"Grande amigo de Carlos e Frederico Borromeu, Filipe Neri orientou o Papa Clemente VIII à reconciliação com Henrique IV da França. O Papa teria desejado compensar Filipe Neri com a nomeação como cardeal, mas ele recusou. Em troca, foi beatificado em 1615, apenas vinte anos após sua morte, e foi proclamado santo depois de apenas outros sete anos (1622), por Gregório XV", escreve Paolo Mieli, escritor italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 11-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Inocêncio III, nascido Lotário dos condes de Segni, foi eleito Papa em 1198 e reinou até 1216, ano em que faleceu, em Perugia, onde então residia a cúria romana. Quando morreu tinha apenas 55 anos. Em 1891, o Papa Leão XIII, em sinal de homenagem, fez transportar seus restos mortais da catedral de Perugia, onde tinha sido sepultado por quase sete séculos, para a basílica de São João de Latrão. Inocêncio III era considerado já nos tempos seguintes à sua morte, mas talvez até em vida, um dos pontífices mais importantes da história, apesar de uma cruzada “escandalosa”, a quarta, inspirada por Veneza. Missão militar dirigida não à reconquista de Jerusalém, mas contra Constantinopla (1204) e que terminou com o saque da capital do Império do oriente. Na conta de Inocêncio III pesa também a cruzada contra os “albigenses” (ou “cátaros”), incluindo o massacre de Béziers de 22-07-1209 em que foram mortos aproximadamente vinte mil "hereges".
O historiador que mais aprofundou a obra daquele pontífice, Michele Maccarrone, em Studi su Innocenzo III (Editrice Antenore), destacou a influência que sobre ele tiveram o canonista Uguccione de Bolonha e o teólogo parisiense Pedro de Corbeil. O Papa Inocêncio conseguiu estabelecer a primazia da Igreja sobre o Império, a dos clérigos sobre os leigos, bem como a supremacia papal em relação às outras sedes episcopais e metropolitanas. “Um trabalhador incansável e tenaz”, escreve sobre ele Josef Gelmi no livro I Papi (Bur), “revelou-se dotado de uma inteligência extraordinária, superior à de seus contemporâneos". Além disso, como grande parte dos "seres superiores", ele tinha também, segundo Gelmi, “um forte senso de humor”.
Certamente Giovanni Maria Vian, autor do interessantíssimo L’ultimo Papa [O Último Papa], nas livrarias a partir de 14 de junho para a Marcianum Press, ficou impressionado em 2010, quando o historiador Anthony Grafton escreveu na New York Review of Books que Bento XVI foi um pensador comparável, por importância, a Inocêncio III. E, talvez, até mesmo a outro gigante da história da Igreja: Leão Magno, que foi papa de 440 a 461.
Num livro-entrevista com Peter Seewald, publicado três anos depois da renúncia de Bento XVI, intitulado Conversas finais (Dom Quixote), Ratzinger concordou em responder a uma estranha pergunta sobre a “profecia de São Malaquias”. Profecia atribuída a Malachias O'Morgair, bispo irlandês de Armagh (1094-1148), da qual, no entanto, nenhum vestígio permanece na biografia de Malaquias de Bernardo de Claravale (1090-1153), que viveu na época de O'Morgair, de quem foi admirador e amigo, a ponto de chamá-lo de "joia da Irlanda".
Na realidade, o texto foi quase certamente escrito em 1590 para favorecer no conclave um cardeal (que, aliás, não se tornou papa). A "profecia de São Malaquias" – uma série de 112 lemas em latim referidos a uma centena de papas, mas também antipapas, que termina com a descrição do fim do mundo nos tempos de um “último papa” – é, portanto, falsa. Nisso concordam todos aqueles que a estudaram, como, entre outros, Jean-Luc Maxence (I segreti della profezia di san Malachia. Misteri e destini dei papi (Rusconi)) e Gerardo Mastrullo (Le profezie di Malachia. I papi e la fine del mondo (edições La Vita Felice)). Uma farsa que começou a difundiu-se quando foi impresso pela primeira vez em Veneza, em 1595.
