Vozes de Emaús: Acolher o estrangeiro, imperativo divino. Artigo de Frei Betto

Arte: Lauren Palma | IHU

18 Outubro 2025

"O acolhimento aos estrangeiros na tradição bíblica é mais que um gesto de bondade: é um mandamento que expressa a própria natureza de Deus e a vocação moral de Israel. O povo que conheceu a dor da opressão foi chamado a ser sinal de misericórdia e justiça no mundo."

O artigo é de Frei Betto, escritor, autor da tetralogia sobre os evangelhos – Jesus Militante (Marcos), Jesus Rebelde (Mateus), Jesus Revolucionário (Lucas) e Jesus Amoroso (João) – editada pela Vozes, entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

Frei Betto (Foto: MST)

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui

Eis o artigo.

O modo como o atual governo do Estado de Israel ataca os palestinos em Gaza e na Cisjordânia, causando o genocídio de mais de 60 mil pessoas e condenando à fome e ao desterro os demais, não encontra fundamento na Torá ou no Primeiro Testamento.

A narrativa bíblica revela um aspecto profundamente humano e espiritual na formação do povo hebreu: a consciência de que sua própria história foi marcada pela experiência do acolhimento ao estrangeiro. Desde os primeiros patriarcas à consolidação de Israel como nação, os hebreus viveram como forasteiros em terras alheias, sujeitos à hospitalidade ou rejeição dos povos entre os quais habitavam. Essa memória coletiva da vulnerabilidade tornou-se fundamento moral e teológico de seu relacionamento com o “ger”, o estrangeiro, dentro de suas fronteiras.

A lei mosaica e os profetas recordavam com insistência que o tratamento justo e compassivo aos estrangeiros não era apenas ato de generosidade, mas mandamento divino. Deus, que libertou Israel da opressão do Egito, exigia que o povo reproduzisse em suas relações sociais o mesmo amor e compaixão que d’Ele havia recebido. Assim, o acolhimento do estrangeiro tornou-se expressão concreta da fidelidade à aliança com Javé e um reflexo do Seu caráter justo e misericordioso.

A identidade de Israel nasce do êxodo, da passagem da escravidão à liberdade, e dessa experiência brota uma ética da lembrança. Diversas vezes, a Torá relembra: “Não explore o imigrante nem o oprima, porque vocês foram imigrantes no Egito.”(Êxodo 22,21; 23,9). Essa ordem se repete em Deuteronômio 10,19: “Amem o imigrante, porque vocês foram imigrantes no Egito.”

Essas passagens mostram que o cuidado com o estrangeiro não é uma questão circunstancial ou meramente política, mas exigência espiritual. O povo que fora objeto da compaixão divina é convocado a reproduzir esse mesmo amor. A memória do sofrimento e da dependência de hospitalidade alheia deveria gerar empatia, justiça e solidariedade.

A legislação mosaica, portanto, faz da hospitalidade uma norma religiosa. O estrangeiro não deve ser explorado economicamente nem tratado com desprezo. Deve ter acesso aos mesmos direitos básicos de proteção e subsistência. Levítico 19:33-34 expressa isso de maneira exemplar: “Quando um imigrante habitar com vocês no país, não o oprimam. O imigrante será para vocês um concidadão: você o amará como a si mesmo, porque vocês foram imigrantes no Egito.”

Muito antes da codificação da Lei, a hospitalidade aparece como virtude primordial entre os patriarcas. Abraão, ao acolher três visitantes desconhecidos junto ao carvalho de Mambré (Gênesis 18), ofereceu-lhes água, descanso e alimento, sem saber que eram mensageiros divinos. A narrativa é emblemática por fazer do acolhimento ao estrangeiro lugar de encontro com o próprio Deus.

No contexto cultural do Oriente antigo, oferecer abrigo e comida ao viajante era dever sagrado e negar hospitalidade visto como grave ofensa moral. Em Abraão, essa prática adquire significado teológico. Deus se manifesta na alteridade. O estrangeiro, o desconhecido, pode ser portador da bênção divina.

