"É fato que o digital aproximou pessoas e contribuiu com a superação de isolamentos sociais. Porém, ele provocou distanciamentos e novos isolamentos com o fortalecimento da aproximação entre iguais e rejeição dos diferentes – a ideia de bolhas digitais. Resultado disto é o aumento de expressões de violência, com o uso das tecnologias para atacar, ofender, agredir, caluniar, ameaçar. Algumas pessoas se expõem e outras fazem uso de perfis anônimos"
O artigo é de Magali Cunha, doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), Pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) e integrante da International Association Media Religion and Culture e da World Association for Christian Communication.
Magali Cunha (Foto: Arquivo Pessoal)
A era digital – um tempo revolucionário marcado por realizações tecnológicas que, há poucas décadas, eram imagináveis apenas em desenhos animados, como o dos Jetsons, e em filmes de ficção – transformou não só a nossa capacidade de comunicar e de acessar informação.
Este tempo transformou muito fortemente os relacionamentos, o transporte, a medicina, a economia, o trabalho, o lazer, o consumo, a política, as religiões, a educação! Cada vez mais é preciso assumir a consciência de que nada será como antes depois da era digital!
Tivemos a comprovação do que é possível com estas tecnologias digitais no período da pandemia da covid-19, agora vivemos um tempo de euforia e perplexidade diante das novas modalidades de inteligência artificial (IA).
Nada será como antes! Isto significa buscar capacidade, condições de viver estas transformações sem abdicar de elementos fundamentais que formam os valores cristãos, para a coexistência humana e para a sobrevivência também.
Se não podemos negar a contribuição da cultura digital na agilização e na facilitação de várias frentes da cotidiana, ao mesmo tempo, temos densas dimensões críticas do ponto de vista social. Entre elas está a intensa redução dos postos de trabalho que são ocupados por máquinas, gerando alta no desemprego e consequências graves, e o fenômeno da “uberização” – o trabalho por aplicativos explorado ao máximo. Também, o aumento das desigualdades sociais, a partir da distinção entre as pessoas mais e menos qualificadas tecnologicamente, e a fixação das pessoas nas telas com o tempo livre sendo preenchido com conteúdo informativo, de trabalho, de entretenimento.
A concorrência de mercado pelo controle das mídias digitais e para extrair delas mais estímulos para o consumismo, coloca a privacidade em questão. É a algoritmização da relação empresas digitais-usuários, com amplo uso dos nossos dados pessoais – registros, fotos. E isto mexe com um fenômeno que é a sobrecarga de escolhas – nunca fomos submetidos a um cardápio tão grande de opções: de informação, de entretenimento, de serviços. Gasta-se um tempo considerável diante da tela escolhendo – um clique leva a outro, mas ao mesmo tempo temos a demanda da rapidez. Isto mexe com o processo cognitivo e gera incômodos, especialmente para quem não tem recursos financeiros para dar um clique rápido.
É fato que o digital aproximou pessoas e contribuiu com a superação de isolamentos sociais. Porém, ele provocou distanciamentos e novos isolamentos com o fortalecimento da aproximação entre iguais e rejeição dos diferentes – a ideia de bolhas digitais. Resultado disto é o aumento de expressões de violência, com o uso das tecnologias para atacar, ofender, agredir, caluniar, ameaçar. Algumas pessoas se expõem e outras fazem uso de perfis anônimos.
A facilidade do acesso às plataformas digitais se tornou livre acesso para articulações extremistas, em torno do ódio: desde disputas pessoais, grupais, linchamentos públicos, até mesmo grupos nazistas estão ganhando força no país!
A agressividade também se manifesta de outras formas: os cancelamentos. Em questão de minutos, a partir de uma divergência, uma discordância, um desafeto, alguém pode ser exposto negativamente e ser submetido ou submetido a um boicote virtual. Isto é uma punição e pode levar a pessoa julgada ao esquecimento social, ao isolamento forçado. Essa cultura tem provocado impactos significativos, como expressivo número de casos de suicídio.
Isto acontece no Brasil em diversos níveis, sob a capa de “liberdade de expressão”, a ponto de emergirem personalidades do cenário político e cultural, como representantes de quem defende estas expressões abertas de ódio. São fartamente vivenciadas também divisões entre famílias, círculos de amigos e nas igrejas e comunidades religiosas por conta da ampla assimilação desta cultura de violência.
Este tema nos leva à questão da desinformação – o que é popularmente denominado fake news. Mentir em público para defender interesses, sempre existiu, mas a cultura digital intensificou isto. Porém, a grupos cristãos interessa que pesquisadores mostram que são os que parecem ser os mais propensos à propagação. A passionalidade e a propaganda que atingem estes grupos religiosos são intensamente desenvolvidas por meio do pânico moral e da retórica do medo para gerar insegurança.
A gravidade destas situações ocorre também por carência de legislação para regular tais práticas das plataformas, o que avaliza a soberania das empresas de mídias (big techs) que agem livremente. Elas não oferecem transparência e ganham muito dinheiro com engajamento em violência e desinformação. Não são responsabilizadas até por atos de violência física e patrimonial, como os ataques de 8 de janeiro de 2023, por exemplo.
Tudo isto desafia muito a prática pastoral que se pretende libertadora! Já que a cultura digital é um caminho sem volta, é cada vez mais ampliada, e nada será como antes, não nos cabe o simplismo de tão só demonizar este processo, mas trabalhar por processos críticos, educativos e humanizadores.
Uma pastoral libertadora no contexto da cultura digital pode priorizar alguns caminhos:
1 – enfatizar e recuperar o valor da cultura do diálogo, que é parte do sentido do “ser” humano. Isto significa reconhecer os tempos de amplas possibilidades de comunicação, viabilizadas pelas tecnologias digitais, que faz emergir, porém, a incomunicação que alimenta a cultura do ódio.
2 – oferecer educação midiática digital – compreender não apenas como usar as mídias mas como funcionam, como operam as tecnologias.
3 – Orientar sobre a ética de quem se afirma cristão e cristã e da postura teológica para que haja atitudes compatíveis na ocupação das mídias digitais: não ser fonte de desinformação, não contribuir com polarizações e muito menos com o ódio, pacificar, humanizar, evangelizar as redes e não só nas redes. Questionar o isolamento em bolhas, a negação da diferença e da diversidade, o ódio, a violência, a superficialidade, a exacerbação da aparência (o que se quer mostrar ao invés do que se é de fato) e a religião da aparência e do sensacionalismo “caça-cliques”.
Assumir, portanto, a fé cristã em espaços digitais significa evocar uma compreensão de comunicação que seja plena, abrangente, ecumênica, e que vise à inserção cristã nos espaços públicos plurais, o que implica participação de cada cristão/cristã como cidadão.