Em Conversas finais, Bento XVI confirma a previsão que como teólogo já tinha apresentado na década de 1950. A sociedade ocidental e, consequentemente, toda a Europa, segundo o jovem Ratzinger, “não será uma sociedade cristã e, mais ainda, os crentes terão que se esforçar para continuar a moldar e sustentar a consciência dos valores e da vida". Aqui, surpreendentemente, Seewald pergunta, um pouco atrevido, se, de alguma forma, ele considerava-se o último papa mencionado por São Malaquias (ou quem quer que seja). E Ratzinger, em vez de rejeitar desdenhosamente a pergunta (ou desviá-la), respondeu com a ironia de Inocêncio III: “Tudo pode acontecer”.
Mas então, como bom conhecedor do assunto, acrescentou que "provavelmente" essa profecia havia aparecido nos círculos ao redor Filipe Neri (1515-1595), figura muito importante na história da segunda metade do século XVI. Grande amigo de Carlos e Frederico Borromeu, Filipe Neri orientou o Papa Clemente VIII à reconciliação com Henrique IV da França. O papa teria desejado compensar Filipe Neri com a nomeação como cardeal, mas ele recusou. Em troca, foi beatificado em 1615, apenas vinte anos após sua morte, e foi proclamado santo depois de apenas outros sete anos (1622), por Gregório XV.
Na época de São Filipe Neri, acrescentou Ratzinger, “os protestantes sustentavam que o papado estava acabado e ele só queria demonstrar, com uma lista muito longa de papas, que, na verdade, não era assim”. Não por essa razão, porém, acrescentava Ratzinger, “é preciso deduzir que realmente terminará” daquela forma. Em vez de "a sua lista ainda não era ainda longa o suficiente!”
Curiosamente na monumental biografia, de mais de mil páginas, que posteriormente o mesmo Seewald dedicou a Ratzinger, intitulada Bento XVI (Paulus), o autor omitiu o episódio. Provavelmente porque já havia falado a respeito no livro anterior. Mas Seewald, na biografia, retorna à figura do citado São Carlos Borromeu que para o Papa Bento era “a expressão clássica de uma verdadeira reforma”. A verdadeira reforma que consiste em “uma renovação que leva adiante justamente porque nos ensina a viver de uma nova forma os valores permanentes, tendo presente a totalidade do fato cristão e a totalidade do homem”.
Borromeu, segundo Ratzinger, “tinha reconstruído – restaurado – a Igreja Católica, que também dos lados de Milão estava quase destruída." Sem “por isso ter regressado à Idade Média”. Pelo contrário, São Carlos criou “uma forma moderna de Igreja”. O caráter da ação reformadora de Borromeu, segundo Ratzinger, manifestou-se, por exemplo, no fato de que “suprimiu uma ordem religiosa já em declínio e destinou seus bens a novas comunidades vivas”. Referindo-se aos resíduos do passado que ele próprio tantas vezes criticou na Igreja, o cardeal perguntou provocativamente: “Quem hoje possui uma coragem semelhante, a ponto de declarar definitivamente pertencer ao passado o que está por dentro morto (e continua a viver apenas externamente) e confiá-lo claramente às energias do novo tempo?" O que acontece nos nossos dias, continuava Ratzinger, é que “novos fenômenos do despertar cristão estão sendo combatidos justamente pelos chamados reformadores". E é neste ponto que Vian centra a sua atenção.
Em última análise, Ratzinger, escreveu Seewald, “manifestava mais radicalismo e vontade de reformar do que a maioria de seus críticos". Que, como ele próprio observava, “defendem espasmodicamente instituições que continuam a existir apenas em contradição consigo mesmas". Na ação reformadora de Carlos Borromeu, Ratzinger vislumbrava “qual é o pressuposto essencial para tal renovação". São Carlos “conseguiu convencer os outros porque ele próprio era um homem convencido". Ele soube “resistir com a sua certeza no meio das contradições do seu tempo porque ele mesmo as vivia". E podia vivê-las porque era “cristão no sentido mais profundo da palavra”, isto é, ele era “totalmente centrado em Cristo”. Restabelecer “essa relação integral com Cristo é o que realmente importa". Quase um autorretrato.
Depois Ratzinger acrescenta a impressão de que “tacitamente” estivesse se “perdendo o sentido autenticamente católico da realidade ‘Igreja’ sem que ninguém tenha a coragem de rejeitá-la expressamente". Muitos, afirmava Bento XVI, três anos depois de deixar o “trono”, não acreditam mais que a Igreja seja “uma realidade quista pelo próprio Senhor”. Mesmo entre alguns teólogos “a Igreja parece como uma construção humana, um instrumento criado por nós e que, portanto, nós mesmos podemos reorganizar livremente de acordo com as exigências do momento".
