“A linguagem da guerra conta com inconvenientes. Alguns não vão querer abandoná-la quando a crise acabar. Onde antes viam um vírus, logo verão pessoas”, alerta Iñigo Sáenz de Ugarte, jornalista, em artigo publicado por El Diario, 17-03-2020. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
“Estamos em guerra”, disse olhando fixamente para a câmera Emmanuel Macron, em seu discurso ao país na segunda-feira. “O inimigo é invisível e requer nossa mobilização geral”. Guerra, inimigo, mobilização. Quando os chefes de Estado ou de Governo exigem medidas extraordinárias a seus cidadãos, frequentemente apelam a uma linguagem de ressonâncias inquestionavelmente bélicas. Isso se multiplicou na crise do coronavírus.
“O inimigo não está nas portas”, disse Pedro Sánchez, na terça-feira. “Penetrou já há tempo na cidade. Agora, o muro para contê-lo está em tudo o que colocamos em pé como país, como comunidade”. A linguagem bélica pode criar armadilhas. Se o inimigo superou as defesas e está dentro da cidade, o muro já não serve muito. Mas supõe-se que as pessoas captam a intenção dessas metáforas.
Na transmissão da coletiva de imprensa posterior ao Conselho de Ministros oferecida pelo Palácio da Moncloa, a câmera circunscrita a Sánchez, deixando de fora o púlpito, o microfone e qualquer outro elemento. Em um discurso dedicado principalmente a medidas econômicas de resposta, desejava-se que o presidente falasse diretamente com os cidadãos, também ao responder às perguntas dos jornalistas, enviadas através de um chat.
A retórica tem sua explicação e sua utilidade. As sociedades abertas na Europa Ocidental não estão acostumadas às medidas draconianas que agora estão se espalhando em vários países, ao menos desde 1945. Os países ricos não sofrem, há várias gerações, os tipos de proibições que as nações com ditaduras ou sistemas autoritários sofrem.
O Governo francês comprovou, no final de semana, como valiam pouco as recomendações. Havia permitido a realização do primeiro turno das eleições locais, e isso apresentava uma imagem de normalidade alterada apenas por uma série de conselhos sobre medidas de distanciamento. E o que aconteceu foi que os franceses saíram às ruas no domingo e encheram os parques e feiras. Foi assim que Macron entrou em ação. “Qualquer violação dessas regras será punida”, disse no discurso.
Dado que a resposta à emergência de saúde não será bem-sucedida se as pessoas não alterarem seu comportamento habitual, adverte-se aos cidadãos que se comportem como soldados em uma guerra. Devem obedecer às ordens e mostrar a máxima determinação. A vitória está ao alcance da mão se as instruções forem cumpridas.
Giuseppe Conte era um professor de direito sem militância política, e não muito carismático, que foi escolhido pelo M5S e a Liga para presidir o governo italiano. Continuou no Governo posterior, já sem a Liga, demonstrando uma segurança que não se supunha ter um tecnocrata na diabólica política da Itália. Também ajustou sua linguagem aos tempos do coronavírus. “Estive pensando nos discursos antigos de Churchill. É a nossa hora mais sombria, mas teremos sucesso”, disse ao La Repubblica. Churchill, o ícone de todos os governantes para os momentos difíceis.
Chega o Estado com todo o seu poder
Não há manifestação mais decisiva do poder do Estado em uma democracia do que a política econômica. A crise do coronavírus acabou por arremessar pela beirada o discurso oficial da austeridade e a preocupação obsessiva com o déficit público. Sempre há alguém que fica para trás, como aconteceu com Christine Lagarde. A presidente do BCE deu uma resposta quase desdenhosa sobre os problemas que a crise poderia causar nos prêmios de risco, como se não fosse da sua incumbência, e os mercados fizeram a dívida italiana e espanhola pagar o preço de sua torpeza. Seu erro foi tão evidente que teve que conceder uma entrevista imediatamente para tentar corrigir. Sem sucesso.
Os governos europeus, incluindo o alemão, não podem cometer o mesmo erro. Acabou o tempo em que Merkel e Rajoy comparavam a economia do Estado com a da família e com a ideia de que não se pode gastar mais do que entra. Agora, os programas de aumento do gasto público para evitar a ameaça de um colapso catastrófico são medidos com um impacto de centenas de bilhões de euros.
Alemanha, França e Itália já fizeram esse anúncio. Na terça-feira, aderiram Espanha e Reino Unido. Boris Johnson, novamente apelando à guerra: “Precisamos agir como um governo em tempos de guerra e fazer o que for preciso para apoiar a nossa economia”. Em inglês,“whatever it takes”, as mesmas palavras que usou Mario Draghi quando se impôs ao critério alemão e usou o poder financeiro do BCE para acabar com os ataques aos títulos dos países europeus mais vulneráveis, na crise da dívida da década passada.
Nesta demonstração maiúscula do poder do Estado, Sánchez não ficou aquém nas promessas. “O coração desse decreto real é não deixar ninguém para trás”, disse em poucas palavras, que depois repetiu e que o recordarão com frequência nos próximos meses.
Por isso, lançou otimismo, essencial para elevar a moral dos cidadãos trancados em suas casas: “Esta é uma crise temporária e deve ser tratada como temporária”. Pode ser chamada de guerra, mas é imprescindível comunicar alto e claramente que essa batalha será vencida.
A linguagem bélica pode parecer muito eficaz para os políticos. Não está isenta de consequências perigosas para o dia seguinte ao momento do último contágio. A ideia de construir muros contra a pandemia evoca o perigo que vem de fora, que se originou na China e atingiu a Europa com força total, quando chegou ao norte da Itália. Os partidos de extrema direita fizeram circular a receita falsa de que isso teria sido resolvido se as fronteiras tivessem sido fechadas a tempo, quando, na verdade, o coronavírus já estava presente antes que esses pedidos fossem feitos.
A OMS não recomenda o fechamento de fronteiras nessas emergências de saúde, porque uma crise global exige a colaboração de todos os governos. É verdade que, ao final, não seja estranho que acabem aplicando restrições nas passagens fronteiriças, como está acontecendo, mas se é a alternativa inicial, a única coisa que consegue é criar desconfiança e receios entre governos e povos distintos. E assentar a ideia de que tudo de ruim e pernicioso vem de fora.
A linguagem da guerra conta com inconvenientes. Alguns não vão querer abandoná-la quando a crise acabar. Onde antes viam um vírus, logo verão pessoas.
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Europa. O Estado adota a linguagem bélica na batalha contra o coronavírus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU