidos para El Salvador, o presidente centro-americano busca mais do que benefícios econômicos, a começar pela validação de seu modelo carcerário, segundo analistas ouvidos pelo EL PAÍS.
A reportagem é de Bryan Avelar, publicada por El País, 19-03-2025.
Em uma nova produção com ambições cinematográficas, o presidente salvadorenho Nayib Bukele mostrou ao mundo outro vídeo de sua megaprisão, o Centro de Confinamento de Terroristas (CECOT), no último domingo. No vídeo, dezenas de policiais submetem vários homens com as mãos e os pés algemados, colocam alguns em carros blindados e outros em ônibus e os levam para a prisão, onde raspam suas cabeças e os vestem com roupas brancas de presidiários. O mais surpreendente é que desta vez os novos presos não são apenas membros das gangues Mara Salvatrucha 13 e Barrio 18, grupos criminosos para os quais a prisão foi construída, mas também — segundo a versão do governo Donald Trump — supostos membros da gangue venezuelana Tren de Aragua. Todos deportados dos Estados Unidos.
O voo, que chegou a El Salvador na noite de sábado com 261 pessoas a bordo, é o primeiro de um acordo alcançado pelos presidentes Bukele e Trump, sobre o qual quase nada se sabe. A única informação pública até agora é que o presidente salvadorenho se ofereceu para transformar o CECOT em uma extensão do sistema prisional dos EUA em troca de um pagamento de US$ 20.000 por pessoa por ano.
O acordo tem sido altamente questionado em ambos os países. Nos Estados Unidos, horas antes do pouso, um juiz ordenou que o governo paralisasse a operação e ordenou que os aviões que estavam no ar retornassem, o que não ocorreu. O governo Trump respondeu que a notificação havia chegado quando a aeronave já estava sobrevoando águas internacionais. O debate sobre se Trump desafiou uma ordem judicial continua e pode chegar à Suprema Corte. Enquanto isso, em El Salvador, especialistas questionam sob qual processo legal os deportados serão detidos em uma prisão de segurança máxima.
Para enviar as 261 pessoas ao CECOT, Trump invocou a Lei de Inimigos Alienígenas, uma lei dos EUA que está fora de uso desde a Segunda Guerra Mundial. Segundo alguns analistas, isso poderia constituir uma grave violação dos direitos humanos, já que os deportados foram enviados diretamente para uma prisão de segurança máxima sem julgamento.
As autoridades também não explicaram de quais crimes são acusados. Na manhã de segunda-feira, uma porta-voz da Casa Branca relatou que dos 238 venezuelanos no avião, 137 foram detidos sob a Lei de Inimigos Estrangeiros, mas os outros 101 foram deportados sob uma lei de imigração comum, o que significa que foram simplesmente acusados de entrar nos Estados Unidos sem documentos.
Isso fez soar o alarme em organizações de direitos humanos. Juan Pappier, vice-diretor da Divisão das Américas da Human Rights Watch (HRW), disse ao EL PAÍS que "há uma obrigação sob o direito internacional que proíbe os países de enviar migrantes deportados para contextos onde eles provavelmente sofrerão violações de direitos humanos. E me parece que, no sistema prisional de El Salvador, essas pessoas podem sofrê-las." "Se informações sobre o paradeiro deles não forem fornecidas em breve, poderemos estar diante de um cenário de desaparecimentos forçados", acrescentou
Por sua vez, Noah Bullock, diretor executivo da Cristosal, principal organização de direitos humanos de El Salvador, ressalta que o sistema prisional salvadorenho é um local de tortura e violações sistemáticas do devido processo legal. "Quando os Estados Unidos aceitam os serviços desse sistema, eles normalizam um sistema prisional que viola os direitos humanos", ressalta. "Este é um acordo informal entre dois presidentes, fora de qualquer regulamentação, seja a dos Estados Unidos ou de El Salvador".
Para Bullock, o acordo destrói todas as aspirações democráticas: "Trata-se de dois presidentes tomando o poder de decidir quem é terrorista, quem tem direitos e quem não tem." É uma ideia que Pappier apoia. "Bukele pode apresentar o CECOT como um Guantánamo centro-americano porque em El Salvador não há separação de poderes nem Estado de direito", afirma.
Segundo o próprio presidente, o governo arrecadará quase seis milhões de dólares por ano somente com o primeiro embarque de deportados. Esse valor, no entanto, fica aquém dos US$ 200 milhões por ano que custam para manter o sistema prisional, segundo o próprio Bukele. “Os Estados Unidos pagarão uma taxa muito baixa para eles, mas uma taxa alta para nós”, escreveu o presidente em sua conta X. “Com o tempo, essas ações, combinadas com a produção já gerada por mais de 40.000 presos participando de vários workshops e trabalhos sob o programa Ocio Cero, contribuirão para a autossustentabilidade do nosso sistema prisional”, acrescentou.
No entanto, para alguns analistas, o ganho do presidente salvadorenho vai além do dinheiro: "Bukele ganha pelo menos quatro coisas: dinheiro público, o favor do governo Trump, a validação de seu modelo prisional e temo que ele esteja tentando ganhar o silêncio dos líderes da MS-13", afirma Pappier.
Entre os deportados neste sábado estavam 23 membros da MS-13 procurados pelas autoridades salvadorenhas, incluindo dois líderes. Um deles é César Humberto López Lario, conhecido como Greñas de Stoners, membro da Ranfla Nacional, o alto comando da estrutura criminosa. Até poucos dias atrás, esse membro de gangue estava sendo julgado em um tribunal de East New York e era mencionado em um caso em que autoridades americanas investigam as negociações do governo Bukele com gangues. Alguns especialistas sugerem, a esse respeito, que o presidente está tentando resgatar líderes de gangues dos Estados Unidos para impedi-los de testemunhar em tribunal sobre seus supostos pactos secretos.
Luis Enrique Amaya, consultor e especialista em segurança de El Salvador, acredita que, além de dinheiro, o presidente também busca influência no governo Trump e mantém sua imagem de modelo: "Ele quer se vender ao mundo como um país com um sistema prisional realmente rígido e rigoroso; isso é muito mais benéfico para ele do que dinheiro", diz ele.
Por enquanto, o primeiro desafio que o acordo entre os dois presidentes enfrenta é se ele poderá ser sustentado; se os Estados Unidos podem continuar acelerando as deportações sob a Lei de Inimigos Estrangeiros, algo que um juiz interrompeu até agora, e se El Salvador pode continuar recebendo-os sem nenhuma legislação em vigor que permita isso.