Mas, na verdade, “por trás da fachada humana está o mistério de uma realidade sobre-humana na qual o reformador, o sociólogo, o organizador não tem nenhuma autoridade para intervir". Se a Igreja fosse apenas “um nosso artifício", até os conteúdos da fé acabariam por "tornar-se arbitrários". Desta forma, o Evangelho acaba por se tornar uma espécie de “projeto de libertação-social”, ou de “outros projetos históricos, imanentes, que superficialmente podem até parecer religiosos, mas na essência são ateus". Considerações que iam muito além da reflexão inicial sobre São Carlos Borromeu.
Vian agora retorna a esses temas com uma revisão erudita, não desprovida de notações bastante originais. E cheias de implicações. Particular atenção é dedicada pelo autor à escatologia. Morte e vida eterna (Cittadella), o livro que reunia as lições iniciais de Ratzinger em Freiburg em 1957. Livro que Bento XVI republicou muitas vezes, cada uma com acréscimos e aprofundamentos. A última das quais, em 2007, dois anos depois de ter sido eleito Papa com um novo prefácio. A sua interpretação parte de Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, mas leva em conta também alguns dos principais biblistas e teólogos seus contemporâneos, como Karl Barth, autor da Introdução à teoria evangélica (Sinodal). E também Rudolf Bultmann que com Karl Jaspers escreveu Il problema della demitizzazione (Morcelliana), Oscar Cullmann com seu Cristo e o tempo (Fonte Edotirial), Charles Harold Dodd, autor da Interpretação do quarto evangelho (Editora Teológica).
Mas também aquelas que Vian define “pepitas de ouro únicas” nas “várias teologias da libertação e da revolução”. Com um particular “método exigente”, Ratzinger, escreve Vian, “redimensiona a iminência do fim do mundo que, de acordo com muitas interpretações modernas, teria sido central na pregação de Jesus". E na profecia de São Malaquias. O seu anúncio do “Reino de Deus” é, de fato, “marcado por um senso de contínua atualidade e não está vinculado nem a lugares nem a tempos”. Como se realiza em Jesus, que é ele mesmo o Reino, segundo uma bela expressão de Orígenes (185-253 d.C.), um dos maiores pensadores cristãos da Antiguidade.
No Ratzinger de Vian se destaca sobretudo a incomum contribuição teológica que coloca aquele pontífice “numa categoria quase não representada na história do papado”. E “numa posição de absoluta relevância", como mostram as suas reflexões sobre as "realidades últimas" e sobre o judaísmo. Estas últimas importantíssimas. Apesar dos “estereótipos tenazmente hostis a ele aplicado especialmente na Alemanha desde o final da década de 1960" e que continuaram mesmo após a publicação em 2019 de um seu “estudo denso e inovador sobre o judaísmo", acompanhada por uma subsequente troca de cartas com o rabino chefe de Viena, Arie Folger.
Tudo está contido no livro Ebrei e cristiani (San Paolo Edizioni). O pensamento de Ratzinger, continua Vian, “funda-se rigorosamente na Bíblia, que é judaica e cristã”, e “na tradição cristã estabelecida no confronto com o pensamento grego”. Mas, segundo o teólogo bávaro que se tornou papa, essa tradição está viva “precisamente porque se alimenta da história, com ela somos sempre confrontados e queremos nos confrontar". Portanto “tem a pretensão e a possibilidade de propor a sua razão e as suas razões para uma contemporaneidade que diante das religiões se mostra intolerante". De alguma forma “renovando o embate entre as pretensões idólatras de intolerância helenística e a resistência da fé monoteísta judaica no tempo dos Macabeus”.
Segundo Vian, “também foi lúcido o diagnóstico do papa sobre a extinção da fé nos desertos deste mundo e do escândalo intolerável dos abusos”. “Fraco e nada apoiado" foi, em vez disso, o seu governo. Se não “mesmo contrastado por colaboradores que não se revelaram à altura do pontífice". Ou mesmo “infiéis”. Quanto à pergunta sobre o último papa, segundo Vian, “permanece sem resposta no momento”. O que nos obriga a deixar pendente o juízo – no que diz respeito ao historiador Vian, impossível de dar em sentido completo, salvo alguns acenos, a respeito de um papa vivo e bastante ativo – sobre o pontificado do Papa Bergoglio.