A Torá coloca o estrangeiro dentro da estrutura legal da sociedade israelita. Em Levítico, Deuteronômio e Números, o “ger” aparece constantemente associado aos órfãos e viúvas - grupos vulneráveis que dependiam da solidariedade comunitária. O estrangeiro deveria ter direito à parte das colheitas deixadas nos campos (Levítico 19,9-10), ao repouso sabático (Êxodo 20,10), e à justiça imparcial (Deuteronômio 24,17).

A lei de colheita, por exemplo, determinava que o agricultor deixasse as espigas caídas ou as bordas da plantação acessíveis ao estrangeiro e ao necessitado. Era uma forma de garantir a subsistência e preservar a dignidade de quem não possuía terra nem recursos próprios. Essa disposição mostra que, na visão de Deus, o estrangeiro não deve ser apenas tolerado, mas integrado à vida econômica e religiosa da comunidade.

Além disso, os estrangeiros eram convidados a participar de certas efemérides religiosas, como a Festa dos Tabernáculos (Deuteronômio 16,14), símbolo de comunhão e gratidão coletiva. Era incluído na adoração ao mesmo Deus, como parte da comunidade da aliança - ainda que não fosse etnicamente israelita.

Quando Israel se afastava desse ideal e caía na opressão e no exclusivismo, os profetas levantavam a voz. Jeremias, Ezequiel, Isaías e Malaquias denunciam o desprezo pelos estrangeiros como sinal de corrupção moral e infidelidade à aliança. Jeremias 7,6 adverte: “Se não oprimirem o estrangeiro, o órfão e a viúva, e não derramarem sangue inocente neste lugar, então deixarei vocês habitarem neste lugar.”

Para os profetas, a injustiça social, incluindo o tratamento discriminatório aos estrangeiros, era tida como ofensa direta a Deus. A fé autêntica não pode coexistir com a exclusão.

O Deus do Primeiro Testamento não é tribal nem parcial. Ele se apresenta como o Criador de todos os povos e Juiz de toda a Terra. Sua justiça é universal, e Sua misericórdia se estende além das fronteiras étnicas ou culturais. O preconceito, a discriminação e a exclusão contrariam o próprio caráter de Deus.

O estrangeiro, na perspectiva bíblica, é uma oportunidade de exercer amor, humildade e fé. A abertura ao outro é sinal de confiança em Deus, não de ameaça. A comunidade que acolhe o diferente reflete a presença divina; a que o rejeita, afasta-se da aliança.

A exigência divina de respeito e acolhimento do estrangeiro antecipa o ideal que mais tarde se tornaria central na mensagem de Cristo: o amor ao próximo sem distinção. Assim, o Primeiro Testamento não é um texto de isolamento étnico, mas de inclusão ética. Ensina que o verdadeiro povo de Deus é reconhecido não por fronteiras, mas por compaixão e justiça.

acolhimento aos estrangeiros na tradição bíblica é mais que um gesto de bondade: é um mandamento que expressa a própria natureza de Deus e a vocação moral de Israel. O povo que conheceu a dor da opressão foi chamado a ser sinal de misericórdia e justiça no mundo.

Na raiz da fé hebraica está a lembrança de que todos somos, em algum sentido, estrangeiros — peregrinos na terra de Deus. O mandamento de amar o estrangeiro, portanto, é também um convite à humildade: reconhecer no outro, mesmo no diferente, o reflexo da imagem divina. Em tempos de novas fronteiras e velhos preconceitos, essa antiga sabedoria continua a ecoar como palavra viva e necessária: “O Senhor ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa; portanto, ame o estrangeiro.” (Deuteronômio 10,18-19).

No caso do território onde se encontram hoje os habitantes judeus do Estado de Israel e as comunidades palestinenses de Gaza e da Cisjordânia, os estrangeiros são, a rigor, os israelenses. Muito antes de invadirem a região, a partir do século XIII a.C., como descreve o Livro de Josué, era habitada pelos povos semitas. Os atuais palestinos são descendentes dos cananeus e filisteus, povos semitas que ali viviam desde tempos remotos.

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