04 Abril 2020
“Um vírus assassino expôs grandes falhas nas economias capitalistas ocidentais. Agora que os governos estão em pé de guerra, temos a oportunidade de consertar o sistema. Caso contrário, não teremos nenhuma chance diante da terceira grande crise (a crescente inabitabilidade do planeta) e todas as outras menores que trará nos próximos anos e décadas que virão”, escreve Mariana Mazzucato, professora de Economia da Inovação e Valor Público e diretora do Instituto de Inovação e Interesse Público do University College London, em artigo publicado por Clarín, 02-04-2020. A tradução é do Cepat.
O capitalismo enfrenta ao menos três grandes crises. Uma crise de saúde induzida pela pandemia, que rapidamente acendeu o pavio de uma crise econômica com consequências ainda desconhecidas para a estabilidade financeira, e tudo isso no contexto de uma crise climática que não admite uma resposta dentro do paradigma atual (“business as usual”). Até há apenas dois meses, as imagens inquietantes de trabalhadores exaustos que enchiam os meios de comunicação não eram de gente da saúde, mas de bombeiros.
Essa tríplice crise revelou vários problemas no modelo de capitalismo atual, que devem ser totalmente resolvidos enquanto, ao mesmo tempo, enfrentamos a emergência de saúde imediata. Caso contrário, apenas resolveremos problemas em um lugar e criaremos novos problemas em outro. Foi o que aconteceu com a crise financeira de 2008. As autoridades inundaram o mundo com liquidez, sem direcioná-la para boas oportunidades de investimento, isso levou o dinheiro a voltar para um setor financeiro que foi (e ainda é) incapaz de cumprir sua função.
A crise da COVID-19 está expondo ainda mais os defeitos nas estruturas econômicas, em particular a crescente precariedade do trabalho, devido ao surgimento da economia de plataforma e décadas de deterioração do poder de negociação dos trabalhadores. Para a maioria das pessoas, o teletrabalho simplesmente não é uma opção, e, embora os governos estejam dando alguma ajuda aos trabalhadores com contratos formais, os autônomos podem ser abandonados a sua própria sorte.
Pior ainda, os governos estão emprestando para empresas em um momento em que a dívida privada já está em um nível historicamente alto. Nos Estados Unidos, a dívida total das famílias, pouco antes da crise, era de 14,15 trilhões de dólares (1,5 trilhão de dólares a mais que em 2008, em termos nominais). E não vamos esquecer que um alto nível de dívida privada provocou a crise financeira global.
Infelizmente, na última década, muitos países aplicaram medidas de austeridade, como se a dívida pública fosse o problema. O resultado foi o enfraquecimento das mesmas instituições públicas que necessitamos para superar crises como a pandemia do coronavírus. Desde 2015, o Reino Unido reduziu o orçamento da saúde em um bilhão de libras (1,2 bilhão de dólares), o que aumenta a pressão sobre médicos em formação (muitos diretamente abandonaram o Serviço Nacional de Saúde) e reduz os investimentos a longo prazo que são necessários para que os pacientes recebam tratamento em instalações seguras, modernas e bem providas de pessoal. E nos Estados Unidos (que nunca tiveram um sistema de saúde pública bem financiado), o governo Trump há muito tempo tenta cortar fundos e capacidades dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), além de outras instituições cruciais.
Como se esses danos autoinfligidos não fossem suficientes, um setor empresarial excessivamente “financeirizado” tem extraído valor da economia para premiar os acionistas com planos de recompra de ações, em vez de sustentar um crescimento a longo prazo investindo em pesquisa e desenvolvimento, salários e capacitação de trabalhadores. Isso deixou as famílias desprovidas de colchões financeiros, dificultando o acesso a bens básicos, como moradia e educação.
A má notícia é que a crise da COVID-19 está exacerbando todos esses problemas. A boa notícia é que podemos usar o estado de emergência atual para começar a criar uma economia mais inclusiva e sustentável. Não se trata de postergar ou impedir o apoio estatal, mas de estruturá-lo corretamente. Temos que evitar os erros da era pós-2008, quando os programas de resgate permitiram às corporações aumentar ainda mais seus lucros, assim que a crise terminou, mas não assentaram as bases para uma recuperação sólida e inclusiva.
Desta vez, as medidas de resgate precisam ser acompanhadas de condições. Agora que o Estado voltará outra vez a ser o ator principal, devemos lhe dar o papel de herói, não o de ingênuo que paga por pratos quebrados. Isso implica fornecer soluções imediatas, mas pensadas de tal forma que atendam ao interesse público a longo prazo.
Por exemplo, condicionar os auxílios estatais às empresas que não demitam funcionários e garantam que, quando a crise terminar, invistam na capacitação de trabalhadores e na melhoria das condições de trabalho. Melhor ainda, os governos deveriam (como na Dinamarca) ajudar as empresas a continuar pagando os salários dos funcionários que não estão trabalhando. Isso permitirá, simultaneamente, proteger as fontes de renda dos lares, prevenir a propagação do vírus e facilitar às empresas o reinício da produção quando a crise tiver acabado.
Além disso, os programas de resgate devem ser projetados para incentivar as empresas maiores a recompensar a criação de valor, em vez de sua mera extração, isso inclui prevenir as recompras de ações e incentivar investimentos em crescimento sustentável e redução da pegada de carbono. No ano passado, a associação estadunidense de empresas Business Roundtable declarou sua disposição em adotar um modelo de criação de valor para todas as partes interessadas (não apenas acionistas). Esta é a oportunidade para respaldar as palavras com ações. Se agora o empresariado estadunidense começar a apresentar poréns, então é preciso denunciar que aquilo foi uma farsa.
Em relação aos lares, os governos não devem ficar com a concessão de empréstimos, mas considerar a possibilidade de alívio da dívida, especialmente considerando os altos níveis de dívida privada que existem na atualidade. No mínimo, os pagamentos aos credores devem ser congelados até que a crise econômica imediata seja resolvida e precisam ser direcionadas as injeções de dinheiro às famílias mais necessitadas.
Além disso, os Estados Unidos devem apoiar, com garantias oficiais, o pagamento entre 80 e 100% das folhas de pagamento das empresas afetadas (como foi feito pelo Reino Unido e por muitos países asiáticos e da União Europeia).
Também é hora de reconsiderar o modelo de parceria público-privada. Muitas vezes, acontece que esses esquemas têm mais parasitismo do que simbiose. A busca de uma vacina contra a COVID-19 pode se transformar em outra relação unidirecional, na qual as corporações obtêm enormes lucros vendendo às pessoas um produto derivado de pesquisas financiadas pelos contribuintes. De fato, apesar do importante investimento público com dinheiro dos contribuintes americanos no desenvolvimento de uma vacina, recentemente o diretor do Departamento de Saúde e Serviços Sociais dos Estados Unidos, Alex Azar, admitiu que os tratamentos e vacinas que se desenvolverem para combater a COVID-19, talvez não estejam ao alcance de todos os estadunidenses.
Precisamos urgentemente de estados empreendedores que invistam mais em inovação em áreas como inteligência artificial, saúde pública, energias renováveis etc. Contudo, essa crise é um lembrete de que também precisamos de estados que saibam como negociar, para que os benefícios dos investimentos feitos com o dinheiro das pessoas retornem às pessoas.
Um vírus assassino expôs grandes falhas nas economias capitalistas ocidentais. Agora que os governos estão em pé de guerra, temos a oportunidade de consertar o sistema. Caso contrário, não teremos nenhuma chance diante da terceira grande crise (a crescente inabitabilidade do planeta) e todas as outras menores que trará nos próximos anos e décadas que virão.
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A tríplice crise do capitalismo. Artigo de Mariana Mazzucato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU